Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

Reminiscências musicais da Velha Curitiba

Paulo José da Costa
19/02/2022 19:57
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Programas de diversos artistas em Curitiba. | Acervo de Paulo José da Costa

Atraídos por cachês formidáveis pagos pelas colônias germânicas, polonesas ou italianas, artistas da cena musical europeia, nas décadas de 1920 a 1950, davam um jeito de fazer uma escala em Paranaguá no caminho para Montevideo ou Buenos Aires. Mais tarde, desciam no campo do Bacacheri e depois no aeroporto de Afonso Pena. Sim, Curitiba estava no mapa dos empresários da música e tínhamos palcos e plateias ávidas.
Companhias de óperas e operetas, como a de Clara Weiss, faziam de tempos em tempos temporadas na cidade. Ela esteve por diversas vezes em Curitiba. Na minha coleção da Gazeta do Povo vejo que, em outubro de 1924, a companhia passou praticamente um mês apresentando-se diariamente no Theatro Guayra (o antigo, na rua Dr.Muricy) e cada dia com uma opereta diferente! Um mês! Clara era a rainha da opereta, um gênero fácil, repleto de melodias em que a plateia cantava junto a “Viúva Alegre” e a “Bayadére”, mas também ousava em óperas mais populares e melodiosas como o “Trovatore” verdiano.
A cantora Clara Weiss, anos 1920.
A cantora Clara Weiss, anos 1920.
O que eu não daria para, como no filme “Meia noite em Paris”, do Woody Allen, de repente me ver sentado na plateia do Guayra, em meio ao bulício, daqueles que formavam a elite curitibana à época. Quanta elegância! Os risinhos das senhoras, os encontros dos senhores em traje de gala, os charutos no salão… Gostaria de ouvir as conversas, de ver como procediam as personagens que hoje adornam os nomes de nossas ruas… Ali, o Dario Vellozo, aqui o João Moreira Garcez… na bombonière, conversando, João Turin e Zaco Paraná. O anônimo repórter da Gazeta do Povo nos transmite uma pálida ideia do que era isso, em outubro de 1924, grafia da época.
“O Guayra apresentava hontem, por providencial coincidência, um aspecto de gala. O que Curityba tem de eminentemente social compareceu ao Theatro. Em sua friza, o exmo sr. Presidente do Estado, em companhia de sua exma família. O sr. governador da cidade, o sr. desembargador chefe de polícia, o sr deputado Eurides Cunha, com as suas exmas famílias. E assim, dezembargadores, advogados, industriaes, médicos, militares e suas famílias, todo um mundo social de primeira água demonstrava, pela sua presença, estar o Guayra abrigando o que de mais fino e representativo podia a sociedade curitybana offerecer…”
Nem tudo eram flores, porém. Nessa mesma temporada da companhia Clara Weiss, narra a Gazeta:
“…como é sabido, é sempre nas galerias dos theatros que se reúnem os estudantes, a gente que melhor compreende a arte, os artistas pobres e a quem se deve os triumphos de uma encenação, os aplausos, os “bis”. Entretanto, isto só comprehendem aquelles que podem discernir o joio do trigo … Iniciava-se o segundo acto…quando no lado esquerdo das “torrinhas” manifestou-se tumulto, chamando desde logo a attenção de toda a assistência que se voltava para aquelle lado do theatro, onde eram erguidos gritos de protesto. E acto contínuo surgiram nas galerias quatro guardas cívicos, armados de revolver em punho, a reluzirem. Diante daquella disposição dos cívicos, estabeleceu-se geral confusão na platéia, camarotes, frizas e balcões, tendo algumas senhoras gritado, tomadas de susto e medo. E da platéia, que estava repleta, innumeros cavalheiros protestaram em altas vozes contra os guardas. Foi uma scena como jamais se verificou em casas de diversões nesta capital, e que difficil se torna descrevel-a. Serenados os ânimos, graças à intervenção do delegado de serviço, dr. Toscano de Britto, a encenação da opereta prosseguiu. Tomaram parte no tumulto, todos armados de revolver, os guardas de numeros 60, 32, 99 e um outro que não nos foi possível apanhar o número. … Estamos certos de que o sr. desembargador chefe de policia, presente ao espectaculo de hontem, terá tomado as medidas no sentido de que taes factos não se reproduzam…”
