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Detalhe da "Crucifixão", de Giotto, na Basílica Inferior de São Francisco, em Assis (Itália).
Detalhe da “Crucifixão”, de Giotto, na Basílica Inferior de São Francisco, em Assis (Itália).| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Estamos no tempo em que a Igreja celebra a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas estes tempos em que vivemos fazem com que seja quase impossível para grande parte da população entender do que se trata. Afinal, o que é “Paixão”, só para começar? E como é isso de celebrar a morte?!

A palavra “paixão” vem do latim “passio”, de que derivam também várias outras palavras: passivo, passar, passo etc. A ideia do termo latino é “aquilo que nos é feito”, ou seja, aquilo em que não temos voz ativa, aquilo que não controlamos. Aquilo, em suma, que sofremos. Daí ser este o nome pelo qual a Igreja se refere a tudo aquilo, a todas as crueldades e ignomínias, que fizeram com o Homem-Deus. Hoje, no Lava-Pés, rememoramos o mandato dado aos discípulos de servir, de humilhar-se, de reduzir-se como Ele mesmo Se reduziu. Não nos é fácil, orgulhosos que somos, lavar os pés de subordinados. De inferiores. E menos fácil ainda seria acompanhar o Senhor no resto de Sua entrega completa, naquele conjunto de dores que, iniciando-se numa madrugada de sexta-feira, levou-o à morte, e morte de cruz.

Afinal – e é este o ponto da celebração –, quem merecia apanhar era eu, mas Ele colocou-Se na frente e sofreu por mim. Quem merecia ser morto era eu, mas Ele sofreu por mim tal morte. Aquilo Lhe foi feito, mas Quem abriu o mar, andou sobre as águas, curou os cegos e paralíticos, e ressuscitou os mortos poderia perfeitamente ter-Se defendido das pífias forças dos judeus e romanos. Ele aceitou sofrer aquilo tudo, aceitou ser submetido àquilo tudo, para que nós pudéssemos ser poupados, pudéssemos ser perdoados de tantos males que fazemos. O que O moveu a isso, claro, foi o amor. Em teologia, Amor é outro nome do Espírito Santo, que com o Pai e o Filho são um só Deus.

Movida pela degenerescência espiritual mais completa, nossa sociedade passou a chamar “amor” à luxúria, vendendo sua sordidez como beleza e sua escravidão como liberdade

Já agora, em nossos tristes tempos, habitantes que somos do cadáver putrefato duma civilização que já foi cristã, que já atravessou os mares sob a gloriosa insígnia da Santa Cruz, o que é o amor? Mais ainda, pergunto: o que é do amor? O que aconteceu com ele, onde ele está, que não o vemos mais a não ser raramente? Movida pela degenerescência espiritual mais completa, nossa sociedade passou a chamar “amor” à luxúria, vendendo sua sordidez como beleza e sua escravidão como liberdade.

Hoje mesmo, pouco antes de batucar estas mal-traçadas, vi um anúncio de agendas marca “namastê”, fabricadas por uma comunidade de seguidores de Rajneesh, dedicada ao sexo livre como suposto meio de ascensão espiritual. Esquecemos, por vezes, que demônios são seres puramente espirituais, e que tomá-los por guias em nada nos ajuda. Confesso que fiquei surpreso, na medida em que a máscara do nefando Rajneesh, o famoso “guru do sexo”, já caiu faz tempo. Já houve até uma série de televisão sobre sua comunidade, mostrando desde abuso sexual de crianças à tentativa de envenenamento de toda a população de uma cidade. Era de se esperar que não houvesse mais incautos dispostos a seguir suas teorias. Mas eis que há, e que cada membro da comunidade paga mais de um salário mínimo ao mês, além de trabalho escravo, pelo “privilégio” de um quarto onde mal cabe uma cama, uma ou duas refeições veganas diárias e, claro, muito sexo.

Até mesmo o termo “paixão” tornou-se referência ao sexo. Ora, o desejo é, sim, de uma certa maneira, uma “paixão” no homem caído, pois não o controlamos. Mas na tal comunidade há cartazes dizendo “apaixone-se”, como se numa comunidade que tem a fornicação por princípio fosse possível, quem sabe, misturar um pouco de amor, ainda que de amor desordenado, ao mero desejo cru e animalesco. Por “paixão”, no mundo cá fora, afinal, em geral diz-se aquele pseudoamor obsessivo, que leva a pessoa no mais das vezes a ignorar a pessoa real por quem se apaixona, substituindo-a por um objeto mental, uma criação própria que não tem como sobreviver à convivência e à descoberta de quem realmente a pessoa é. Mas hoje isto não interessa, porque se procura saciar tal “paixão” afogando-a em sexo até que ela passe. Nesse momento, diz-se adeus e parte-se em busca de outra. E de outra, e de outra, até que a pessoa perca completamente qualquer capacidade de amar.

Afinal, como nos mostra de maneira perfeita o exemplo da Paixão de Cristo, o amor verdadeiro é entrega, não desejo. O “fluxo”, por assim dizer, vai no sentido oposto. Quem ama dá, e quem ama de verdade dá até que doa. O amor verdadeiro é sempre exagerado, pelos padrões do mundo, por consistir numa entrega completa. Já a sabedoria do mundo – que é loucura diante de Deus – prega que não podemos nos entregar. Que temos de “nos amar mais que amamos o outro”. E substitui o amor pelo horrendo sucedâneo dito paixão, em que a pessoa obcecada suga o outro para si mesmo, negando-lhe até mesmo ser quem é. Ao contrário do amor real, ela não faz do casal “uma só carne”, e sim uma espécie de delírio canibal em que um se alimenta da carne do outro, e quem enjoar primeiro do gosto dela parte o coração do parceiro, passa uma aguinha nas partes que tanto friccionava no outro e vai embora em busca de nova aventura. “Lavou, tá novo.” É a negação da entrega real em que consiste o amor de verdade.

