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Poder cruel e amorfo
| Foto: Henry Milleo/Arquivo/Gazeta do Povo

Um conceito que me parece interessantíssimo, e que volta e meia uso aqui neste espaço, é o de provincianismo temporal. O provinciano geográfico, ou seja, a modalidade comum do provincianismo, o provincianismo denotativo, por assim dizer, é aquele da pessoa que só conhece, só se interessa pelo que acontece no seu cantinho. Tive farta experiência em primeira mão com ele quando morei nas quentes terras capixabas, em que quando um meu primo, oriundo de família tradicional de lá, mas criado no Rio, ganhou uma regata e o jornal local não mencionou o seu nome, publicando contudo em primeira página o nome do rapaz local que chegou em segundo. Ou, ainda mais triste, em que uma amiga mineira chegou de Londres com um doutorado em Inglês como Língua Estrangeira e abriu um curso, que rapidamente fechou as portas por ter tido o azar de abrir ao mesmo tempo que outro, de propriedade de uma mocinha local que acabara de voltar de um intercâmbio de um ano em Miami.

Para o provinciano “clássico”, assim, o que torna interessante algo, a chave de compreensão de qualquer acontecimento, é sua relação com o seu torrão. São os dois conterrâneos falecidos numa tragédia que ceifou milhares de vidas que o jornal – conhecedor de seu público – há de apontar na manchete, por exemplo. O provincianismo temporal, todavia, é uma modalidade mais comum, diria eu, do provincianismo. Mais ainda em nossos tempos interessantes, como diz a suposta praga chinesa, em que todos têm acesso a vastíssima e igualmente rasa quantidade de informação sobre o que está acontecendo, sem contudo ter qualquer conhecimento das próprias origens. O estudo da História não mais existe nas escolas brasileiras há décadas, tendo sido substituído pela valsinha marxista do materialismo dialético, que nada diz de pertinente acerca das sociedades que nos antecederam.

Assim, o provinciano temporal julgará tudo apenas de acordo com o que está no ar, com o Zeitgeist que anima o mês em que ele está, sem contudo conseguir – ou nem sequer ter a noção de que seja possível – identificar de alguma forma onde ele está no curso mais longo da ascensão e queda das civilizações. Para ele, Pedro Álvares Cabral, Carlos Magno, Cícero, Alexandre o Grande ou Abraão pensavam exatamente como ele, e provavelmente debulhavam-se em amargas lágrimas todos os dias pela falta de sinal de internet. A ideia de que em outros tempos outras pessoas tenham tido outros interesses, valores ou princípios, por exemplo, lhe é completamente estranha. Do mesmo modo, claro, é-lhe perfeitamente impossível perceber qualquer fenômeno social se não sob a égide das disputas políticas em curso naquele exato momento. Assim, por exemplo, a escravidão no Brasil torna-se uma questão de afirmação de “raça”, quando isso jamais teve o que quer que seja a ver com tão asqueroso fenômeno.

Estamos já mergulhados até o pescoço na dissolução das formas centralizadoras do Poder, no fim das ditas Grandes Narrativas

Tenho dado com a cara no provincianismo temporal a cada vez que – esquecendo-me do público que me lê – manifesto-me acerca das milícias que ora agitam a política fluminense. Graças à bondade divina, fugi do Rio de Janeiro, onde já nasci encalorado, há mais de 30 anos. Assim, têm uma pequena dose de irrelevante razão os que dizem que eu não falo com conhecimento de causa da vida sob a dominação miliciana. O que me atrai no fenômeno das milícias fluminenses, todavia, não é nem tanto “a história da vida privada”, para tomar o título da maravilhosa série de livros que introduziu aos leigos a história das mentalidades, fascinante antídoto contra a falsa historiografia marxista. O que me interessa é outra coisa, aquilo que Bertrand de Jouvenel definiu sobejamente como “O Poder”.

Acostumamo-nos ao discurso moderno sobre o Poder, que o torna propriedade “moral” e, de certa forma, exclusividade (ao menos na iniciativa do uso da força) de uma entidade mítica suprapessoal, perfeita e completamente artificial e desconhecida de todas as culturas que não a ocidental moderna, a que chamamos “Estado”. Na Modernidade, até mesmo a feitura de leis, para espanto de qualquer outra cultura ou civilização, compete a esse fantasma, estranho abantesma criado em Vestfália – quando a própria Divindade passou a sujeitar-se ao Rei – e desmamado na Revolução Francesa.

