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O plástico no lixo não desaparece, apenas se fragmenta em pedaços microscópicos.
O plástico no lixo não desaparece, apenas se fragmenta em pedaços microscópicos.| Foto: RitaE/Pixabay

O que é, o que é, que encontramos em todos os pulmões, fígado, baço e rins de seres humanos? Ganhou quem disse que são pedacinhos de plástico. A nossa sociedade enlouquecida e delirante produz quantidades inimagináveis de plástico todos os dias. Plástico tem uma particularidade interessante, para não dizer assustadora: ele é eterno. A não ser que seja queimado, o plástico jogado fora nunca desaparece, nunca apodrece; ele simplesmente se desfaz em partículas muito pequenas, que são levadas pelo vento e se depositam por toda parte. Já foram encontradas estas micropartículas nas neves de montanhas altíssimas, distantes de qualquer habitação humana. A cada dia morrem milhares de animais marinhos, literalmente afogados em plástico. No Oceano Pacífico há uma “mancha” de plástico flutuante do tamanho do estado de Minas Gerais, girando, girando, com seus componentes se fragmentando e entrando na cadeia alimentar oceânica (inclusive no pescado que comemos). E agora uns pesquisadores americanos tiveram a curiosidade de examinar órgãos de cadáveres, encontrando o onipresente plástico nos órgãos que citei acima.

Os arqueólogos costumam nomear as culturas que estudam pelas particularidades das cerâmicas que elas produziam – enfeitadas com cordas, com forma disso ou daquilo etc. Isto por uma razão simples: até a Revolução Industrial, a única coisa que sobrava das culturas, de qualquer cultura, era o que eles faziam com pedras e com cerâmica. E, como cerâmica quebrada é jogada fora, os monturos das culturas anteriores à nossa – compostos basicamente de lixo orgânico, que desaparece, reintegrando-se à natureza – e cerâmica quebrada fazem a alegria dos estudiosos.

Já a nossa cultura é única, e única para pior, pela quantidade absurda de resíduos que produz, e pela toxicidade deles. O plástico, que já forma uma camada por todo o planeta, será um dia usado pelos arqueólogos como indicador da camada de nossa era numa escavação. Os esqueletos que venham a ter sido preservados pelas condições climáticas do lugar de inumação terão entre os ossos – e talvez mesmo, quem sabe, no interior dos ossos – uma fina camada de partículas plásticas. Aqui e ali, perto de onde tiver havido megalópoles, serão encontrados lixões monstruosos, monumentos tóxicos minando venenos por milênios, em que incessantemente jogamos coisas que custaram uma fortuna para fabricar, contendo elementos raríssimos e de dificílima obtenção, mas com vida útil menor que o tempo de vida de um hamster.

Nossa cultura é única, e única para pior, pela quantidade absurda de resíduos que produz, e pela toxicidade deles

E, cereja brilhante no bolo da nossa capacidade de destruição, os resíduos radioativos das usinas nucleares que usamos para produzir a eletricidade usada por multidões que religiosamente assistem ao Faustão numa tevê de 50 polegadas, permanecerão exalando radiação mortal por milênios depois de a camada protetora de concreto que ora os encerra já ter, ela também, se transformado em fino pó de cimento. Um veneno poderosíssimo, invisível, que mata quem chegar perto. Para piorar, não mata na hora, e ainda tem o atrativo extra de brilhar no escuro, garantindo que muita gente fique curiosa e leve para casa, para mostrar à família, um pouquinho daquele veneno mortal. Não agora, claro: garantimos agora o envenenamento de gente que há de nascer daqui a algumas dezenas de milênios.

Sabemos todos que o ser humano não é exatamente angelical. Sabemos que é mais comum que façamos o errado que o certo. A sociedade moderna industrial, contudo, conseguiu levar isso muito além, não apenas matando outros seres humanos seus coetâneos, como sempre foi feito, mas preparando para as futuras gerações armadilhas que fazem as bolas de pedra de que Indiana Jones escapava em seus filmes parecerem brincadeirinha de criança.

A origem deste comportamento vem do que se convencionou chamar o “desencantamento” do mundo, ocorrido na Era Moderna, que atingiu seu auge nos nossos tempos. Até o Medievo, o mundo não era considerado propriedade humana. Até mesmo o sentido moderno da propriedade seria estranho a qualquer outra cultura distante no tempo ou no espaço (estas pode-se dizer que não existem mais, tendo sido a modernidade levada a toda parte).

