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Imagem ilustrativa.| Foto: DedMityay/Bigstock

As estimativas do percentual de psicopatas na sociedade em geral variam entre 2% a 4% da população. Em outras palavras, há de um psicopata para cada cinco canhotos (que são 10% da população, em média) a um para cada dois canhotos. Ou, ainda como maneira de avaliar, um psicopata para cada pessoal atraída sexualmente por gente do mesmo sexo, cujo percentual é de mais ou menos três pessoas em cada cem. É claro que não há ligação alguma entre ser canhoto ou atraído pelo mesmo sexo e psicopatia. Como, todavia, conhecemos todos canhotos e pessoas com tal tipo de atração, podemos usar estas estimativas para termos uma noção do percentual real de psicopatas.

Afinal, tal como as outras características estimadas acima, a psicopatia é invisível. Psicopatas ou canhotos não trazem estampada na testa sua diferença específica. Além disso, a maior parte deles, aliás quase todos, consegue manter oculta sua psicopatia ao longo de toda a vida. Casos como o ocorrido recentemente no Centro-Oeste, em que um psicopata rondava pelas matas como uma fera, matando e estuprando suas presas, são a exceção, não a regra. Mesmo assim, o infame Lázaro e seus demais colegas – se é que se pode usar este termo – de psicopatia têm em comum uma percepção do mundo em muitos pontos análoga à de qualquer outro grande predador, como as onças ou os lobos.

Para o psicopata, como para um predador irracional, o mundo divide-se em recompensas a “colher” e ameaças a evitar ou neutralizar. Esta visão é tão diferente da do resto da população que para o vulgo é dificílimo pôr-se no lugar do psicopata. Os pais, colegas e mesmo cônjuges dos psicopatas geralmente mantêm-se ignorantes dessa visão de mundo, tratando o psicopata como se seus processos mentais fossem os mesmos seus. É por isto que no mais das vezes estas pessoas mais próximas são as primeiras vítimas do psicopata; sua proximidade não os torna mais protegidos, sim mais frágeis. Ele conhece perfeitamente seus pontos fracos e sabe como usar e abusar deles. Ao contrário dos predadores irracionais, todavia, o psicopata em geral não mata; não por senso moral, mas por perceber tal ato como um gasto inútil de energia, trazendo mais problemas que soluções. A besta-fera busca nas presas carne, mas o psicopata busca butins maiores e mais duradouros que uma mera refeição.

Afinal, ao contrário das feras selvagens, que atacam suas presas por instinto, o psicopata é um ser racional como todos nós outros. A diferença é que enquanto para as pessoas normais é natural colocar-se no lugar do outro, com isso sentindo suas dores e evitando ao máximo causá-las, o psicopata só dá valor a si mesmo. Ele sabe perfeitamente as dores que inflige, mas o fato de elas serem sentidas por outros e não por ele mesmo faz com que elas lhe sejam indiferentes. Por outro lado, qualquer dorzinha ou desapontamento que lhe seja infligido é percebido pelo psicopata como uma tremenda injustiça, uma crueldade infinita gratuita que merece a pior das punições. Assim, na prática, o psicopata coloca-se como um predador entre os homens, não como um homem igual aos demais.

Dizem os psicólogos evolucionistas que a psicopatia persistiu na herança genética humana pela utilidade bélica do psicopata. Numa situação de confronto tribal, por exemplo, em que frequentemente os demais seres humanos hesitariam em matar, é um trunfo ter ao seu lado alguém que mataria até mesmo mulheres e crianças sem pensar duas vezes se isto trouxer alguma vantagem. A regra humana é perceber antes a semelhança do outro que a diferença, mas a pequena fração de psicopatas, por sua postura de predador solitário, não identifica qualquer semelhante. Todos os demais são percebidos como objetos manipuláveis, podendo ser-lhe úteis ou inúteis mas jamais iguais a ele. A própria noção de igualdade (ou, mais ainda, de respeitar com os demais uma lei maior que si mesmo e as próprias vontades e desejos) lhe é totalmente estranha e inaceitável, beirando mesmo o incompreensível.

