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Técnica e filosofia
| Foto: Pixabay

Poucos temas são mais cabeludos que o ensino das crianças e adolescentes. Num país em que burocracias estatais insanas metem o bedelho em tudo, o ensino consegue ser uma das áreas mais reguladas (ou seja: mais engessadas, mais doentias, mais tortas, mais deformadas...). O MEC (que digo ser o Ministério da Estupidez e Canalhice) consegue definir quem pode dar aula (os portadores de um determinado canudo que, no mais das vezes, não garante nem que seu portador seja alfabetizado; assim, ficam muitas vezes de fora os melhores professores), de quê (um currículo delirante, na prática impossível de ser ministrado a contento, com uma progressão mais louca que a mãe de dom João VI), em quanto tempo (desde os dias letivos até o número de aulas de cada matéria por semana, tudo é definido em Brasília e igualzinho pra escolinha fluvial flutuante no interior da Amazônia e para o colégio caro de uma capital do Sul ou Sudeste), e por aí vai.

Deixemos de lado, todavia, a triste realidade, na medida em que não nos é dado fazer justiça demolindo o MEC, salgando as ruínas para que nada nelas crescesse e dando a cada funcionário a escolha entre uma passagem só de ida para a beira da Transamazônica (com um facão de brinde, porque hoje estou me sentindo generoso) ou a demissão sumária para que tentem ganhar a vida honestamente. Vamos diretamente ao ideal, mesmo porque o ideal muitas vezes pode servir para – por contraste – iluminar um pouco o tamanho do buraco em que fomos enfiados ao longo do último século.

A primeira coisa a definir (e tudo sempre deve começar pela definição do que está em jogo) é o que é, por assim dizer, “ensinável”. O vício da classe docente nos sofismas de Paulo Freire leva muita gente boa a rejeitar liminarmente uma “educação” “conteudista”. “Educação” está entre aspas, por – a meu ver – não fazer o menor sentido confundir ensino escolar e educação. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. “Educação”, literalmente, significa “levar pra fora”. Pra fora da bolha, da caixinha, da casa dos pais, do pensamento programado, da mediocridade etc. Ela não significa nem apenas ensinar a dizer “obrigado” e “por favor” (coisa que compete à família) nem ensinar a fazer coisas. O ensino escolar consiste basicamente em ensinar a fazer coisas, mas não é isso que leva uma pessoa “para fora” da caverna de Platão em que nascemos.

O vício da classe docente nos sofismas de Paulo Freire leva muita gente boa a rejeitar liminarmente uma “educação” “conteudista”

Mas que coisas são estas que o ensino escolar deve tornar os alunos capazes de fazer? Elas têm duas naturezas básicas: a primeira é a eminentemente técnica. Vem de uma confusão acerca disto, por exemplo, o bestialógico socioconstrutivista que na prática impede a alfabetização da grande massa dos brasileiros. Ler e escrever são uma técnica. Na verdade, uma coleção de técnicas: a técnica de destrinchar a composição de cada palavra (letras, sílabas...), seu som e sentido; a de entender uma frase (se alguém entende a frase “João matou Antônio com um tiro na cabeça”, ela não irá cair na esparrela de dizer que as armas, não o João, matam. Adjuntos adverbiais e sujeitos são coisas bem diversas), um texto, seu estilo; e por aí vai. E, claro, bem mais difícil que isso, a de saber fazer essa coisarada toda. Escrever é bem mais difícil que ler. Mas a péssima pedagogia que grassa em nossas escolas acha que basta botar uma criança na frente de um piano com uma vitrola tocando Rachmaninoff por trás para que ela se torne concertista, sem jamais ter aprendido a mexer os dedos independentemente, bater nas teclas, ler partituras etc. Ou seja: tomam o resultado final não por objetivo, mas por ponto de partida. Ora, isso não funciona com absolutamente técnica alguma. Até jogador de futebol passa horas treinando “fundamentos”.

