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Sabedoria
| Foto: Orna Wachman/Pixabay

A quarentena a que fomos todos forçados é uma boa oportunidade para pensar e reajustar as prioridades. Trancados dentro de casa, temos basicamente duas opções: ou bem nos deixamos enlevar pelas miríades de telas que nos cercam, com maratonas de séries, horas e mais horas de estímulos superficiais à atenção nas redes sociais etc., ou bem paramos um pouco com as falsas estimulações e examinamos nossa vida. Afinal, a vida que não é examinada não vale ser vivida.

E é aí que entra uma das várias buscas que competem por prioridade em nossa vida: a da sabedoria. O que é sabedoria? Provavelmente é uma das palavras mais difíceis de conceituar. Para quem crê, a sabedoria é ao mesmo tempo um dom do Espírito Santo e um dos fatores, por assim dizer, da santidade – e seria esta o objeto da busca, sendo a sabedoria apenas um caminho e uma consequência da santificação. Já no século retrasado, passavam por “sábios” os cientistas. Foi o que acabou por dar origem ao cientificismo, ao Visconde de Sabugosa e a tantas outras fantasias que dominaram o século 20. Seria “sábio” o que muito leu, muito estudou, mesmo que suas escolhas, no fim das contas, não fossem lá das melhores.

Já nestes nossos tempos pós-modernos, em plena crise corônguica, parece ser possível chegar a um mínimo denominador comum, em que a sabedoria é simplesmente o paroxismo da sensatez. Surge então novamente a mesma questão. O que é sensatez, essa sensatez de que a sabedoria seria o paroxismo? A meu ver, o ponto central tanto de uma quanto de outra, tomando, claro, a sabedoria infusa sobrenatural da crença como parte integrante do mesmo fenômeno, sensatez – logo, sabedoria – seria a percepção do todo, da ordem de todas as coisas, e a adequação de pensamentos e atos a ela. E, realmente, é possível encontrar pontos em comum entre a sabedoria ou sensatez de nossa civilização e cultura com a própria percepção oriental do Tao, que, com todos os seus problemas (que não são poucos), também repousa sobre a percepção de uma ordem invisível, mas totalmente presente.

Sensatez – logo, sabedoria – seria a percepção do todo, da ordem de todas as coisas, e a adequação de pensamentos e atos a ela

Reconhecemos o que vemos pelos seus acidentes, ensina-nos a filosofia. Os acidentes são aquilo que só existe noutra coisa, como a altura ou o peso (ou alguém aqui já viu um quilograma, distinto de uma coisa com este peso?). Assim, quando olho para o lado e vejo o meu filho, são seus traços característicos que me levam a conhecê-lo. Se ele mudasse radicalmente de aparência, sem deixar de ser a mesma pessoa, o mesmo objeto de (re)conhecimento, eu levaria algum tempo até perceber que é mesmo ele que está ao meu lado. A percepção do que vemos, todavia, uma vez operada, dispensa os acidentes. Ninguém pensa em alguém que se ama, em alguém que está sempre ao nosso lado, como um composto daquilo que os sentidos conseguem captar. A pessoa é realmente existente, mas se coloca além dos seus acidentes; é por isso que, depois que reconhecemos a pessoa que muito mudou, continuamos a reconhecê-la e a pensar nela como sendo uma única pessoa, antes e depois de sua aparência ter sido mudada.

Como, todavia, podemos fazer para reconhecer a ordem subjacente que informa esses entes? O que subsiste sob o subsistente sob o sensorialmente perceptível? Não é tão simples assim perceber esta ordem que faz com que sejam parte do mesmo fenômeno complexíssimo o fato de que dois corpos se atraem na razão direta de suas massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, e o outro fato de que nos faz tremendo mal cometer adultério, matar ou mentir. Pois a sabedoria nada mais seria que encaixar-se perfeitamente nesta ordem. Ora, tudo nela se encaixa; paradoxalmente, mesmo o que nela não se encaixa – a senhora de filhos criados que tenta adotar a aparência de uma mocinha núbil, por exemplo, por não aceitar que o tempo passou – acaba, de um modo ou outro, por encaixar-se. A sobredita senhora, por exemplo, é um perfeito exemplo de como a nossa natureza marcada pelo pecado original nos impede, por vezes, de perceber a realidade dos fatos.

