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Por que discutir liberação do plantio de maconha no Brasil em plena pandemia? Essa é a pergunta que todo brasileiro deveria estar se fazendo. É quase inacreditável que o tema tenha vindo à tona no momento em que as atenções se voltam para o coronavírus e estamos meio distraídos de tudo que não diga respeito às mudanças que a pandemia trouxe para as nossas vidas.

Mas tem deputado forçando a barra e levando adiante uma discussão sobre liberação do plantio da maconha no Brasil exatamente agora, como se não houvesse tantas outras coisas mais urgentes para votar. Pior: fazendo isso sem ouvir todos os lados, negando acesso à discussão a qualquer um que seja contrário e tentando fazer passar às pressas a votação da proposta, inclusive atropelando o processo natural de tramitação no Congresso.

O assunto "maconha" vinha sendo discutido na Câmara dos Deputados há cinco anos, desde que o deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE) apresentou um projeto (PL 399/2015) para modificar a lei de 2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. A ideia de Fábio Mitidieri era autorizar a comercialização no Brasil de medicamentos à base de Cannabis sativa.

Fora do Legislativo essa discussão já aconteceu e resultou em decisões que beneficiam os pacientes com prescrição para terapias à base de canabidiol. Em 2014 o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou a prescrição de remédios com canabidiol; no ano seguinte a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou a proibição do uso de canabidiol e, em 2016, autorizou remédios com tetrahidrocanabinol (THC), principal substância psicoactiva encontrada nas plantas do gênero Cannabis.

Depois, em 2017, a própria Anvisa aceitou o registro do Metavyl, à base de Cannabis e, no fim do ano passado, deu parecer favorável a uma resolução autorizando a importação do princípio ativo da maconha para a produção, aqui no Brasil, de produtos destinados ao tratamento de pessoas com algumas doenças raras, desde que os pacientes tenham prescrição e acompanhamento médico.

Ainda assim a Anvisa chamou de "produtos", alegando que não podem ser classificados como remédios, porque não existem estudos comprovando a eficácia do uso de uma parte dessa planta para tratamentos de saúde.

Na Câmara dos Deputados o projeto que propõe autorizar legalmente a comercialização de medicamentos à base de canabidiol no Brasil vinha tramitando de forma lenta, como é natural para um assunto tão polêmico. Foi criada uma Comissão Especial para analisar a proposta. Os integrantes da Comissão passaram a estudar sobre o tema e a sugerir nomes de especialistas a favor e contra a ideia para serem ouvidos em audiências públicas. Desta forma a proposta vai amadurecendo até estar pronta para ser votada.

Com a pandemia o projeto, assim como milhares de outros, foi deixado de lado não só por questão de prioridade, mas também porque as comissões pararam de funcionar. Daí a surpresa agora com a apresentação de um substitutivo que muda completamente o texto do projeto original e parece tramitar a toque de caixa.

Substitutivo prevê liberação do plantio de maconha no Brasil

O substitutivo, apresentado há duas semanas pelo deputado Luciano Ducci (PSB-PR), prevê muito mais que o projeto original. Em vez de autorizar apenas a comercialização de medicamentos à base da planta Cannabis sativa, o texto inclui autorização para "cultivo da maconha, processamento, pesquisa, armazenagem, transporte, produção, industrialização, comercialização, importação e exportação".

A justificativa é a de facilitar o acesso a quem faz uso medicinal da maconha, já que a importação exige uma série de documentos e os remédios são muito caros. Mas há enorme temor de que isso abra caminho para a legalização da droga, como já ocorreu em outros países.

E foi justamente assim que parlamentares contrários à ideia viram a proposta, especialmente porque ela foi apresentada durante a pandemia, quando está mais difícil promover discussões amplas com o engajamento da sociedade.

Também chamou atenção o que aconteceu logo depois, esta semana. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), presidente da Comissão Especial que analisa o PL 399/2015, simplesmente passou por cima dos demais integrantes e, sem a aprovação dos colegas, agendou uma reunião virtual para discutir o novo texto apenas com convidados favoráveis à liberação do plantio da maconha no Brasil.

Deputados que pediram para participar, trazendo estudiosos do assunto que são contrários à ideia, tiveram os pedidos negados. Não à toa definiram como "malandragem" e "covardia" o que está sendo feito pela bancada que defende a liberação do plantio de maconha no Brasil.

O deputado Diego Garcia (Podemos-PR) classifica o substitutivo ao projeto de lei de 2015 como um verdadeiro facilitador da liberação da maconha no Brasil, enfatizando o perigo embutido no artigo 20, que permite uso medicinal irrestrito. "O doente pode até fazer uso recreativo da maconha", diz o deputado.

Ele destaca que, pelo texto do substitutivo, não haveria restrição nem mesmo quanto aos critérios para a prescrição de medicamentos à base de Cannabis sativa. Está escrito no substitutivo que qualquer profissional habilitado pode prescrever os remédios desde que haja anuência do paciente ou responsável legal e que os medicamentos poderão ser produzidos e comercializados “em qualquer forma farmacêutica".

O deputado Osmar Terra (MDB-RS) lembra que não é preciso autorizar a plantação da maconha no Brasil para que sejam produzidos remédios que usam o canabidiol. Já tem um laboratório de Toledo (PR,) autorizado pela Anvisa, que promete em breve produzir o canabidiol sintético, ou seja, nem vai precisar da planta. O canabidiol não é alucinógeno, não vicia, ao contrário da maconha.

