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V de Vingança: a história que não foi para a telona
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Antes de tudo, um aviso: o texto abaixo contém vários SPOILERS para quem não leu a HQ V de Vingança.

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Muitos escritores de histórias em quadrinhos vivem uma relação de amor e ódio com a indústria cinematográfica. Alguns, como Frank Miller e Mark Millar, são queridinhos de Hollywood e têm uma ligação estreita com produtores e executivos dos estúdios – Miller já chegou até a dirigir um filme, apesar deste ser de uma qualidade bem duvidosa (sim, estou falando da bomba The Spirit).

Com Alan Moore, o inglês barbudo e recluso, ocorre exatamente o contrário. Nada de “amor e ódio”. É só ódio mesmo. Contrariando o que qualquer escritor faria ao ter uma obra sua adaptada para o cinema, Moore abre mão dos direitos de suas histórias (e assim, de lucrar em cima disso) para não ter seu nome estampado na lista de créditos ou no cartaz da produção. Para ele, tais filmes não têm nada a ver com seus quadrinhos.

Não é à toa. Afinal, já se tornou praxe dos estúdios pinçar personagens e séries consagradas da literatura e das HQs e, com o intuito de atingir o maior público possível, “reformular” alguns conceitos das histórias, a fim de torná-las mais “acessíveis”. Certo que é uma tarefa ingrata adaptar uma HQ de centenas de páginas em duas horas de filmes, mas muitos roteiristas acabam indo para o caminho mais fácil: esquece-se as subtramas, o contexto, a diversidade de interpretações, e produz-se uma aventura juvenil para toda a família.

A verdadeira Liga Extraordinária, desenhada por Kevin O’Neil.

A Liga Extraordinária (The League of Extraordinary Gentlemen, 2003), filme baseado na festejada série de Alan Moore e Kevin O’Neil, é um exemplo emblemático. A premissa da HQ é muito boa: reunir personagens consagrados da literatura, subverter seus comportamentos e colocá-los em aventuras controversas, enfrentando inimigos bizarros. Quem nunca imaginou, de fato, o destino de Mina Murray após a aventura de Drácula? Ou o que o Homem Invisível de H.G. Wells continuava aprontando? Pois bem. O filme chegou e simplesmente não utilizou nada do que de fato havia dado certo nos quadrinhos. Os “heróis” estão lá, capitaneados por um Sean Connery que até hoje deve estar se perguntando como diabos foi parar numa encrenca dessa. E aí temos mais uma “aventura para toda a família”, que, mesmo se partisse de uma ideia original, passaria totalmente despercebida.

Muita gente – e aqui entram os fãs xiitas de quadrinhos – também torceu o nariz para a adaptação de Watchmen, uma das obras máximas de Alan Moore e das HQs como um todo, feita por Zack Snyder em 2009. Mas reconheço que, fora os arroubos de estilo de Snyder, como suas câmeras lentas, até que foi uma homenagem decente. Tanto que o filme patinou nas bilheterias e deixou muito espectador se questionando que tipo de filme de “super-herói” era aquele. Watchmen não é mesmo para o grande público, que procura nos cinemas uma aventura à lá X-Men ou Homem de Ferro. Bom, isso não bastou para Alan Moore, que mais uma vez quis se ver longe de ter seu nome relacionado à adaptação. Nos créditos do filme, consta apenas a menção a Dave Gibbons, ilustrador da saga.

Mas, depois deste nada breve preâmbulo, o filme que eu gostaria de comentar neste post é o hoje popular V de Vingança (V For Vendetta, 2005), adaptação dos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd dirigida por James McTeigue com roteiro e produção dos Irmãos Wachowski (os eternos criadores de Matrix). Você pode nunca ter visto o filme e muito menos lido a HQ, mas certamente já viu por aí um dos símbolos da trama: a máscara circense de Guy Fawkes adotada pelo grupo hacker Anonymous e depois por milhares de manifestantes em protestos diversos pelo mundo.

V De Vingança, no traço de David Lloyd.

A série V de Vingança foi a primeira tentativa de Alan Moore de produzir uma série continuada, ao longo de vários meses e anos – começou a ser publicada em 1982 na revista britânica Warrior e seguiu até 1983, para depois ser relançada pela DC Comics em seu selo adulto, Vertigo. Hoje, é relativamente fácil de ser encontrada nas livrarias brasileiras em uma edição encadernada lançada pela Panini.

A obra original é um drama político denso, ilustrado em tons de história noir, repleto de personagens e tramas complementares que rodeiam o personagem principal, V, um terrorista (aqui, a definição assume significados distintos) mascarado que desafio o governo fascista de uma Inglaterra futurista. Após salvar a adolescente Evey Hammond de um ataque de agentes do governo, V arregimenta a garota para sua causa, manipulando-a e criando com ela uma estranha relação, às vezes sádica, às vezes quase fraternal.