Ora, a Modernidade, todavia, está felizmente acabando. Digo sempre que há de ter sido a mais breve civilização da história, e é provável que nossos descendentes longínquos nem sequer a estudem como uma civilização de pleno direito, mas a tratem como apenas a lenta degeneração final da Civilização Ocidental que sucedeu ou aperfeiçoou o Império Romano e alcançou seu ponto mais alto no Século das Catedrais. A nota fundamental da modernidade – fora a assombração estatal, na verdade sua consequência apenas – há de ter sido a hipercentralização de tudo, apoiada teoricamente na delirante noção de uma Razão universal que uniria em si seres que nem sequer teriam como ter plena consciência da existência uns dos outros. Em outras palavras: para um moderno, não dá para saber se um judeu, preto, índio ou japonês existe, ou se – existindo – ele é de alguma forma o igual do ocidental, mas é perfeitamente evidente que uma mesma Razão a todos ilumina, e toda e qualquer pessoa que se sente para pensar chegará forçosamente dos mesmos dados às mesmas conclusões. Corolário disso é o que vemos, na degeneração final da Modernidade em que estamos, quando cada lado da disputa política considera que o que ele afirma (tomemos o discurso bolsonarista e o do PSol, por exemplo) é óbvio e evidente, e quem está do outro lado só pode ser burro (por não alcançar a Razão universal) ou mal-intencionado (por certamente alcançá-la, mas contra ela mover-se por razões escusas).

Dai-nos, Senhor, paciência.

Essa crença nessa Razão, nessa possibilidade de uma Grande Narrativa da realidade, todavia, finalmente chegou a seu óbvio e evidente fim. Estamos já mergulhados até o pescoço na dissolução das formas centralizadoras do Poder, no fim das ditas Grandes Narrativas. Basta ver como o nosso século teve início: pela ação não de um exército a serviço de um Estado, mas de uma ONG, sigla de organização não governamental; em outras palavras, um sujeito de poder paraestatal. Foi uma ONG, a Al-Qaeda, que demoliu as Torres Gêmeas. O país moderno por antonomásia, os Estados Unidos, ficou então pasmo, procurando de todos os lados um oponente moderno. O mais perto que encontrou foram os semisselvagens Talibãs do Afeganistão, que teriam dado guarida, pelos preceitos muçulmanos, a Osama Bin Laden, que por sua vez teria sido o manda-chuva da operação. Note-se que não foi o Estado afegão – na parca dimensão em que existisse tal coisa – que atacou os EUA. Mas a resposta americana voltou-se contra a coisa mais próxima, os Talibãs, que aliás continuam a atirar de volta do fundo de suas cavernas. Para aproveitar o desejo de vingança desprovido de objeto definido que tomara o povo americano e garantir um pouco mais de petróleo, aproveitaram e invadiram o Iraque, destronando o tirano que os próprios EUA lá haviam instalado e sustentado, e abrindo as portas para uma anomia generalizada na região, que até hoje perdura. Quem sofreu mais com isso, claro, foram os cristãos do Oriente Médio.

E é aqui que chegamos à anomia. A anomia que a ausência de Saddam causou naquele pseudopaís (na verdade, um mal costurado amálgama de tribos inimigas traçado num mapa pelos ingleses em volta de uns campos de petróleo e regido por um Estado que só podia se manter pela força, dada a sua absoluta incompatibilidade com as realidades culturais locais) fez com que surgissem várias formas de devoradores de carniça que, como hienas, alimentavam-se do cadáver putrefacto do Poder desprovido de sujeito. Nem vale a pena começar a enumerá-los; tratemos apenas de um deles, o Estado Islâmico.

“Estado” islâmico é um nome falso, provavelmente fruto de uma releitura ocidental moderna do ator geopolítico. Ele se percebia como um Califado, ou seja, uma forma de poder sumamente pessoal, em nada semelhante à de um Estado moderno em que o fantasmagórico ente de razão persistiria enquanto governantes impessoais sucessivos o geririam. O Califa, ao contrário, seria o sucessor presente de Maomé, como o Papa é o Sucessor de Cristo, com a crucial diferença de que, enquanto o Cristo mandou dar a César o que é de César, o Califa percebe-se como simultaneamente César e representante divino; no Islã, religião e administração civil são necessariamente uma só coisa, e os amigos do Califa são seus ministros e comandantes.