A técnica, claro, não se esgota no ler e escrever; fazer contas também é uma técnica. E também são técnicas a medicina, a biologia, a engenharia etc. São meios, apenas; uma técnica é um meio, por definição, que pode e deve apontar para algo além dela. Ninguém aprende piano, para voltar à mesma metáfora, para tocar apenas exercícios. A técnica do piano serve para que se toque música, e os exercícios são a ferramenta pela qual os dedos conquistarão agilidade, precisão, e tudo o mais que torna possível fazer boa música. A escrita do mesmo modo; de nada adianta saber escrever magnificamente quando não se tem nada a dizer. A engenharia, do mesmo modo, de nada vale se não se tem nada a edificar ou consertar.

E é aí que entra ainda outra coisa, a segunda metade do tal “conteudismo” tão denegrido pelos seguidores de Paulo Freire. O “conteúdo” pode ser ou bem uma técnica ou bem outra forma de ferramenta: o conhecimento necessário para que a técnica seja posta a bom uso. É, contudo, sempre um meio. São parte disto, por exemplo, a capacidade de entender física newtoniana básica ou de resolver equações de segundo grau, ou a história da América Latina, ou, ainda, os afluentes da margem direita do Amazonas, os estados de cada região etc. Mas – e é aí que também peca tremendamente a escola tupiniquim – de nada adianta saber que delta é igual a bê-dois mais ou menos quatro-acê se não se sabe para que serve uma equação de segundo grau. Confesso que nunca encontrei alguém que houvesse aprendido na escola para que serve aquela fórmula, o que, a meu ver, é a pá de cal que faltava no ensino brasileiro. Melhor seria fechar as escolas que torturar crianças com absurdos sem sentido (pois a técnica que não tem uso não tem sentido, na medida em que seu uso é seu sentido).

Tudo isso, então, são ferramentas. A História, a Geografia, a Matemática, a Gramática e mesmo a Literatura (que não tem nada a ver com o que se vomita sob este nobre nome em nossas escolas, por favor!) não são nem poderiam jamais ser fins em si mesmos. Trata-se de um monte de ferramentas, ferramentas que deveriam ser muito bem encaixadinhas umas nas outras, mas que, no que passa por ensino nestes tristes trópicos, acabam sendo mero “conteúdo bancário”. Taí, eis que me vejo, para meu horror, concordando com Paulo Freire. É um absurdo, mesmo.

Há ainda outra praga – peço perdão pelo excurso – que vem de se enfiar um monte de ferramentas desconexas na cabeça das crianças, sem ensiná-las para que servem, como estão relacionadas ou, pior ainda, o que é a realidade dos fatos. Trata-se do cientificismo, uma forma de burrice que consiste em achar que como ocorrem os fenômenos naturais de alguma forma mágica indicaria o porquê e o para quêdeles ocorrerem, o quê é cada coisa, e por aí vai. O pobre adepto do cientificismo, por exemplo, tende a crer que a “Ciência”, assim mesmo, com C maiúsculo, “provaria” de alguma maneira a inexistência de Deus (ou de qualquer outra coisa que não possa ser pesada, medida etc.), sem perceber que, como ela é o estudo do que é pesável, mensurável etc., ela não tem nada a dizer sobre Deus, o Bem, o Belo, a Justiça ou o mundial do Palmeiras.

Mas há outra coisa, infinitamente mais nobre que a mera apresentação de ferramentas, que o ensino escolar deveria fazer, e que no Brasil nem se cogita. Na verdade, nem o ensino escolar nem o universitário, por estas bandas, cogitam do que quer que seja que não um tal de enfiar besteiras desconexas na cabecinha do aluno para que ele as vomite depois na prova, para que no fim do processo ele ganhe um canudo inútil. Costumo dizer que as faculdades de Direito, por aqui, são meros cursos técnicos de Direito Positivo, coisa que está para ensino superior de verdade como um curso de conserto de rádios e tevês está para um doutorado em Física pura. Tome-se um bacharel desses aí, vomitados aos magotes a cada fim de semestre por miríades de faculdades tão patéticas que não conseguem nem preparar os coitados para a prova da OAB, e pergunte-se-lhe coisas simples, básicas, elementares: “o que é Direito?”, “o que é Justiça?” Se ele souber responder algo mais profundo que “hããã”, é porque se pôs a pensar no assunto fora do tempo gasto polindo as cadeiras da faculdade enquanto colava numa prova ou debatia hermenêutica de sei lá que leizinha ridícula.