Ora, uma sociedade sem amor não é capaz de entender o Amor divino. Quem não ama não consegue perceber a Paixão de Cristo a não ser atribuindo a si mesmo Sua inocência, e assim fazendo da Paixão tolice parelha a seus queixumes comezinhos. Não é raro que esta ou aquela celebridade, tendo passado por qualquer tipo de contrariedade, venha comparar-se ao Cristo crucificado. “Oh, como sofro neste mundo injusto!”... Afinal, quem não tem a graça da Fé dificilmente vai conseguir perceber que estamos todos muito mais para os romanos e judeus que para o Cristo, naquele Auto da Paixão eterno que se desenrola a cada momento em nossas almas. Nenhum de nós é inocente, e os “direitos” que nos arrogamos e cuja “violação” nos deixa indignados no mais das vezes são apenas exigências mesquinhas e descabidas de criaturinhas mimadas.

E a morte? Esta, então, em nossos tristes tempos, é negada, escondida, e – justamente por isso – mais temida que nunca. Aquela mesma morte que “para o cristão é lucro”, segundo o Apóstolo, tornou-se algo que ocorre entre as quatro paredes do hospital, na mais negra solidão, via de regra sem os Sacramentos e sem a presença das pessoas amadas. No hospital a pessoa se torna uma coisa, uma máquina na oficina, a ser virada, rodada, espetada, nutrida e sustentada artificialmente num pesadelo infindável por quanto tempo der – o que parece indicar uma certeza de que o sofrimento hospitalar dará lugar ao do Inferno.

As senhoras com idade para ser avós vestem-se de menininhas, e esticam as rugas com cirurgias e cremes para tentar mentir ao mundo e a elas mesmas acerca da data sempre mais próxima de seu encontro com a Indesejada das Gentes. Vive-se não apenas como se a morte não existisse – o que já é uma mentira de pernas anormalmente curtas –, mas como se a totalidade do sentido da vida fosse fugir da morte. Soube de gente que não pisa o corredor do prédio há mais de ano, perdendo um ano inteiro de vida e botando em sério risco a própria saúde física e mental, por medo de morrer de Covid. Ora, se não for a Covid, será outra coisa; podemos contar que a Caveiruda virá nos tirar deste vale de lágrimas mais cedo ou mais tarde. Pouco há de mais certo.

Em tal situação, só há duas escolhas reais: a primeira é a dos estoicos, que procuravam aproveitar ao máximo cada dia, minimizando os sofrimentos e maximizando os prazeres, cumprindo o dever e vivendo de modo exemplar. Esta parte do pressuposto, ainda que implícito, de que nada há do outro lado da morte. É uma aposta, que pode revelar-se arriscada. A segunda escolha possível é a de encarar esta vida como a preparação, o vestibular, do que há do outro lado da cortina da morte. Esta é a opção cristã e, ainda que de outras maneiras e movida por outras crenças, igualmente a de quase qualquer outra religião com mais de mil anos de existência.

Para o cristão, todavia, há uma diferença crucial: a prova do Amor divino, na Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele entregou-Se completamente por nós. E, mais ainda, ressuscitou no terceiro dia, no Domingo de Páscoa, abrindo-nos o caminho para que possamos também transcender a morte. É por isto que a morte é lucro para o cristão, que se sabe amado por Deus. A morte é a entrega nas mãos do mesmo Deus que morreu por nós. Cada sofrimento nosso nesta vida também é permeado de sentido pela possibilidade grandiosa de adicionarmos nossa pequeníssima lágrima ao oceano de dores da Paixão de Cristo. Nós O seguimos na dor e na morte, como O seguimos no Lava-Pés – que é literal na liturgia, mas na vida é ainda mais difícil! E temos, assim, uma luz no fim do túnel, por assim dizer. Mais ainda, até: temos o Amado ao fim do túnel, e sabermos disto faz com que até a escuridão do túnel ganhe alguma luz, algum brilho. O túnel se torna caminho, e afinal é Ele mesmo o Caminho, a Verdade e a Vida.

Como nos mostra de maneira perfeita o exemplo da Paixão de Cristo, o amor verdadeiro é entrega, não desejo

É por isto, então, que celebramos nesta semana a Paixão – a dor, o sofrimento, aquilo que se nos acontece – e Morte de Cristo: por sabermos que da morte virá a Vida plena, que na Paixão provamos o Amor, e que após cada dor das tantas por que passamos aqui veremos e conviveremos no Bem em Si.

“Ó, morte, onde está teu aguilhão?”, pergunta a Escritura. Hoje, em nossos tristes tempos, poderíamos encontrá-lo escondido atrás das cortinas fechadas dum leito de hospital, das portas trancadas dum apartamento em que uma pessoa sozinha lentamente enlouquece, perdendo a vida por medo de perdê-la, e até mesmo da maquiagem e das finíssimas cicatrizes das plásticas com que uma veneranda senhora tenta se fazer moçoila núbil.

Mas, para quem recebeu de Deus a graça da Fé, de valor infinito, o aguilhão foi rompido. A morte é a bela porta que se abrirá em seu tempo para o desejado encontro com o Amado, e cada uma das nossas dorezinhas e sofrimentos, tão poucos, tão pequenos que – pasmem! – estamos ainda vivos!, é uma gotinha a acrescentar amorosamente ao imenso mar de Sua Paixão. Uma entregazinha, como a flor amassada que a criança leva à mãe; um brevíssimo ósculo no Amor.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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