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Se você é atento à política há algum tempo, com certeza já ouviu falar dos diários secretos da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep). Era um esquema gigantesco de desvio de salários dos funcionários, que foi descoberto, investigado e denunciado há dez anos, em 2010, por uma equipe de jornalistas da Gazeta do Povo e da RPC TV, onde eu trabalhava na época. Fiz parte dessa equipe de investigação.

A Gazeta do Povo e a RPC (afiliada da rede Globo no Paraná), que pertencem ao mesmo grupo de Comunicação - o GRPCOM -ganharam os maiores prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo com esse trabalho. Embora pareça notícia local, o assunto ganhou repercussão no Brasil inteiro, não só pelo escândalo que era, mas porque o esquema tinha correlação com o que acontecia em praticamente todos os parlamentos municipais, estaduais e até no Congresso Nacional.

Resolvi relembrar esse caso hoje para mostrar que, infelizmente, não é novidade o que agora chamam de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O esquema que está sendo investigado pelo Ministério Público e pela polícia civil do Rio de Janeiro ainda não está completamente confirmado. As investigações estão em andamento e é importante lembrar que, por enquanto, não há ninguém condenado, ainda que recentemente um o ex-servidor Fabrício Queiroz tenha sido preso sob acusação de obstruir a Justiça, intimidando testemunhas.

De qualquer forma é possível dizer que as movimentações suspeitas nas contas bancárias de deputados, ex-deputados e de seus assessores é a ponta do iceberg da corrupção no Legislativo brasileiro. Os promotores acreditam que havia desvio de verbas públicas a partir do salário de funcionários, que eram contratados apenas para receber e repassar dinheiro, algo muito parecido ao que acontecia na Assembleia paranaense.

O caso da Alerj, especificamente, chama a atenção porque, no período que está sendo investigado, um dos gabinetes com registro de movimentações atípicas era o do então deputado estadual Flavio Bolsonaro (hoje senador), filho do atual presidente da República. Por isso, e só por isso, o caso ganhou a projeção que ganhou. Mas também esse caso é uma pontinha de um iceberg dentro da própria Assembleia Legislativa do Rio, onde já se sabe que gabinetes de vários outros deputados movimentaram muito mais dinheiro.

O fio da meada para os diários secretos da Alep

Trago algumas curiosidades sobre a investigação que fizemos aqui no Paraná para você, leitor, entender a importância de apoiar que todas as denúncias sejam investigadas, doa a quem doer. E de exigir que seja mesmo investigado tudo e não apenas esse ou aquele gabinete, esse ou aquele servidor ou deputado.

A suspeita de desvio de salários de servidores da Assembleia Legislativa do Paraná surgiu de uma pequena investigação, que depois também revelou ser a ponta de um imenso iceberg. Primeiro a RPC apurou a denúncia de que pessoas contratadas no gabinete da então deputada Bete Pavin (PMDB-PR) não compareciam à Assembleia Legislativa para trabalhar. Lembro dos detalhes, porque fui eu mesma que fiz a reportagem.

Procurei pelos servidores no gabinete e alguns sequer eram conhecidos por lá! Descobrimos que todos eram de Colombo, cidade vizinha a Curitiba, onde a deputada morava e tinha seu reduto eleitoral. Hoje ela é prefeita de Colombo (pela 4ª vez, aliás), uma prova de que o eleitor é muito desatento na hora de votar e não pesquisa o passado dos candidatos.

Mas voltando aos funcionários dela em seu período como deputada estadual, entre 2007 e 2010. Lembro de ter encontrado uma moça bem jovem, de cerca de 18 anos, que era contratada do gabinete, dando expediente em horário comercial na recepção de uma imobiliária. Quando perguntei em que horário ela prestava serviços para a Assembleia Legislativa e o que ela fazia como assessora parlamentar a moça ficou completamente perdida, gaguejou muito, não sabia nem o que responder.

Fui também atrás de uma costureira, que era vizinha da deputada, e de dois empresários, todos contratados do gabinete. Encontrei os três em dias úteis trabalhando em outros negócios, a quilômetros de distância da Assembleia Legislativa. Nenhum soube explicar o que fazia para justificar o cargo público ou o salário que recebia como servidor comissionado.

A própria deputada sumiu da Alep por duas semanas. Não atendia mais telefone, sequer respondia aos pedidos de entrevista que eu fazia através de assessores. Cheguei a passar uma manhã inteira na frente da casa dela em Colombo. O plantão começou ainda antes do nascer do sol e foi até o início da tarde.

Um único carro saiu da residência com um homem sozinho ao volante. Recebi depois a informação de que Bete Pavin estava no porta-malas do carro. Nunca consegui confirmar, mas conto isso para dar a noção do ridículo a que nossos "representantes" se sujeitam quando são chamados a explicar algo suspeito.

Quando finalmente a deputada decidiu falar, o local combinado foi o gabinete da liderança do PMDB na Alep. Encontrei a sala lotada. Era o partido de maior bancada na época e todos os deputados do estavam lá prestando apoio á colega. Numa atitude intimidatória alguns me receberam fazendo perguntas indiscretas sobre minha família. Tinham informações sobre meu pai, que já era falecido. Sabiam até sobre onde eu morava. Desconversei e parti para a entrevista.