A terra, com tudo o que ela encerra e com sua capacidade de gerar riqueza pela agricultura e pecuária, sempre foi dita como um dom precioso do Divino. Antes de a Cristandade trazer ao mundo a noção do valor infinito da vida humana, era extremamente comum que, em agradecimento pelas boas safras ou caçadas, as pessoas sacrificassem a divindades seus próprios filhos ou irmãos. Raras foram as culturas em que o sacrifício humano não estivesse presente. O nosso horror a isto vem do fato de termos sido criados em uma cultura de base cristã; ainda que a descristianização da sociedade esteja fazendo com que ressurjam os sacrifícios humanos (por exemplo, abortando um bebê – sacrificando-o – para que a mãe possa concluir uma faculdade sem esse “estorvo”), a relação entre o sacrifício e o agradecimento a divindades ainda não é algo evidente, para muitos.

Para os povos pré-cristãos, todavia, era claro e evidente que cada dom da terra era isto mesmo: um dom, e um dom imerecido. Seria no mínimo grosseiro, e provavelmente perigoso, deixar de agradecer dando algo de volta. Como o mais valioso que se tinha para dar de volta eram os membros do povo que recebera o dom, não era nada incomum que os melhores do povo fossem sacrificados, literalmente mortos, como um dom às divindades que haviam proporcionado a colheita, pesca ou caça que alimentara toda a população. Em alguns lugares, como em Cartago, a oferenda mais típica era um filho. Muitas mulheres engravidavam propositadamente para oferecer o filho a Moloque, o que era feito jogando-se o bebê vivo numa fogueira acesa diante do ídolo de pedra. Na América Central, os sacrifícios eram de jovens; o império asteca demandava de seus vassalos que entregassem os melhores jovens, as mais belas moças e os mais fortes rapazes, para serem sacrificados à Serpente Emplumada, no alto duma dessas pirâmides em que o povo “espiritual mas não religioso” de hoje gosta de subir para “pegar bons fluidos”. O fluido que escorria por elas, todavia, era o sangue humano.

O cristianismo substituiu os sacrifícios humanos infindavelmente repetidos por um sacrifício único, de Deus tornado homem. Este Seu sacrifício torna-se novamente presente de forma incruenta em cada missa, o que faz com que os altares cristãos tenham facilmente substituído os altares pagãos por toda parte aonde chegou a mensagem do Evangelho. Afinal, a necessidade de agradecer os dons recebidos é constante no ser humano, e simplesmente cessar os sacrifícios, sem substituí-los por uma forma superior de sacrifício, seria impensável. É por isto, aliás, que o protestantismo sempre teve dificuldade em vencer o paganismo, a não ser pela força bruta: a mera oralidade protestante, sem sombra de sacrifício, não poderia satisfazer a necessidade humana de agradecimento real, em espécie.

Na modernidade, a Criação inteira passou a ser percebida como um amontoado de “recursos” a explorar, a usar, a gastar, para a maior glória do homem

A modernidade, todavia, ao “desencantar” o mundo, ao substituir a visão cristã da Criação pertencente a Deus, tendo-nos sido entregue para que dela tomemos conta, pela noção de supremacia do homem (não mais de Deus) e propriedade absoluta da terra, mudou tudo isso. A Criação inteira passou a ser percebida como um amontoado de “recursos” a explorar, a usar, a gastar, para a maior glória do homem. Não havia mais necessidade de agradecer a quem quer que fosse, sim de agarrar e aproveitar. Não é por acaso que o zeitgeist do início da Era Moderna tenha possibilitado com que Henrique VIII tenha simplesmente se apoderado de todos os conventos e mosteiros da Inglaterra, que até então tinham sido a fonte da alimentação e dos cuidados de saúde dos mais pobres. Nada mais pertencia a Deus. Até mesmo as áreas rurais de uso comum, em que os pobres sempre haviam podido criar seus bichos e plantar algo para comer, foram tomadas pela Coroa e vendidas aos amigos do Rei. Tudo passou a ter dono, e dono humano.

Da mesma visão de mundo surgiu o delírio capitalista, que considera a propriedade particular o direito primeiro, fazendo acrobacias retóricas para que até mesmo o direito à vida derive do direito à propriedade. Deus, claro, não está mais na jogada. É daí que surgiu a nossa sociedade do descartável, que os arqueólogos do futuro conhecerão como a cultura do lixão, a cultura que envenenou todas as gerações subsequentes. É uma visão de mundo tremendamente diferente de todas as anteriores, tanto cristãs quanto pagãs, por ter “desencantado” o mundo e, com isso, criado uma falsa realidade em que tudo pertence a alguém. Nela, ser proprietário é uma via de mão única. Todos os bens, todos os “recursos” estão completamente à disposição do proprietário, que pode fazer com eles o que bem entender, sem precisar prestar contas a ninguém, agradecer a ninguém ou manter o que quer que seja. Ninguém mais é custódio do mundo: somos todos filhos pródigos, e só não chegamos ainda ao ponto em que invejamos as bolotas dos porcos. Estamos gastando a nossa herança, a herança de nossos filhos, com prazeres fúteis, vazios e transitórios.