O que ocorre no Rio com as milícias é semelhante ao que ocorreu no Iraque com o Estado Islâmico

O que ali se instaurou, destarte, foi uma forma de protogoverno, ou seja, de administração amorfa de território de outro modo anômico, operando de modo radicalmente diverso do de um Estado moderno, e que só teria como se instalar pela crueldade, exatamente como o Estado pseudomoderno que ele veio suceder só se mantinha pela mesma força bruta aplicada contra a população. Afinal, a ideia de um Estado nacional, como deveriam ser os Estados modernos, é a de uma nação unida da qual algo miraculosamente brota: o tal Estado, que – no discurso hobbesiano – impediria uma luta de todos contra todos. O Iraque conta com provavelmente dezenas de corpos de população a que poderíamos chamar “nações”, dos quais os principais seriam os curdos, sentados sobre vastos campos de petróleo junto à Turquia e Síria; os muçulmanos xiitas, sentados sobre igualmente vastos campos de petróleo na diagonal oposta, junto ao Irã, Kuwait e Arábia Saudita; e uma minoria de muçulmanos sunitas, sentados sobre nada mais que areia quente, mas no caminho destes àqueles campos. Além deles, claro, há ainda inúmeros povos cristãos e pertencentes a minorias muçulmanas e pagãs. Cumpre observar que a ideia de uma nação que não tenha religião comum é um desses delírios modernos absolutamente desprovidos de possibilidade real. O falecido Estado iraquiano (pois o que lá há oficialmente hoje é uma piada) tinha à frente um déspota sunita, com um católico como Número Dois, e sustentava-se basicamente – do lado da cenoura – pela capacidade de implantação de infraestrutura moderna (água, estradas, saúde e educação públicas etc.), em enorme medida destruída pelos EUA na guerra, bem como – do lado do porrete – por uma temível polícia secreta e um exército (de oficialato predominantemente sunita) leal ao tirano.

Quando, sem o Tirano, o Poder espalhou-se e ficou à disposição de quem o tomasse, os oficiais do antigo exército uniram-se às milícias sunitas radicais e formou-se, finalmente, o Califado. O Estado Islâmico. A área que tomaram foi a central, onde tinham apoio razoavelmente grande da população, além de vastos territórios curdos, onde também tinham algum apoio, pois, sendo os curdos também sunitas, o laço religioso era mais forte que o lado linguístico e cultural. O EI seria, afinal, um Califado. Ou melhor, “O” Califado, na medida em que só pode haver um Califa de cada vez. É por isso que grupelhos islâmicos africanos e de outros lugares prestaram-lhe lealdade.

Ora, o meu ponto acerca das milícias fluminenses é que elas são, em enorme medida, coisa muito semelhante. O estado do Rio de Janeiro, nas mãos da extrema-esquerda desde que Brizola tornou-se seu senhor feudal e proibiu a polícia de entrar nas favelas, é quase completamente anômico. O Poder odeia o vácuo; se num dado momento não há quem o exerça (e na Modernidade, lembremo-nos, ele seria em tese a exclusividade do Estado impessoal), imediatamente surgirá quem o faça. E foi o que ocorreu. O Comando Vermelho, protegido pelo decreto antipolícia brizolista, fez das favelas seu território. Tratava-se, todavia, de um grupo de comerciantes que visavam antes de mais nada proteger o seu comércio, de modo bastante semelhante ao dos traficantes ingleses de ópio que puseram a China de joelhos há cerca de século e meio. A diferença maior é que – por imposição do próprio governante “moderno” – não houve resistência alguma. Explica-se o fato por o Comando Vermelho ser o fruto direto de aulas de organização dadas pelos terroristas de extrema-esquerda aos criminosos comuns na Penitenciária da Ilha Grande, onde os governos militares fizeram a burrada de deixá-los juntos. O CV e a extrema-esquerda carioca jamais cortaram completamente seus laços.

Do CV surgiram outras organizações, nisso aliás seguindo também a inexorável meiose que acomete partidos comunistas e seitas protestantes, e em poucas décadas o Rio de Janeiro estava dividido em territórios dominados por inúmeras facções de traficantes, nas suas áreas pobres, com a polícia não mais meramente proibida, mas já incapaz de agir contra elas. Neste quadro surgiram as milícias. O que são elas, ou melhor, o que eram elas de início? Elas começaram quando policiais honestos (no sentido de não quererem receber dinheiro de criminosos para deixá-los soltos, não no sentido moderno de prestarem lealdade incondicional ao Estado e à legislação positiva!) que moravam, premidos pela pobreza que sói acometer os honestos, em áreas dominadas por criminosos simplesmente cansaram-se de viver como se estivessem infiltrados em território estrangeiro, não podendo deixar que os vizinhos soubessem de sua verdadeira ocupação, secando a farda atrás da geladeira ou mesmo deixando-a no quartel etc. Aos poucos eles se encontraram e se uniram, e começaram a expulsar da vizinhança os traficantes que a dominavam. Em outras palavras, eles usaram o treinamento moderno e mesmo o armamento que receberam do Estado não para restaurar o controle do Estado, visto que este abdicara de seu controle, mas simplesmente para eliminar o controle da área por traficantes. Coisa bem curiosa, aliás, é que nisso restaurava-se na prática a inversão de valores da modernidade, que colocara a classe comerciante acima da classe das armas: ao expulsar os traficantes, na verdade comerciantes armados, os guerreiros tomaram o poder dos mercadores.