Não é à toa que ao longo da História tenha sido tão comum que o governo das sociedades acabasse nas mãos duma classe guerreira; afinal, ela é a única dotada de capacidade de tomá-lo pela força. Por outro lado, a ideia de tomar o governo pela força, ignorando a vontade dos demais, obedece ao típico raciocínio do psicopata. Para ele, dispor de poder pessoal é fundamentalmente um ato de justiça, já que minora seu sofrimento, aumenta seu prazer e faz dos demais meros objetos, o que é exatamente conforme à sua visão de mundo. Vale lembrar que enquanto a vantagem marcial da psicopatia não os restringe necessariamente ao ofício das armas, a percepção da conquista pessoal do poder como inerentemente “justa” é um traço sempre marcante na psicopatia. Em qualquer hierarquia os psicopatas procuram ocupar o topo, a posição de poder maior, em que possam finalmente parar de fingir respeito pelos demais e tratá-los como os objetos que seriam.

As sociedades democráticas acabam sendo também um terreno fértil para a ação do psicopata. Afinal, numa campanha eleitoral é de enorme valia a “lábia” do psicopata, para quem a verdade ou a mentira, o afeto ou o medo são meras ferramentas sempre à disposição, podendo ser “ligadas” e “desligadas” instantânea e racionalmente segundo a necessidade. Costumo dizer que os talentos necessários para ser eleito são basicamente os mesmos dum estelionatário de sucesso: parecer ser a pessoa que o outro (a vítima do estelionatário ou o eleitor) busca, parecer confiável, ter facilidade em criar “amizades instantâneas”, e por aí vai. Os próprios gregos, inventores da democracia, sofreram tanto com a demagogia dos psicopatas que acabaram substituindo as eleições por sorteios entre os cidadãos para preencher os cargos eletivos (o que, aliás, continua sendo uma ideia interessante, convenhamos).

Toda hierarquia, mormente as grandes hierarquias sociais (dentre as quais está o sistema de governo) sempre atraem psicopatas, desde que haja como galgá-las ou, ao menos, desviar para si parte do poder. Uma monarquia hereditária, por exemplo, em que a sucessão ao trono é regida pela genética e pouco ou nada há a fazer para tomá-lo, terá em geral um enxame de psicopatas no segundo e terceiro escalão. Uma ditadura ideológica, como a soviética ou a chinesa, os terá no primeiro, e uma ditadura ideológica hereditária, como a norte-coreana, também acabará na mesma situação. Afinal, por mais que o preferido dum ditador entre seus filhos seja um que não é psicopata, outro que o seja dará um jeito de tomar-lhe o poder: sua ausência total de escrúpulos é seu trunfo.

Até mesmo as hierarquias religiosas são atraentes para os psicopatas, desde que lhes seja possível apenas fingir devoção e ninguém os obrigue a penitências reais. Daí o sábio conselho de tantos santos que advertiram que só será um bom bispo o padre que não o quiser ser: o psicopata no máximo conseguirá fingir por um tempinho que não quer, mas está ali é para isso. Nas organizações religiosas menores, de seitas judaicas ortodoxas ou pentecostais a agrupamentos religiosos apocalípticos do tipo muito comum nos EUA, passando por novos movimentos religiosos do tipo oriental, é também bastante comum que psicopatas galguem aos postos mais altos sem esforço aparente, confiantes na própria lábia e férrea vontade de poder.

O pior, na verdade, é que frequentemente são eles que passam por exemplares, por bons, puros, santos mesmo. Para seus seguidores, Rajneesh – o “guru do sexo”, que mandou envenenar toda uma cidadezinha americana para que seus esbirros ganhassem eleições locais – era uma pessoa boníssima. Os seguidores trabalhavam de sol a sol sem receber um centavo enquanto ele fazia coleção de automóveis Rolls-Royce, mas mesmo assim, claro, ele era uma gotinha canora de orvalho cor-de-rosa, a bondade em forma de gente. Ninguém quer acreditar em tamanha desumanidade, seja num correligionário seja, menos ainda, num guru, um ídolo vivo, e são poucos os que levam a sério o que deveria ser uma série de sinais sérios de alarme.