Diz-se ser “progresso” o consumismo, a fabricação alucinada de bens descartáveis, como o filho pródigo da parábola provavelmente considerava um grande progresso na sua vida estar cercado de mulheres da vida, bebendo em bares e pagando rodadas aos seus falsos amigos, em vez de estar trabalhando junto ao pai. O plástico é apenas um exemplo disso, ainda que possa ser o exemplo mais forte. Quando olhamos em volta vemos uma enormidade de coisas feitas de plástico e achamos isto normal, mesmo tendo plena consciência de que aquelas porcarias são basicamente eternas, que tudo aquilo continuará no mundo – transformado em micropartículas muito mais perigosas – daqui a centenas de anos.

O paroxismo do plástico é tamanho que já há frutas descascadas e embaladas em plástico à venda nos mercados: bananas e tangerinas com uma falsa casca plástica, fazendo companhia às batatas e cebolas que não se pode comprar sem as embalar em plástico para pesar. Fazemos a barba com um instrumento plástico que jogamos fora ao cabo de menos de uma semana. Mas para onde vai o que “jogamos fora”? Vai para fora, para um lugar em que não precisamos mais ver o lixo, tornando possível fingir que ele não existe mais. Vai para o lixão, para o mar, para o ar. E de lá vem de novo para dentro: para nossos pulmões, fígado, baço e rins, segundo a pesquisa americana, e não duvido que para outros órgãos, também.

Há toda uma fantasia de “reciclagem” de plásticos, na verdade uma mentira cabeluda e poluente. É raríssimo o plástico reciclável, e via de regra sai tão caro fazê-lo que quando acontece é a exceção, não a regra. E o produto desta “reciclagem” dificilmente será, por sua vez, “reciclado”. Na verdade, por incrível que pareça, a maneira menos poluente de lidar com resíduos plásticos hoje em dia é queimá-los! A China, que durante muito tempo importou o lixo plástico americano, chegou a criar usinas termelétricas movidas pela queima de plástico, soltando nuvens negras que se pode ver até em fotos de satélite.

Nalgumas favelas cariocas, evidentemente desprovidas de sistemas de esgoto (e nem entro no assunto dos dejetos humanos, que sempre foram adubo e hoje são tratados com química pesada, quando não são jogados in natura nos rios e mares!), há um pássaro que não foi nomeado por Adão: é o “pombo sem asas”, um saco plástico em que se esvazia o penico, jogando-o longe pela janela, para que aterrisse no telhado de algum vizinho morro abaixo e não fique fedendo dentro do nosso barraco. É exatamente isto, mas em escala industrial, monumental, o que fazemos na Era Moderna: como é tudo “nosso”, como não precisamos mais agradecer a divindade alguma, esgotamos sem dó a terra, fazendo dela um deserto, envenenamos as futuras gerações com nossos dejetos, e não passa pela cabeça de ninguém sequer diminuir este comportamento autodestrutivo.

Ninguém mais é custódio do mundo: somos todos filhos pródigos, e só não chegamos ainda ao ponto em que invejamos as bolotas dos porcos. Estamos gastando a nossa herança, a herança de nossos filhos

Inventam-se maneiras de produzir energia “limpa” que na verdade nada têm de limpas: as pás de um gerador eólico duram pouco antes de virar um lixo eterno, que assombrará o mundo por milênios, assim como as placas de geração de energia solar que cobrem o meu telhado. As hidrelétricas devastam florestas. Da energia nuclear nem falo mais. E tudo isso, repito, para que se possa assistir a vvideocassetadas numa tevê de trocentas polegadas. Ninguém pensa em diminuir o consumo de energia; ao contrário, até, na medida em que se considera que é “progresso” trocar de celular a cada ano e de carro a cada dois ou três anos. Tudo é nosso, tudo é “recurso”, tudo é herança adiantada para filhos pródigos. E o que resta, o que venha a sobrar – o telefone trocado por um mais novo, o carro descartável que chegou ao fim da vida útil, o esgoto, o plástico do aparelho de barbear e o que envolvia as batatas –, tudo isso é, na verdade, uma enorme revoada de “pombos sem asa” em escala monumental, jogados no telhado do vizinho, pois ninguém percebe a responsabilidade humana de cuidar daquilo que – por mais que tenhamos esquecido – é dom de Deus e responsabilidade nossa, que devemos preservar para as futuras gerações.

É apavorante quando a resposta de enorme parcela da sociedade a uma obra do mais básico bom senso, como a encíclica Laudato Si’, é de indignação. É neste momento que percebemos com clareza cristalina que somos uma sociedade pródiga. Perdulária. Dissipadora. Mão-furada. Enlouquecida.

E por milênios, por dezenas de milênios, nossos descendentes chorarão nossas escolhas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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