Como no Iraque, o Estado moderno no Brasil sempre foi uma casquinha fina, superficial, literalmente “pra inglês ver”. Trato disso, aliás, num artigo longo e aprofundado no meu último livro, A Grama é Verde e O Céu é Azul, da Editora Cristo Rei; aos interessados, recomendo que o leiam. Não o resumo aqui para tentar fazer com que este texto possa ser lido inteiro antes da coluna da próxima quinta. O resultado disto é que há uma ordem pré-moderna subjacente, que é o que mantém a sociedade mais ou menos ordenada. A “ordem” estatal, aqui – ao contrário do que ocorre na Alemanha, digamos, ou nos EUA – é em geral mais fonte de caos que de ordem. O resultado é que aqueles que seriam numa sociedade plenamente moderna os maiores garantidores de uma ordem centralizada moderna (os policiais) são, aqui, agentes quase autônomos de uma ordem endógena que nem sempre está unida à moderna. E foi como tal que eles tomaram território dos traficantes, sem a menor intenção de “devolvê-lo” ao Estado central. Para sustentar seu empreendimento, passaram a assumir os negócios ilegais, porém percebidos por eles como eticamente corretos, que os traficantes haviam criado em paralelo ao seu comércio principal (cujo público pagante, afinal, é externo: não é o favelado que compra a cocaína ou a maconha que as bocas-de-fumo vendem): “gatonet” (tevê a cabo pirata), monopólio da venda de botijões de gás etc., além da cobrança de pequenos impostos diretos, de início apenas pelos comerciantes locais.

Abyssus abyssum invocat, contudo: abismo chama abismo, e a atração dos ganhos (relativamente) fáceis, bem como o contato direto com os criminosos e, mais ainda, a forma necessariamente ultraviolenta da tomada e da manutenção do poder, num contexto já completamente extramoderno, fez com que a marca de Adão sobressaísse, e em breve as milícias começaram a adentrar a área cinzenta entre a “proteção” e o conluio com o abertamente imoral. Como não poderia deixar de ser, diga-se de passagem: reclamações com Adão e Eva, no balcão número um; tal é a nossa natureza marcada pela Queda. Daí já terem surgido, horresco referens, até mesmo clínicas de aborto mantidas pelas milícias, assim como a ubiquidade do assassinato frio e desnecessário por qualquer critério, mesmo utilitarista, de inocentes que simplesmente estavam no lugar errado na hora errada.

O Comando Vermelho e a extrema-esquerda carioca jamais cortaram completamente seus laços

Mas e agora, o que vem daí? Só posso dizer que o que vem não é nem poderia ser, ao menos no médio e longo prazo, uma “volta” de um Estado que na verdade jamais esteve ali. O que mantinha a ordem nas favelas, o que fazia com que Cartola pudesse em outros tempos cantar a Mangueira como um lugar idílico, não era o Estado, e sim os laços sociais entre seus habitantes, laços estes completamente pré-modernos em sua índole. O encontro ultraviolento de abismo e abismo entre o comércio armado e os guerreiros gananciosos, respectivamente do tráfico e das milícias, aponta apenas para um lento processo de depuração, em que na pior das hipóteses o mero comércio armado será posto para escanteio, e na melhor as milícias saberão depurar-se, com o apoio das populações das áreas por elas controladas, de modo a tornar seu protogoverno algo mais próximo dos desejos da população, mais conforme à ordem endógena que subjaz à ordenação social de facto da Terra Mais Garrida.