A repórter Isabelle Barone publicou na Gazeta do Povo esta semana uma reportagem sobre o tema e ouviu, entre outros parlamentares, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE). No ano passado ele também apresentou um substitutivo ao projeto sugerindo que o Sistema Único de Saúde (SUS) fosse obrigado a fornecer gratuitamente remédios à base de canabidiol para pacientes que precisem da medicação, mas a sugestão não foi aceita.

"Por que nosso projeto não caminhou no Congresso, já que é questão de saúde pública? Isso esvazia o argumento de que há uma preocupação por parte dos deputados na saúde dessas crianças que precisam do medicamento. Não é esse o interesse deles."

Senador Eduardo Girão (Podemos-CE)

O senador também lembrou que em 2014, durante a Copa do Mundo no Brasil, outro momento em que o Congresso estava em recesso branco, houve uma tentativa como essa de agora. Na época a manobra foi barrada na última hora, através da Comissão de Direitos Humanos no Senado.

“Quem está por trás disso quer faturar e se utiliza de entidades e associações que têm vontade legítima e pura de ajudar crianças”, diz o senador, acrescentando que o objetivo do lobby do que ele chama de narconegócio é ganhar dinheiro. "Eles agem de forma sorrateira e para eles pouco importa quantas gerações a gente possa perder para as drogas."

Prós e contras da liberação do plantio de maconha no Brasil: vote

Médicos contrários à proposta

Quem está na linha de frente do atendimento a doentes faz críticas até à forma como o assunto é apresentado. O uso do termo “maconha medicinal” é visto como uma tentativa de nos fazer acostumar com a ideia de que a droga tem efeitos benéficos. Um pediatra citado na mesma reportagem de Isabelle Barone, o Dr. João Becker Lotufo (doutorado em pediatria pela USP), explica que a expressão é usada de forma proposital para confundir a população.

Para provar sua tese ele cita o caso de outra droga que também tem um princípio ativo usado pela medicina: a heroína. Ninguém diz “heroína medicinal” e, sim, “morfina". O médico explica que as duas vêm da mesma planta, mas a morfina, usada em todas as emergências de hospital, é uma medicação bem estudada e conhecida. A heroína é uma droga que faz mal e vicia.

Ele também lembra que a maconha provoca leões irreversíveis, como perda da memória, atraso escolar e lesão cerebral com ou sem surto psicótico, principalmente quando o usuário começa a consumir antes dos 21 anos, quando o cérebro ainda está em formação. E é considerada a porta de entrada para drogas mais pesadas e ainda mais perigosas.

"Cada vez mais se fala em liberação da maconha sem se fazer as advertências a respeito do seu risco."

João Becker Lotufo, médico pediatra

João Becker Lotufo é representante da Sociedade Brasileira de Pediatria nas ações de combate ao álcool, tabaco e drogas. Segundo ele, o lobby da maconha não está interessado nos doentes e nem mesmo em quem usa a droga esporadicamente, de forma recreativa.

O foco está nos 30% de dependentes que consumirão 90% da maconha vendida. "A questão é financeira, como é a questão do tabaco, do álcool e agora do cigarro eletrônico. Estas indústrias não medem esforços para o aumento de venda e para viciar a população envolvida."

Outro estudioso do assunto, o médico psiquiatra Marcelo Von der Heyde, presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, diz que é desonesto o uso de exemplos de casos dramáticos de crianças com doenças crônicas e graves para defender a legalização da maconha. E revela o método dos defensores da liberação do plantio da droga no país.

Primeiro citam como exemplo crianças com síndromes raras, que tiveram indicação médica e correta para usar o canabidiol e melhoraram. Depois começam a usar os termos Cannabis medicinal, maconha medicinal e, por fim, surge a discussão da liberação da maconha.

As próprias marchas pela maconha começam a dar uma noção de que aquilo é defesa da liberação do remédio para que todos se acostumem com a ideia. Assim, quando deputados pró-maconha começam a fazer o que estão fazendo agora, há pouca contestação.

Maconha é uma droga ilícita, que é proibida, porque faz mal. Remédio de uso controlado, manipulado e vendido sob prescrição médica (e administrado com acompanhamento de um médico) é algo bem diferente.

Como manifestar sua opinião

Se você acha errado o momento e a forma como essa discussão está sendo feita e não concorda com a liberação do plantio de maconha no Brasil há sempre o caminho natural de tentar influenciar os votos dos parlamentares telefonando ou mandando e-mail para os gabinetes de deputados e senadores ou fazendo barulho nas redes sociais, marcando os perfis de quem você julga que representa suas ideias ou até daqueles contrários a você.

E é possível também votar a favor ou contra o projeto original no site da Câmara dos Deputados. Ao abrir a página, procure a janela do lado direito onde está escrito: PL 399/2015, o que você acha disso? Na tarde desta sexta (4) 52% dos que votaram eram totalmente favoráveis à liberação da comercialização de produtos medicinais à base de canabidiol contra 42% totalmente desfavoráveis.

Pelos comentários deixados lá fica claro que quem é favorável torce para que isso facilite a liberação da maconha no futuro. Quem é contra aponta exatamente essa possibilidade como o grande perigo da aprovação do projeto.

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