Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

A viagem do fotógrafo Wischral ao Sudoeste do Paraná

Paulo José da Costa
15/07/2022 15:05
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Mapa com o itinerário da viagem. | Acervo de Paulo José da Costa

Uma das fontes primárias mais importantes para os estudos dos historiadores sempre foram os relatos de viagens. Se enriquecidos com imagens do momento então, tornam-se documentos preciosos. Afinal, nem é preciso repetir que uma fotografia vale por mil palavras.
Dentre as inúmeras viagens do fotógrafo curitibano Arthur Wischral, a mais aventuresca e de certo modo perigosa eu acredito ter sido a que fez em 1935, acompanhando a coluna do Coronel Raul Correia Bandeira de Mello pelo interior do Paraná. Naquela época, o Paraná era um sertão quase inexplorado, as estradas eram um atoleiro, quase todas apenas carroçáveis, onde pontes inexistiam e as doenças eram o perigo de todos os dias.
O Coronel Bandeira de Mello recebeu a missão de, em suas próprias palavras, “regularizar o tombamento de imóveis federais sob a jurisdição da 5a. Região Militar nas regiões de fronteiras ocidentais dos Estados de Santa Catarina e Paraná”. Saindo de Curitiba, onde contratou o nosso Arthur Wischral, seguiu com destino a União da Vitória, Palmas, Clevelândia, Guarapuava, Chopin, Formiga, Catanduvas e, depois, seguindo para Porto Mendes, terminou em Foz do Iguaçu, conforme podemos ver no mapa da viagem (imagem 1).
Palmas-PR.
Palmas-PR.
Da expedição resultou um livro precioso, “Ensaios de Geobélica Brasileira”, com a estilosa narrativa do comandante e as fotos únicas de Wischral, cujo nome lamentavelmente não é mencionado na obra, o que ora corrigimos para futuras menções. Quando adquirimos do espólio da família o acervo remanescente, com as fotos que compunham o seu arquivo pessoal, com perto de 7 mil fotografias e postais (as demais foram vendidas à Fundação Cultural de Curitiba há algumas décadas), um dos lotes cuidadosamente conservados junto com outras viagens (à Alemanha, Bahia, Exposição de 1922 no Rio, litoral do Paraná e Santa Catarina, Vila Velha etc.) era esse, com os registros da expedição ao Sudoeste do nosso estado.
Basta comparar as fotos do livro e as que Wischral guardou: são as mesmas. No entanto, as do livro foram miseravelmente reproduzidas, com péssima definição. Os originais do acervo são de luxo, o que vale dizer que poderia ser feita uma reedição com as imagens em qualidade muito superior. Fica a ideia para um projeto que poderia até incluir uma exposição itinerante pelas cidades percorridas há já quase noventa anos, enfatizando-se que o autor do texto faleceu em 1941, há mais de 80 anos portanto, estando a obra em domínio público.
Dentre as mais de cem fotografias tiradas por Wischral, algumas inéditas, tive de selecionar apenas algumas, sendo a primeira delas a do estabelecimento das Casas Pernambucanas, em Palmas, onde também funcionava o hotel do lugar, como vemos na foto 2. Bem se dizia que no interior do Brasil podia não existir o Correio, mas Casas Pernambucanas com certeza havia. Em frente ao estabelecimento, reuniu-se um grupo de participantes da expedição junto a habitantes do lugar, aparecendo a jardineira que fez o transporte por boa parte do percurso, não sem muitas dificuldades.
Grupo de indígenas Caingangues.
Grupo de indígenas Caingangues.
A imagem formidável do grupo de índios caingangues foi batida por Wischral, em Mangueirinha. De impressionar a beleza desses legítimos primeiros habitantes da região.  Em contraste absoluto, em Guarapuava narra Bandeira de Mello o encontro com uma “família de aleijados” (SIC), cujos pais, autênticos irmãos germanos, geraram 3 rapazes e uma rapariga, todos com os mesmos “aleijões”...” Narra mais que “a casa em que residem é uma verdadeira meca de crendices... onde os enfermos indigentes e os caquéticos afluem pela esperança de cura... onde procuram tocá-los na persuasão de que este é o único meio eficaz para o tratamento de suas moléstias ...”. Na foto 4, aparecem as pessoas com deficiência junto ao fotógrafo Arthur Wischral.
Família fruto do casamento de irmãos, em Guarapuava-PR.
Família fruto do casamento de irmãos, em Guarapuava-PR.
De Guarapuava a Mallet e Catanduvas, a viagem foi um desafio não só para os homens da expedição, mas para a jardineira que, em alguns trechos, teve de ser puxada por parelha de cavalos. O registro seguinte mostra Guarapuava.
Peripécias da jardineira.
Peripécias da jardineira.
Um dos pontos mais interessantes da narrativa é o que descreve a passagem pela região onde ocorreram as lutas na revolução de 1924, entre os tenentistas que pretendiam derrubar o presidente Arthur Bernardes e as tropas federais, comandadas pelo Coronel Rondon. A revolução na capital paulista foi sangrenta, com bombardeios aéreos e centenas de mortos entre a população civil, fato hoje deplorado pela desnecessária crueldade. Vencidos, os revoltosos se retiraram para o Paraná, via Porto Mendes e Guaíra. A tomada da região foi fácil e a tropa paulista chefiada por Isidoro Dias Lopes e com nomes que se tornaram parte da mitologia militar brasileira, como João Cabanas e Miguel Costa, no aguardo de uma coluna vinda do Sul, chefiada por Luís Carlos Prestes, entrincheirou-se na região de Catanduvas.
Cidade de Guarapuava-PR.
Cidade de Guarapuava-PR.
O Coronel Rondon fez seu quartel em Ponta Grossa e de lá deslocou-se para Guarapuava. Em seguida, seguiu para o Sudoeste, onde travou a batalha que é um dos episódios mais sangrentos da história militar brasileira, estendendo-se por seis meses, até março de 1925. A chegada de Luís Carlos Prestes com uma tropa mal armada de 800 homens e mulheres não trouxe outra alternativa senão a da retirada, iniciando-se nesse momento a verdadeira epopeia que foi a Coluna Miguel Costa-Prestes, que pelos dois anos seguintes lutou pelo Brasil em história contada em vários livros e por diversos autores. O que não se contou ainda como se deveria foi o destino dos  homens que a coluna deixou para trás no Paraná, para segurar as tropas de Rondon em Catanduvas. Após resistência heróica foram finalmente rendidos e, maltrapilhos e famintos, enviados para uma colônia penal chamada Clevelândia, no Norte do Brasil, onde a maioria pereceu pelos maus tratos. Sobraram menos de uma dezena.
No Hotel Cataratas del Iguazu, na então Puerto Aguirre.
No Hotel Cataratas del Iguazu, na então Puerto Aguirre.
A expedição do Coronel Raul Bandeira de Mello visitou, em 1935, esses lugares de lutas sangrentas e Arthur Wischral registrou com suas lentes a situação do cemitério dos combatentes, trincheiras e instalações. Como merecido prêmio, nossos viajantes chegaram a Sete Quedas e finalmente a Puerto Aguirre (hoje Puerto Iguazu) onde, no lado argentino, desfrutaram do Hotel Cataratas del Iguazu e confraternizaram com os elegantes hóspedes, com direito a belas fotografias.