Isto, contudo, não é nem para amanhã nem para depois, por conta de diversos fatores. O primeiro deles é, e continuará sendo ainda por algum tempo, a ligação entre a extrema-esquerda e o tráfico, que faz com que os meios de comunicação de massa controlados por aquela demonizem as milícias. É isso, aliás, que mais me irrita e me leva a fazer a besteira de falar de milícias em redes sociais: reportagens apontando os “horrores” do monopólio do gás, gatonet e outras irrelevâncias histórico-sociais. Isto, por sua vez, leva a operações e mais operações do pífio “poder público” fluminense, ou seja, do que resta do Estado Moderno, contra as milícias, especialmente nas áreas em que estão ainda disputando poder com o comércio armado apoiado ideológica e financeiramente pela extrema-esquerda (que é, afinal, em grande medida quem compra a droga vendida nas favelas; nem todo esquerdista é usuário, mas quase todo usuário é esquerdista). Além disso, o próprio fato de o Estado estar cada vez mais perdendo força e poder de fato faz com que ele tente mais e mais compensar arrogando-se este por aquela sobre besteirinhas, o que explica, por exemplo, que haja blitzen da “Lei Seca” por toda parte, enquanto “bondes” de traficantes armados até os dentes circulam à vontade. E entre as leizinhas estão as regras administrativas que possibilitam a punição dos policiais que ainda perfazem o grosso das milícias. Digo “ainda” por ser extremamente provável que vocações autônomas, já treinadas apenas no interior das milícias, sejam elas de filhos de milicianos ou mesmo de habitantes das áreas de protogoverno amorfo miliciano, sejam em uma ou duas gerações a maioria, se não a totalidade, de seus integrantes.

Lembremo-nos ainda de que se trata, ao menos por ora, de pessoal treinado e armado para o confronto pelo Estado, mas não treinado por ele para o governo nos moldes modernos. Esta competência terá de ser descoberta, ou mesmo inventada, pelos próprios milicianos. Como isto virá a ocorrer é por ora imponderável.

Assim, não se trata de “celebrar” ou “condenar” as milícias, mais do que se poderia “celebrar” ou “condenar” qualquer processo histórico de desconstrução de uma civilização em decadência terminal e construção de outra, nova. Estes sempre são violentíssimos, e sempre trazem consigo enormes injustiças. Mas o Poder, repito, odeia o vácuo, e o homem, já nos lembrava o Estagirita, é um animal naturalmente social. Alguma forma de organização social terá de tomar o lugar da que ora se esboroa. Uma sociedade que celebra o travestismo, o entorpecente e o racismo não é uma sociedade viável e, depois que tal estágio é alcançado, nada mais resta que trabalhar para que a próxima não seja pior que a que se vai (como foi o caso). Apenas o mais triste provincianismo temporal, assim, pode fazer com que se olhe para o fenômeno fluminense das milícias (e quem acha que elas não aparecerão em outros locais do Brasil está muito enganado) como algo que apenas indicaria um pertencimento a uma (moderna, logo em degeneração final) “direita” ou “esquerda”. Isto é nada. Isto é mera fumaça que se esvai com o vento. O que está em jogo é muito maior e muito mais profundo. Está em jogo, por exemplo, qual é o mínimo moral: a lei positiva (como pregava a Modernidade, sem que ninguém no Brasil jamais tenha acreditado nisso) ou a lei natural (pela qual é imoral vender crack, mas não há problema algum em fornecer serviços pagos de tevê a cabo pirata). Está igualmente em jogo o nível de aceitação popular – especialmente quando a coisa estiver um pouco mais calma, daqui a poucas décadas – das punições ultraviolentas, como tiros nas mãos e execuções sumárias, numa sociedade em que a “turma do deixa-disso” sempre foi um agente primordial de paz pública. Isto é o que pode levar a uma depuração interna das milícias, por exemplo. Está igualmente em jogo o que há de acontecer com as áreas de classe média urbana do Rio de Janeiro (a coisa mais próxima de área dominada pela Modernidade que aquela sofredora megalópole tem). No momento, no bairro carioca de classe média por antonomásia, o Flamengo, agentes do tráfico agridem publicamente pessoas cujas roupas lembrem as cores da gangue rival à que controla o Morro Azul. E se – ou melhor, quando – uma milícia chegar lá, ou em outro bairro de classe média? Será que o Estado tentaria combater de frente uma milícia que controlasse o Grajaú? E Ipanema? Em suma, como acontecerá a transição entre um Estado superficial que já dá seu último suspiro e formas autóctones e orgânicas de protogoverno, que necessariamente serão, ao menos de início, tão cruéis e amorfas quanto as milícias?

Vale, assim, deixar de lado as besteiras do provincianismo temporal para perceber à luz da história, se não sub specie aeternitatis, os fenômenos sociais que, nestes nossos tempos interessantes, inexoravelmente nos rodeiam e atraem a nossa atenção. É irrelevante se Bolsonaro tem apoio miliciano ou não. Ele é um mero ponto na imensa reta da história, e seria impossível a um político carioca manter-se totalmente à parte da questão. Aliás, curiosamente, o apoio miliciano – logo extraestatal – comprova o absurdo das acusações de fascismo que são feitas contra o bolsopresidente. No fascismo seria inimaginável tamanho poder fora do Estado.

E não, obrigado, não tenho a menor intenção de pisar novamente no Rio de Janeiro. Tô fora, mermão!

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