Para cada pergunta que eu fazia a deputada respondia a mesma coisa: "Nada a declarar." Fulana, que trabalha numa imobiliária em Colombo, é funcionária do seu gabinete? "Nada a declarar." Como fulano e fulano puderam ser contratados pela Alep se são empresários em Colombo e isso é proibido? "Nada a declarar." Sua vizinha, que é costureira e passa os dias trabalhando em casa, faz o que para justificar o cargo de assessora parlamentar? "Nada a declarar."

Depois de ouvir a ladainha umas oito vezes larguei o microfone e perguntei por que, então, ela tinha me chamado ao gabinete se não tinha "nada a declarar". Foi quando ouvi, em meio a acusações infundadas sobre a emissora onde eu trabalhava, algo importante. Dizendo-se vítima de perseguição a deputada perguntou: "por que denunciar o meu gabinete, se todo mundo faz isso?"

A gente ouve dessas na rotina jornalística! Como se um crime deixasse de ser crime porque outros também praticam. Mas fiz esse prêambulo todo para dizer que a fala da deputada me lembra, às avessas, a de quem agora questiona apenas o que se fazia no gabinete de Flávio Bolsonaro e pede punição apenas e ele e a seu ex-fucnionário Fabrício Queiroz. Como diria Bete Pavin... por que denunciar só Flávio Bolsonaro pelo suposto crime de rachadinha, quando há gabinetes com suspeita de desvios 40 vezes maior, como é o caso do presidente da Alerj, deputado André Siciliano (PT-RJ)?

No caso da Alep, a RPC denunciou o que ocorria no gabinete da então deputada Bete Pavin e depois juntou-se à da Gazeta do Povo para, começar um grande esforço jornalístico de investigação. Quatro jornalistas ficaram dois anos vasculhando os diários oficiais da Alep (e foram atrás dos que faltavam, os secretos), com a intenção de fazer um levantamento de todas as nomeações de servidores para tentar entender quantos eram e se, efetivamente, apareciam para trabalhar ou apenas recebiam salário, sem prestar qualquer serviço.

R$200 milhões desviados da Alep. E na Alerj?

As reportagens da série Diários Secretos, mostraram que havia uma prática criminosa de contratação de funcionários "fantasma" institucionalizada na Assembleia Legislativa do Paraná. O Ministério Público entrou na apuração e levantou, num período de 10 anos (2000 a 2010), o desvio de R$200 milhões.

No Rio de Janeiro, o que o Ministério Público o volume de movimentações suspeitas em contas bancárias de servidores, deputados e ex-deputados, não chega à metade da cifra paranaense, mas o período analisado é bem menor. Espera-se que a união de esforços do MP e da polícia civil do RJ produza uma investigação ampla, que inclua todos os servidores de todos os gabinetes e analise mandatos anteriores dos mesmos personagens para saber, caso se confirmem os crimes, desde quando vinham ocorrendo.

Nunca é demais lembrar que até pouco tempo também o Poder Executivo havia institucionalizado práticas criminosas, transformando a exceção em regra, como ficou claro nas investigações do Mensalão e do Petrolão nos governos Lula e Dilma.

"Rachar" o salário dos funcionários, que não se importam em dividir o que ganham, porque não fazem jus à remuneração já que não trabalham, está longe de ser um caso isolado de corrupção. É um modus operandi, pelo visto enraizado nas sedes estaduais do Poder Legislativo. Por isso é preciso investigar todos os gabinetes!

Pequenas diferenças, mesmo objetivo

O caso dos Diários Secretos é um pouco diferente desse das rachadinhas da Alerj, porque no Paraná o desvio de dinheiro público era feito através da nomeação de funcionários em publicações secretas. Um único exemplar desses diário oficial era publicado, mas ficava escondido numa espécie de arquivo morto para ninguém descobrir.

As pessoas contratadas forneciam documentos, abriam conta bancária para receber salário, mas aceitavam devolver depois o dinheiro (ou parte dele) para o chefe de gabinete ou um assessor direto do deputado em troca da garantia de acesso a benefícios como plano odontológico e de saúde, mesmo sem trabalhar.

Havia casos até de "laranjas", que recebiam a oferta da "ajuda" do deputado em quem tinham votado e forneciam documentos, achando que era apenas para ser cadastrado como beneficiário de plano de saúde - uma suposta retribuição pelo voto. Só souberam que constavam como contratados da Alep quando o escândalo estourou.

A bolada desviada está por trás dos carrões, apartamentos e fazendas comprados por servidores públicos e das campanhas milionárias, que garantiam a reeleição de deputados e a permanência dos mesmos grupos no poder.

No Rio, pelo que as investigações estão mostrando, as nomeações não eram escondidas. Mas assim como no Paraná os funcionários nomeados, aparecendo ou não para trabalhar, aparentemente aceitavam transferir parte do salário para outras contas. Pelo que tudo indica o objetivo da prática era o mesmo: enriquecimento ilícito e formação de caixa 2 para campanhas eleitorais.

