Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa*

O litoral paranaense era assim…

Paulo José da Costa*
12/05/2021 18:41
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*Dedico esse artigo a Paulo Affonso Grötzner (1925-2021)
Guaratuba, rua da praia, foto de A. Oliveira, 1906.<br>
Guaratuba, rua da praia, foto de A. Oliveira, 1906.<br>
Quando os primeiros exploradores do que é hoje o nosso litoral deitaram suas âncoras, lá por 1550, apesar de rudes homens do mar e guerras, com certeza devem ter sido tocados por aquela beleza inigualável. Hoje quase nada mais existe daquela exuberância vista nas praias, à exceção talvez de um ou outro canto escondido, na Ilha do Mel, ou subindo pros lados de São Paulo, entre Guaraqueçaba e Cananéia.  Mas ali, no berço de nossa civilização, Paranaguá, Matinho, Cayuvá, como se dizia, tudo se transformou neste século XXI: loteamentos, edifícios, asfalto, barulhos, sujeira, esgoto...  No entanto, há poucas décadas ainda se podia sentir a beleza em estado original, bruto, pois só nos anos 30 do século XX foi que a invasão dos moradores do planalto se iniciou realmente.
Registro de 1906 da casa do Sr. Silva Paranhos, em Cayuvá. Ao centro, o presidente João Cândido. Foto A. de Oliveira.
Registro de 1906 da casa do Sr. Silva Paranhos, em Cayuvá. Ao centro, o presidente João Cândido. Foto A. de Oliveira.
Até 1930 raras eram as residências de veraneio, poucos os que se atreviam a enfrentar a viagem, os mosquitos e a malária que infestavam o nosso litoral. Naqueles tempos, para se chegar ao litoral, na descrição do querido amigo Paulo Affonso Grötzner, que nos deixou em abril com a idade de 96 anos.
“era através da estrada da Graciosa... pavimentada com macadame, que o trânsito transformava em lama e buraco nos dias de chuva e provocava incríveis nuvens de poeira no tempo bom... Na viagem, quando descendo a serra, chegava- -se à baixada, surgiam as casas dos caboclos que moravam na margem da estrada e que sempre ofereciam produtos da sua lavoura: bananas, laranjas, goiabas, aipim, farinha de mandioca artesanal.
Morro de Cayubá, 1927, pelas lentes de Arthur Wischral.<br>
Morro de Cayubá, 1927, pelas lentes de Arthur Wischral.<br>
Ao longo do caminho a estrada passava no meio das localidades: Porto de Cima, Morretes e Alexandra. Cerca de 5 km antes de Paranaguá, à direita, iniciava a estrada da praia. Nesse trecho, de Paranaguá até Praia de Leste, de 25 km, a pavimentação precária apresentava um verdadeiro castigo para os motoristas. Com tempo seco, a areia fofa criava dificuldades... a viagem seguia lenta, o carro atolava... Quando se atingia a Praia do Leste, acabava a estrada e os 20 km até Caiobá eram rodados sobre a areia da praia.
Praia de Cayubá, em 1927, por Arthur Wischral.<br>
Praia de Cayubá, em 1927, por Arthur Wischral.<br>
Nesse ponto começavam incríveis desafios aos motoristas. Primeiro: o conhecimento das marés... o motorista previdente programava a viagem procurando chegar na beira do mar uma hora após a máxima, trafegando sobre a areia úmida e firme, sem ser atingido pela água e com o objetivo de chegar ao destino antes da virada da maré. Segundo: passar sem encalhar na duna existente entre o final da estrada e o início da faixa de areia firme.  Esse problema repetia-se na chegada e saída em Matinhos, na entrada de Caiobá, e para quem fosse a Guaratuba, também na passagem pela “prainha”. Quando o carro atolava, o jeito era cavar para destrancar as rodas traseiras e com a ajuda de moradores da região, sempre dispostos a faturar uma gorjeta, empurrar o veículo sem ligar o motor.