Ao longo de dois anos, V embarca em uma série de maquinações e ataques com o objetivo direto de instaurar o caos e derrubar o status quo vigente, substituindo o fascismo pela completa anarquia. No meio do caminho, tenta abrir os olhos dos cidadãos para a tirania do governo, não os eximindo de culpa por terem permitido que o partido atual chegasse ao poder. Um dos mais emblemáticos discursos de V escritos por Alan Moore está no momento em que o anti-herói invade uma emissora de TV e passa a se dirigir aos milhões de espectadores que o acompanham de casa (perceba como a fala é atual):

“Nós tivemos uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um sem-número de decisões catastróficas. Isso é inegável. Mas quem os elegeu? Você! Você indicou essas pessoas. Você deu a elas o poder para tomarem decisões em seu lugar! Claro que qualquer um está sujeito a se equivocar, mas cometer os mesmos erros fatais, século após século, parece uma atitude deliberada. Você encorajou esses incompetentes, que transformaram sua vida profissional num inferno. Aceitou suas ordens insensatas, sem questionar. Sempre permitiu que enchessem seu espaço de trabalho com máquinas perigosas. Você podia ter detido essa gente. Bastava dizer não. Você não teve orgulho próprio. Perdeu o valor que tinha na companhia (V faz uma analogia a Londres como se esta fosse uma grande empresa). No entanto, eu serei generoso. Você terá dois anos para aprimorar seu trabalho. Se, ao fim desse período, não apresentar resultados satisfatórios… será cortado”.

Texto denso de Alan Moore complementa arroubos visuais e estilísticos trazidos por Lloyd.

Como se pode ver, a força de V não está em habilidades físicas quase sobrenaturais (como supõe a produção hollywoodiana), mas sim em seu carisma, sua oratória e seu intelecto. Seus objetivos só serão cumpridos se ele ultrapassar a barreira que o limita como um homem comum para então se tornar uma ideia – esta sim passível de ser assimilada e reproduzida pelos cidadãos. “Você pretendia me matar? Não há carne ou sangue dentro deste manto pra morrerem. Há apenas uma ideia. Ideias são à prova de balas”, diz o mascarado, em um de seus derradeiros momentos.

Em um artigo escrito ainda na época de publicação da HQ, Alan Moore lança luz sobre as motivações do personagem e a complexidade da trama, em comparação aos populares quadrinhos de super-heróis:

“O mais importante foi quando nos demos conta de que a história que estávamos narrando se afastava cada vez mais da proposta ‘um homem contra o mundo’ com a qual havíamos começado. A combinação dos meus textos e os desenhos de David fez emergirem elementos que não lembramos de ter proposto. Houve ressonâncias que pareciam apontar para questões maiores do que as abordadas habitualmente pelos quadrinhos”.

Curioso que, na adaptação para o cinema, o que acabou sobressaindo foi mesmo a ideia de “um homem contra o mundo” cogitada inicialmente por Moore. Sim, temos como pano de fundo a mesma Inglaterra futurista e fascista, mas o roteiro, ao contrário da HQ, é muito mais linear e objetivo. Na telona, V surge como um ser em busca de vingança, na clássica história do monstro que se volta contra seus criadores. A revolta da população parece ser mais um efeito colateral do que uma meta em si.

V e Evey: uma improvável dupla romântica.

Aí, surgem algumas distorções que, se ajudam o espectador a assimilar a história, causam chiliques nos adoradores da obra original. No filme, V e Evey se tornam praticamente amantes, numa improvável dupla romântica – vale lembrar que, na HQ, Evey é salva por V no momento em que a garota tentava se prostituir nas ruas. Os roteiristas também, ao que parece, levaram a sério demais o conceito de V se tornar uma ideia a ser adotada pelos cidadãos. Nos quadrinhos, a insurreição da população se dá ao longo de meses, sem controle, com vandalismo e combates brutais entre as forças de segurança e os manifestantes – toda a sociedade entra em colapso, para o bem e para o mal. Nada perto do fim festivo do filme, em que uma multidão de V’s desfila incólume pelas ruas de Londres, em uma passeata organizada e pacífica.

Outro momento bastante constrangedor filmado por James McTeigue é o embate final de V contra seus algozes, em uma estação de metrô abandonada. Por alguns momentos, V se torna uma mescla de Batman e do herói dark O Corvo, resistindo a uma saraivada de balas para depois derrubar um a um com golpes rápidos e adagas afiadas. Nos quadrinhos, a cena é muito mais sóbria: V acaba morto pelo inspetor Finch, um personagem central da trama, que ganha tanta espaço nas páginas quanto Evey ou o próprio protagonista.

O V de Hugo Weaving: atuação competente, mesmo sem nunca mostrar o rosto.

Não vou ser aqui o chato da vez que só quer detonar o filme. V de Vingança merece sim ser visto e tem seus méritos. A HQ e a famosa máscara de Guy Fawkes só se popularizaram entre o grande público – os jovens, principalmente – após a chegada da adaptação à telona. Além do mais, os produtores do filme foram, de certo modo, corajosos. Não é todo dia que um grande estúdio – no caso, a Warner Bros. – banca uma superprodução que traz como protagonista um terrorista que quer explodir o Parlamento inglês. Hoje, V é um personagem da cultura popular, mesmo que muitos que usam sua máscara sequer conheçam a gênese deste anti-herói.

O melhor é que, na época, os encadernados da série esgotaram nas bancas, justamente porque muita gente foi atrás da história original. E, como sempre, se eu pudesse deixar uma recomendação, é esta: veja o filme, mas, antes de tudo, leia os quadrinhos. Não se engane. V de Vingança não é um gibi de super-heróis. É, na verdade, uma prova de que histórias em quadrinhos podem ser lidas tanto por adolescentes quanto por sociólogos. Mesmo que os executivos de Hollywood queiram te convencer do contrário.

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