São os engodos em que caímos, em que por vezes chegamos a nos empurrar, fazendo força tremenda para sermos iludidos por nós mesmos, que provam fazermos todos parte da mesma espécie, entes individuados da mesma natureza. Todo, ou quase todo, rapaz tem dificuldades em manter-se casto; toda ou quase toda moça bonita tem dificuldades em manter-se humilde. E é nisso, nesta percepção de que nós, ao contrário dos bichos, podemos nos afastar dessa ordem de todas as coisas que começamos a perceber onde ela está. E, percebendo-a como ela é, como algo que a tudo permeia, podemos dar o primeiro passo no sentido de tentarmos, a duras penas, eliminar de nossa percepção estes tantos engodos e, assim, quem sabe, podermos começar a nos amolgar à ordem de todas as coisas.

Em outras palavras: reconhecemos a ordem ao mesmo tempo por reconhecermos o que dela é perceptível, ou seja, o que vemos dela em ação nas coisas, bichos, plantas e pessoas com quem convivemos, e, na outra mão, pelo seu reconhecimento negativo, pela percepção duma ausência dela no que nos aparece como mau. Isto, aliás, no mais das vezes será facilmente reconhecível como tendo surgido da mente e da ação do homem. Cachorros não saem da ordem, ainda que – bichinhos burrinhos que são – por vezes comportem-se de maneira absurda. Aqui mesmo, por exemplo, nesta bela manhã de outono, havia dois cachorros parados, como leões de pedra na porta dum prédio, ao redor do pote de comida. Estavam, à sua maneira canina, tentando discernir uma hierarquia. Como quem come primeiro está mais altamente situado nela, nenhum dos dois ciosos e briosos canídeos queria deixar o outro comer antes. E assim ficaram, por horas, até que algo os despertou deste transe. Idiotas, sim, pois nada mais são que cachorros, mas extremamente cuidadosos das hierarquias, da ordem das esferas. Só não sabiam ainda em que ponto dela deveria cada um dos dois estar.

Não é muito diferente este comportamento do de uma pessoa que disputa com outra um cargo de mando, uma promoção ou medalha, ou qualquer desses simbolozinhos de status a que se dá tanto valor na nossa sociedade. Ao homem, contudo, é facultado disputá-los dentro ou fora da ordem, ou mesmo não os disputar. Afinal, os últimos serão os primeiros! Para Kant, seria imoral querer ser o último para ser o primeiro; para gente mais sábia e sensata, todavia, poucas coisas fariam mais sentido.

A busca da sabedoria, assim, tem como primeiro degrau necessário a busca da ordem, a busca de percepção e de alguma compreensão de uma ordem tão maior que nós mesmos (que, afinal, nela estamos) que nos é, na prática, impossível percebê-la toda. Dizem que uma borboleta batendo as asas na Ásia pode ser causa necessária dum furacão no Ocidente. Isto ocorre por tanto ela quanto o furacão serem elementos (logo, ao mesmo tempo, causa de efeitos e efeito de causas) desta ordem. Não nos seria jamais possível, todavia, calcular o furacão a partir da movimentação alada da borboleta. É por isto que digo que a ordem está muito além de nós mesmos. Podemos, todavia, perceber que toda ação terá efeitos, e esses efeitos serão sentidos sobre coisas muito distantes. A partir daí podemos tentar discernir alguns destes efeitos, ao menos os mais imediatos.