Melhor seria fechar as escolas que torturar crianças com absurdos sem sentido

O que poderia, então, ser esta coisa que lhe falta? Simples, caro leitor: filosofia. Filosofia de verdade, veja bem, não esses jogos de RPG e castelinhos mentais sem qualquer relação com a realidade que usurparam de Descartes para cá o nobre nome da arte de Platão e Aristóteles: metafísica, ontologia, antropologia filosófica, ética, essas coisas. Aí me vem alguém e diz que há aulas de Filosofia (e Sociologia, vejam só que coisa mais chique!) no ensino médio. Tentando não devolver ao ar livre meu almoço, explico que é exatamente o oposto do horror ora presente que é necessário. A filosofia clássica, a filosofia perene, que soma todo o conhecimento filosófico que a humanidade conseguiu sistematizar de alguns séculos antes de Cristo até o início da Era Moderna, serve para que a pessoa entenda quem ela é, onde ela está, o que deve fazer, essas coisas. As perguntas básicas: quem sou eu? O que estou fazendo aqui? Para que serve a vida? O que é o Bem? Não as besteiras de “o que me é dado saber?”, como se estivesse em dúvida que quando sentimos a bexiga cheia devemos correr para o banheiro.

Escrevi outro dia, para horror de uma amiga engenheira, que a meu ver a engenharia (e a biologia, a química, a física, o que for) só deveria poder ser estudada depois de um propedêutico de filosofia. Afinal, ora bolas, todos estes campos de conhecimento são meras áreas especializadas da filosofia. Na verdade, mais ainda, são todos eles partes de uma só área da filosofia clássica, a chamada “filosofia natural”, que estuda a Criação. O mensurável, pesável, quiçá fotografável. Mas este é um campo pequeno da filosofia e, mais ainda, um campo sumamente pobre por ser completamente técnico. Um engenheiro sabe construir o que lhe for solicitado, mas não sabe nem tem meios para discernir se ele deve ou não fazê-lo. Foram engenheiros que construíram as câmaras de gás e os fornos crematórios de Auschwitz, as bombas atômicas, os televisores, o Marea e tantos outros horrores. Isto, evidentemente, não significa que todo engenheiro – e só os engenheiros – seja genocida em potencial. Não; genocidas em potencial somos todos, mas o engenheiro tem a capacidade técnica para ser um genocida muito mais eficiente que, digamos, o arquiteto. Daí a importância tanto maior que há em formá-lo de tal maneira que ele não caia nesta tentação. Como ele raramente tem a chance de aprender algo acerca dos fins dos atos, de ética etc., é extremamente comum que sejam engenheiros os mais entusiasmados membros de grupelhos que aderem a uma ou outra simplificação exagerada da realidade, que eles percebem como precisando ser “consertada”, sem contudo perceber nem sequer o que ela é. Não é por acaso que tanto Bin Laden quanto grande parte dos terroristas do 11 de Setembro tenham sido engenheiros. Não é que a engenharia os tenha feito maus; é que nada os ajudou a não o ser, enquanto a engenharia lhes deu uma ilusão de controle sobre a realidade.

O mesmo, claro, vale para todas as demais técnicas. Um médico, um biólogo, um químico, um farmacêutico ou qualquer outro técnico sofre do mesmo problema de base. É ele que faz com que, por exemplo, os médicos tenham enorme dificuldade em perceber seus pacientes como seres humanos, não como máquinas precisando de conserto, infelizmente “habitadas” por um fantasminha chato que – se começar a dar trabalho demais – deve ser remetido ao psicólogo (que o médico em geral percebe como uma espécie de picareta ou hipnotizador). Ivan Illitch escreveu maravilhosamente sobre isto.

É fundamental que tenhamos, antes de passar daquelas técnicas que são necessárias para a vida em sociedade (ler, escrever, fazer contas, saber que pro norte é mais quente e entender as estações do ano, essas coisas) àquelas que nos farão cidadãos úteis, sócios-atletas da mesma sociedade, a capacidade de discernir as causas, as quididades e os fins. E é disso que trata a boa filosofia: o que é cada coisa (ou ser, ou mesmo pessoa), de onde ela veio, para onde ela vai, o que lhe é adequado...