Martha Eggerth sendo recepcionada, anos 1950.
Martha Eggerth sendo recepcionada, anos 1950.
No pós-guerra, contam-se às dezenas os grandes cantores que nos visitaram. Curitiba era uma festa: rara era a semana em que não havia concertos, recitais, operetas, peças de teatro, ballet… tudo tão rico, tão diferente de hoje. Naquela época, o mundo cultural vinha até Curitiba. Precisaria de 50 páginas da Pinó para contar tudo sobre as visitas de pianistas, violinistas e cantores, muitos cantores: Erna Sack, Carlo Buti, Martha Eggerth, Jan Kiepura, Gigli, Tito Schipa, Tagliavini.
Talvez o maior fenômeno do disco à época, depois de Enrico Caruso, tenha sido Beniamino Gigli, que fez mais de quatrocentas gravações desde os anos 1920 mas que, além da ópera, também incursionou pelo cinema. Gigli não tinha fisicamente o estereótipo do galã, mas sua voz era de uma doçura inigualável e mesmo hoje, com o público anestesiado pelos ritmos e barulhos ensurdecedores, uma alma mais sensível será atraída por suas interpretações únicas, eternizadas nos discos. Para algum neófito sugiro especialmente o “lamento di Federico”, disponível no youtube. Gigli esteve em Curitiba em 1951 e, como escreveu Aramis Millarch, no “Almanaque” do extinto O Estado do Paraná, em 1990:
Beniamino Gigli em meio a admiradores, 1951.
Beniamino Gigli em meio a admiradores, 1951.
“A vinda de Gigli a Curitiba… deveu-se basicamente a Humberto Lavalle… Diretor comercial da rádio Guairacá - inaugurada em 1948 e que vivia seu período de glória - encontrou em outro fanático pelo canto lírico, Aluísio Finzetto, o apoio para dar condições a que incluísse pela primeira (e única) vez, Curitiba em seu roteiro. O professor David Carneiro, proprietário na época do Cine Ópera … apoiou a ideia e cedeu o espaço a um preço razoável… Lavalle e Finzetto deram tanta atenção à vinda de Gigli que foram esperá-lo em Pedra Preta, na chamada rodovia Estrada da Ribeira, na época a única ligação com São Paulo. Odiando embarcar em aviões, Gigli preferiu enfrentar uma cansativa viagem de 14 horas do que entrar num avião - e assim o conde Francisco Matarazzo, seu grande amigo e admirador, colocou a disposição seu Mercedes-Benz, com motorista, para trazê-lo a Curitiba. Simpático e afável - recordam os que estiveram com Gigli - chegou bem disposto. Ficou hospedado no Grande Hotel Moderno … e por duas vezes fez refeições no restaurante Bella Napoli, de um italiano apaixonadíssimo por óperas, que fez questão de recepcioná-lo com um jantar após a sua apresentação no cine Ópera. “
Fechando com chave de ouro, uma fotografia com admiradores de Ferrucio Tagliavini, que se apresentou em 30 de setembro de 1953, no Teatro Avenida, trazido pelo mais culto e iluminado de nossos governadores, Bento Munhoz da Rocha Netto. Na imagem, aparecem conhecidos e saudosos personagens de nossa vida musical que foram até a loja Santos & Irmão, que ficava na Barão do Rio Branco, para uma tarde de autógrafos com o cantor. Tagliavini tirou fotos na ocasião, autografando discos da RCA Victor e posando com os fãs. Escolhi uma delas, no interior da loja, onde consegui identificar, à partir da esquerda, Neisinho Macedo, Carlos Osório, Zeigler Lins, Tagliavini, Adir Neme, Wolf Schaia e o menino João Baptista de Assis…
Ferrucio Tagliavini na loja Santos & Irmão, 1953.
Ferrucio Tagliavini na loja Santos & Irmão, 1953.
Essa viagem pelas reminiscências musicais ainda terá paradas em outras estações…