A nossa sociedade especializou-se em substituir a ordem real por pseudo-ordens inventadas. Da Constituição à ABNT, da meteorologia ao tarô, tudo tenta substituir a complexidade pela simplicidade

Afinal, a ordem é tão infinitamente complexa que seria absurdo um ser humano percebê-la em sua totalidade. Ao mesmo tempo, ela está tão presente que seria igualmente absurdo negar a sua realidade. Apenas alguém que viva uma vida de fantasia, alimentada quase que apenas por telas, contas bancárias e comida a domicílio, consegue fingir que ela não existe. Fingir que o adultério, o furto ou o homicídio não lhe fará mal. A nossa sociedade, contudo, especializou-se em substituir a ordem real por pseudo-ordens inventadas. Da Constituição à ABNT, da meteorologia ao tarô, tudo tenta substituir a complexidade pela simplicidade – uma falsa simplicidade; na verdade uma simplificação, errada desde o início – em prol de uma suposta capacidade humana de compreensão deste novo todo, tão menor que o real.

É isto a modernidade, na verdade: a substituição da ordem real por ordens falsas, por “grandes narrativas” em que a soma de todas as ações humanas resume-se a uma relação de oprimidos e opressores ou à geração e mudança de mãos da riqueza. Ou, ainda, à participação humana numa espécie de carrossel fantástico de reencadernações, em que todos fomos Cleópatra no século passado e agora fomos todos prostitutas francesas, ou qualquer outra que seja a fantasia do momento.

Paradoxalmente, é justamente a sociedade de fantasia criada pela modernidade, a sociedade em que é possível não saber a fase atual da Lua, mas é quase impossível não saber que existe Big Brother na tevê, que gerou a pandemia (pela aglomeração metropolitana de gente tossindo na cara uma da outra) e a quarentena, com cada um trancado em seu caixotinho, como boa abelha-rainha, atento apenas às miríades de pequenos e desinteressantes (no varejo) atratores de atenção superficial, que no atacado acabam por consumir-nos horas e mais horas de cada dia. E o que sobra, o que fica de fora desta simplificação, acaba sendo o mais importante da vida, que é a necessidade de examiná-la, e a suas prioridades, todos os dias.

As prioridades da modernidade burguesa eram o dinheiro e a família nuclear. Na pós-modernidade, a família nuclear já dançou (ou, antes, foi substituída pela pornografia), mas o dinheiro continua à toda. O que vemos, então, são pessoas que trabalham como loucas fazendo nada, ou simplesmente mexendo alguma coisa qualquer daqui para ali, para ganhar dinheiro o bastante para suprir sua “necessidade” de telas em que assistir suas pornografias (explícitas ou implícitas). O próprio dinheiro, de uma certa maneira, vira pornografia, assim como a alimentação (oi, fotos de comida no Instagrão!) ou a decoração de interiores.

Quando, todavia, a rodinha de hamster da sociedade para um pouco que seja, como agora por conta da pandemia, é finalmente possível perceber que as roupas de marca no armário simplesmente não fazem sentido. Ou que a busca constante da pseudossaciedade pós-orgásmica da vida pornográfica faz ainda menos sentido. Ou que a luta para comer ainda mais e mesmo assim emagrecer tampouco se encaixa numa ordem de todas as coisas que se torna um pouco mais parcialmente visível pela disrupção dos mecanismos com os quais cotidianamente a escondemos.

A busca da sabedoria, assim, passa a ser mais possível. Mais fácil, ou menos difícil. Sabemos já que ela não está nas telas e nos pequenos impulsos irrelevantes repetidos ad nauseam nelas. Mas onde ela estará? Nos livros? Nas folhas das árvores que caem sempre na mesma época? No casalzinho de namorados que acaba de descobrir o mesmo que seus pais, e seus avós, e seus bisavós descobriram antes, sempre pela primeira vez? Ao mesmo tempo, ela está nisso tudo e em nada disso. Tudo a reflete, mas nada a reflete por inteiro.

Sabemos, todavia, que o primeiro lugar a buscá-la é dentro de nós mesmos, pois dela fazemos parte. E só quando as telas são uma a uma desligadas, quando a corrida desabalada em busca de símbolos de status para um pouquinho e somos confrontados com a inexorabilidade da morte é que podemos começar a pensar em sabedoria, ainda que apenas na sua forma mitigada de sensatez.

Espero que emerjamos um pouco menos insensatos desta quarentena.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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