Na passagem do rio Perequê, onde a situação muitas vezes se apresentava mais dificil, havia uma junta de bois disponível que atrelada ao pára-choque dianteiro do carro, resolvia a situação”.  E continua a descrever o nosso cronista Paulo Affonso: “quem não queria, ou temia arriscar o próprio carro em tal aventura, dispunha de duas opções: viajar de trem até Paranaguá e prosseguir com a “diligência”, um micro-ônibus que fazia a linha das praias regularmente em horários sincronizados com os dos trens. Nem sempre dava certo, principalmente na volta, o que obrigava a um pernoite em Paranaguá. A segunda opção, utilizar os serviços de “lotação”, por muitos anos prestados pelo Sr. Ernesto Weigert, que apanhava os passageiros em suas residências em Curitiba e os deixava em seus endereços nas praias...” (*). Por esse depoimento vemos a importância das memórias escritas, pois só quem viveu o momento pode nos deixar a narrativa de como era realmente.
Em Guaratuba, 1906, Dr. João Cândido é acolhido pelos moradores. Foto de A. Oliveira.<br>
Em Guaratuba, 1906, Dr. João Cândido é acolhido pelos moradores. Foto de A. Oliveira.<br>
Como se vê, nossas praias se mantiveram quase intocadas até a década de 1930 pelas dificuldades de lá se chegar. Em 1938 havia apenas cerca de 20 casas em Caiobá e um hotel com telefone. O Paulo Affonso não menciona, mas o Cid Destefani contou que havia gente que ia às praias de avião. Sim, a Cia Aero Lloyd fez voos durante um certo tempo e o aparelho pousava na praia mesmo. Alguns aviadores amadores, como Wynnie Gomm também se aventuravam e desciam na areia, o que era uma festa para os frequentadores de então.
Hugo Hegenberg e Arthur Wischral com moradores no Morro de<br>Caiobá, em 1927.
Hugo Hegenberg e Arthur Wischral com moradores no Morro de<br>Caiobá, em 1927.
Mas quem habitava essas pequenas aldeias praieiras antes da descida barulhenta dos curitibanos? Nos primeiros anos do século 20 alguns fotógrafos andaram pela região e deixaram registros dos habitantes, então chamados simplesmente de caboclos. Selecionei em meu arquivo duas viagens que foram registradas em fotografias e que documentam esse período, mostram um pouco daqueles habitantes originais da terra, antes de sua expulsão pelos loteamentos e crescimento urbano. A primeira, de 1906, foi uma viagem do Presidente do Estado João Cândido Ferreira. Ele visitou Guaratuba, Matinho, Cayuvá e os registros são de A. Oliveira, sobre quem nada descobri.
Matinhos e seus moradores, em 1906. Foto de A. Oliveira.<br>
Matinhos e seus moradores, em 1906. Foto de A. Oliveira.<br>
A segunda é do fotógrafo Arthur Wischral, em 1927, em companhia do engenheiro e viajante Hugo Hegenberg. Saíram de Curitiba de trem até Morretes e depois seguiram a pé para Paranaguá, Guaraquessaba e retornando a Paranaguá, até Guaratuba, passando por “Matinho” e “Cayuvá”. Hugo Hegenberg, muito sensível e poético, deixou-nos um texto lindo que, com as fotos de Wischral formam um conjunto inigualável na descrição de nosso litoral de então.
Esse último álbum tem uma história interessante: encontrei-o quando vasculhava sites na internet, em uma casa de “Bücherantiquariat” na Alemanha. Estava num arquivo qualquer desde os anos 30, pois Hugo tentara uma edição alemã com o material, o que não deu certo. Apareceu então nos anos 2010 num sítio online e tive a sorte de o encontrar. Fiz a compra e descobri que era o segundo álbum, faltava o primeiro, que só obtive quando a coleção da família de Arthur Wischral foi incorporada ao meu acervo de fotografias alguns anos depois. Uma boa viagem na janela do tempo aos nossos leitores.
(*) in “O caminho para o mar”, por Paulo A. Grötzner, disponível na Internet.
*PAULO JOSÉ DA COSTA nasceu em 1950 em Ponta Grossa, é comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.