Assim, se me fosse possível (e não é nem jamais seria; sonhemos, contudo) consertar o ensino brasileiro duma penada, fazendo surgir bons professores como os cogumelos que vêm depois da chuva aos primeiros raios de sol, minha “receita” básica seria a seguinte: primeiro, no ensino primário (fundamental um, nos tristes dias que correm), ensinar a ler, a escrever e a fazer contas. Parece pouco, mas é muitíssimo mais que o que é ensinado hoje, quando é a regra, não a exceção, que depois de 12 ou 13 anos de suplício escolar os alunos sejam regurgitados pelas escolas perfeitamente incapazes de entender uma notícia de jornal ou de escrever uma receita de ovo frito sem erros crassos. No antigo ginasial (fundamental dois), as técnicas mais aprimoradas, para as quais é necessário saber ler, escrever e fazer contas: Lógica, Retórica, História, Geografia, Biologia, Física, Geometria... Sempre, claro, com os dois pés firmemente plantados no chão, sem que jamais, por um segundo que seja, os alunos possam ter a mais leve sombra de dúvida do uso daquilo na sua vida em sociedade. Ou seja: o oposto do que se tem hoje.

E, finalmente, no ensino médio, como propedêutico indispensável para a educação superior, Metafísica, Ontologia, Antropologia Filosófica, Ética... A base, em suma, para que qualquer coisa que venha depois seja perfeitamente encaixada num quadro do mundo, numa percepção de toda a realidade em que não haja dúvidas sobre, por exemplo, o valor da vida humana ou as prioridades sociais. Afinal, “desenvolvimento”, “preservação ambiental”, “direitos humanos”, por exemplo, têm relações entre si que só podem ser discernidas com um bom conhecimento das matérias que citei acima. Assim um engenheiro teria como dar sempre bom uso à sua técnica; um médico jamais cairia no engano de negar a unidade substancial da psique e do corpo – ambos talvez doentes, ou saudáveis; não é contudo possível que um esteja são e o outro não, pois são uma só coisa! – de seus pacientes; um químico, farmacêutico ou biólogo não teria tanta facilidade em ser levado pelo nariz por capitalistas inescrupulosos a desenvolver porcarias que envenenam multidões, mas garantem lucros.

Se o aluno não tiver capacidade intelectual, ela jamais poderá ser comprada ou “implantada” nele

A ética não é nem pode, nem nos sonhos mais delirantes do analfabeto mais emaconhado dos campi das federais, ser reduzida a uma “disciplina” na faculdade, normalmente sem sentido algum ou – pior ainda – que tenta reduzi-la a uma série de “conselhos de bom comportamento”, listinhas de deveres e direitos, ou imbecilidades semelhantes. Não há ética possível sem teleologia e ontologia, e quem não sabe sequer o que são estes vastos campos do conhecimento humano não tem como ter a mais vaga noção do que seria um comportamento ético, que dirá de uma ética. A técnica, sem uma teleologia eticamente ordenada, é um perigo antes de ser uma solução.

Vejam contudo os senhores que estou tratando do percurso rumo aos estudos ditos superiores. Estes deveriam, evidentemente, ser restritos aos que têm real capacidade para estudos superiores, o que é praticamente impossível que alcance 5% da população. Não interessa se papai e mamãe têm muito dinheiro: se o aluno não tiver capacidade intelectual, ela jamais poderá ser comprada ou “implantada” nele. O grosso da população não tem capacidade para tais estudos, e para eles deve haver outros percursos, já iniciando no ensino médio, em que a formação filosófica seja mais atenuada e já haja o ensino simultâneo de um ramo técnico em que a pessoa possa encontrar-se desempenhando um papel não de criador (como nos de que tratei acima), mas de executor: mecânica, marcenaria, eletrônica, eletrotécnica, rábula, jornalista, agente de turismo, contador, o que for.

O que decididamente não dá é para a coisa continuar como está. Mais valeria retirar o Estado completamente de campo e deixar o mercado tomar conta (o que, por si, é uma péssima ideia, pois o mercado, por definição, busca fins errados por eminentemente materiais) que permanecer assim. O que temos é uma fábrica de Paulos Freires e Osamas.

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