É preciso deixar claro que não faço esse comparativo para minimizar a gravidade do que pode ter ocorrido no gabinete de Flávio Bolsonaro ou para passar a ideia de que, por ser algo comum, não devemos exigir que o MP investigue e denuncie ou que o Judiciário julgue, puna e exija a reparação dos danos. Como eleitores jamais devemos desviar a atenção de casos de corrupção. Quando a gente se importa e se manifesta contra, exigindo investigação ampla (e não apenas de um dos envolvidos), há melhora, ainda que parcial.

O que aconteceu na Alep depois das investigações

Os deputados apontados como responsáveis pelas contratações de servidores que não apareciam para trabalhar e tinham os salários desviados estão impunes até hoje por conta de foro privilegiado, que faz a Justiça se arrastar. Diretores e centenas de servidores da Assembleia perderam o cargo, tiveram que pagar multas, alguns até foram presos e tiveram bens confiscados pela Justiça para ressarcir os cofres públicos.

Levantamento recente publicado aqui na Gazeta do Povo mostra o que mudou na Assembleia Legislativa do Paraná nesses dez anos, após a revelação do esquema dos diários secretos. A Alep fez um recadastramento de todos os funcionários, porque na época não se sabia sequer quantos eram os comissionados, e aprovou uma lei da transparência, muito antes que isso virasse lei federal. Todos os órgãos públicos, a começar pela própria Assembleia, passaram a publicar a lista de servidores e seus respectivos salários pra ficar mais fácil de a sociedade investigar.

Como resultado, começou a sobrar dinheiro na conta do Legislativo e a ser devolvido para o governo. Em dez anos calcula-se em 2 bilhões de reais o montante devolvido. Hoje a Alep hoje tem mil servidores a menos do que tinha em 2010.

Situação na Alerj

Para terminar queria trazer alguns números que estão no texto apresentado pelo MP à Justiça do Rio de Janeiro pedindo a abertura de uma Ação Civil Pública para obrigar a Assembleia Legislativa a respeitar a Constituição e manter uma proporção entre o número de cargos efetivos e comissionados.

“Não é de hoje a contumácia na nomeação excessiva para cargos em comissão em total desproporção ao quantitativo de cargos efetivos existentes, no uso de cargos comissionados para o apadrinhamento e efetivação de interesses privados (seja através da prática de nepotismo cruzado ou não), no desvio de recursos públicos com o apoderamento de parte da remuneração dos comissionados”

Gláucia Maria da Costa Santana, promotora de Justiça MP-RJ

Mais pra frente a promotora que assina a Ação Civil Pública diz que a intenção é “colocar uma pá de cal nas recorrentes práticas administrativas que escancaram a violação das regras constitucionais previstas nos incisos II e V do art. 37 da Carta Magna." E revela que diversas denúncias foram dirigidas à Ouvidoria do Ministério Público apontando que a Alerj tem muito mais servidores comissionados do que efetivos.

Segundo essas denúncias aqueles que são aprovados em concurso público são preteridos na convocação para que os comissionados ocupem os cargos. “Uma das denúncias informa que, de acordo com a folha de pagamento de setembro de 2018, existiam na Alerj 1.948 servidores comissionados contra 670 servidores de cargo efetivo e que essa quantidade de comissionados não incluía os assessores parlamentares, que somavam, à época, 2.983 cargos. Considerando a totalidade de cargos existentes (5.601), deflui-se que os servidores ocupantes de cargo em comissão representavam assustadores 88% do total da força laborativa.”

Esse pedido de abertura de Ação Civil Pública traz vários comparativos, um deles entre as mesas diretoras da Alerj e as do Congresso Nacional.

“As presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com um número muito mais abrangente de parlamentares e com competência legislativa muito mais ampla, possuem, respectivamente, 38 e 56 servidores comissionados, face aos 231 da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.”

Gláucia Maria da Costa Santana, promotora de Justiça MP-RJ

Isso é indício forte de corrupção. Na Assembleia Legislativa do Paraná, em 2010, só a primeira secretaria, que era comandada por outro deputado do PMDB, Alexandre Curi (mais um que continua sendo reeleito), tinha mais de 200 funcionários contratados para trabalhar numa sala onde mal cabiam 10.

Não podemos descuidar e deixar de rebater discursos vazios como “Cadê o Queiroz?”, quando o que interessa mesmo é “cadê as centenas de funcionários” que precisam explicar o que acontecia nos vários gabinetes da Assembleia Legislativa do Rio, a começar pelo do deputado André Siciliano do PT que movimentou R$40 milhões de reais no mesmo período em que o gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro movimentou R$1,2 milhão.

Que sejam investigados todos os gabinetes, que sejam procurados e ouvidos todos os funcionários com movimentação suspeita em conta bancária e que a nossa indignação se volte contra a corrupção e não contra apenas um, o que necessariamente significa acobertar os demais.

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