No mundo dos negócios é também altamente presente esta categoria, tanto nas grandes empresas (atraentes por haver hierarquias a galgar) quanto no meio empreendedor, na pequena e média empresa. Neste meio, a falta total de escrúpulos dos psicopatas frequentemente lhes proporciona grandes vantagens iniciais, ainda que no mais das vezes seus empreendimentos acabem dando com os burros n’água. Afinal, é quase certo que em algum momento sua arrogância desmedida os levará a dar um pulo maior que as pernas ou a deixar de pagar um fornecedor necessário, e isso há de ser a gota d’água que faz transbordar o copo e leva seu empreendimento à falência. Por culpa de outros, claro, segundo eles: nunca espere que um psicopata assuma a culpa do que quer que seja.

Grande parcela das relações conjugais mais tóxicas, com agressões físicas e psicológicas constantes, do mesmo modo, têm num dos polos um psicopata e no outro uma sua vítima, dependente e defensora. O cônjuge dependente acaba muitas vezes firmemente convencido de que deveria ser grato ao psicopata, por ser indigno tanto de receber qualquer forma de amor quanto até mesmo da dolorosa atenção de seu torturador, que portanto lhe parece um prêmio, um favor imerecido.

Creio não ser preciso alongar-me na atração que o mundo do crime, com suas possibilidades de violência totalmente desregrada e lucros altos e rápidos, exerce sobre eles. Este, aliás, é a meu ver o melhor dos argumentos contra a legalização das drogas; é melhor que os psicopatas ganhem dinheiro rápida e perigosamente vendendo lixo para quem quer comprar lixo que tê-los atacando o restante da população, sequestrando e roubando. Não, claro, que todo bandido seja psicopata. A maior parte da classe criminosa é composta de gente idiota o bastante para admirar um psicopata e tornar-se seu êmulo, numa dinâmica em muito semelhante à caricaturada nos desenhos animados em que um criminoso burríssimo é o ajudante dum mais esperto. Os líderes dos grandes empreendimentos criminosos, todavia, no mais das vezes são pessoas desprovidas de escrúpulos e de empatia, ou seja: psicopatas.

O ponto comum de todas as situações que descrevi brevemente acima é o poder, que o psicopata considera ser naturalmente seu. É na busca do poder que o psicopata em geral coloca tudo o que tem, todas as suas forças, para escapar do que para nós outros são probleminhas chatos da vida, como os desapontamentos, frustrações e desejos não-alcançados. Para eles, cada coisa destas é um espinho cravado na própria carne, uma injustiça de gravidade incompreensível para uma pessoa normal, que sabe que não está com essa bola toda. A única solução – não sendo possível tornar-se deus no lugar de Deus – é o poder e a adoração de seguidores incondicionais, que sempre lhe darão razão e de tudo farão para minorar esses supostos sofrimentos. Do psicopata fracassado que só escraviza o cônjuge ao líder de uma grande potência que se compraz no seu botão nuclear a dinâmica é a mesma, e muda apenas a capacidade e a sorte.

O que nos cabe, e é só o que conseguimos fazer, é prestar atenção séria em nossos familiares e colegas de trabalho, para que não nos deixemos aprisionar em circunstâncias das quais será mais difícil sair. Um cônjuge que não respeita quem deveria completar e por quem deveria ser completado e o agride ou humilha rotineiramente, por exemplo, não está numa relação conjugal. Trata-se, isso sim, duma relação de escravidão, da qual só o que há a fazer é sair o quanto antes. Aliás, dada a incapacidade de entrega dos psicopatas, eles não são capazes de contrair matrimônio. Em outras palavras, eles não vão “tomar jeito”, e o amor não irá mudá-los em nada. Do mesmo modo, seja no trabalho, na rua ou na família, devemos reconhecer que há predadores entre nós e, mais ainda, que eles são incuráveis. Só o que se pode fazer é evitar cair em suas garras e ajudar quem o tenha feito a livrar-se deles. Não adianta fechar os olhos ou tapar o sol com uma peneira: psicopatas são mau negócio, e é um péssimo negócio permanecer por perto de um deles.

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