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A Netflix pode ser responsabilizada criminalmente por incitação à pedofilia. Depois de algumas semanas de polêmica em torno do filme que expõe meninas de 11 anos em roupas, poses e danças para lá de erotizadas, sem falar em cenas mais explícitas de conotação sexual, começam a surgir pedidos de investigação sobre o filme e a plataforma de exibição.

A suposta intenção, alegada pela diretora de Lindinhas, de alertar adultos para os perigos da erotização precoce de crianças usando o subterfúgio da superexposição de atrizes mirins não convenceu autoridades que trabalham na proteção da infância e da juventude. E a Netflix, como empresa distribuidora do conteúdo, pode ter que responder por desrespeito aos direitos das crianças e adolescentes.

Já falei desse filme semanas antes da estreia no Brasil, quando a polêmica ainda era nos EUA e em torno do material de divulgação, que também expôs as meninas de forma vulgar e, sim, dando margem para estímulo e naturalização da pedofilia.

Esperava não ter que voltar ao tema, porque concordo que quanto mais se fala do assunto, maior parece ser a propaganda do filme, embora neste caso a propaganda seja negativa e venha sempre como sinal de alerta.

Mas a Netflix está deixando de ser apenas criticada e agora corre o risco de ser criminalizada aqui no Brasil e também nos EUA por insistir na exibição desse filme. E como não parece preocupada com os efeitos nefastos de manter Lindinhas no catálogo, é preciso noticiar, comentar, analisar e não deixar um assunto sério como esse ser esquecido.

Pedido de investigação da Netflix por incitação à pedofilia

Esta semana uma secretaria do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) entrou na briga para tirar o filme Lindinhas do catálogo da Netflix. O secretário Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha, não só pediu a suspensão do filme, mas também uma investigação sobre possível desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o que seria crime.

O pedido foi direcionado à coordenação da Comissão Permanente da Infância e Juventude, formada por promotores de Justiça de todos os estados e do DF, além de membros do Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho e Conselho Nacional do Ministério Público.

Todos os integrantes atuam diretamente na área da infância e juventude, o que significa que servidores públicos contratados para proteger crianças e adolescentes de abusos de qualquer tipo foram instigados a se pronunciar sobre o filme e a investigar a plataforma de exibição.

Não duvido que apareça gente dizendo que, se o filme é francês e as atrizes mirins são de lá, isso deveria ser um problema para o Ministério Público da França. Torço para que seja, inclusive porque essas atrizes têm pais ou responsáveis que permitiram as filmagens. É preciso saber em que condições as meninas estão vivendo e por que foram autorizadas a tamanha exposição, em situações constrangedoras que as tornam vulneráveis a danos físicos e psicológicos.

A questão que interessa à Secretaria Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, porém, é outra. Como aqui no Brasil o filme foi classificado para maiores de 16 anos pela própria Netflix (por causa das cenas em que as meninas aparecem com roupas justinhas, fazendo caras e bocas, poses e movimentos sensuais entre outras cenas ainda mais pesadas), isso pode ser classificado como incitação à pedofilia.

É aí que as crianças brasileiras ficam vulneráveis. O que está sendo questionado, portanto, é o quanto a Netflix pode vir a ser responsável por eventual aumento de violência sexual contra menores de idade, uma vez que um filme exibido em sua plataforma de streaming atrai olhares de jovens e adultos para corpos infantis e pode estar despertando o desejo sexual deles por crianças.

No ofício que mandou para os promotores de Justiça alertando para uma possível incitação à pedofilia por parte da Netflix o secretário Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente diz que “vê com extrema preocupação a perpetuação do conteúdo que, longe de ser entretenimento ou liberdade de expressão, na verdade, afronta a lei nacional de proteção à infância e adolescência.”

"O filme apresenta pornografia infantil e múltiplas cenas com foco nas partes íntimas das meninas enquanto reproduzem movimentos eróticos durante a dança, se contorcem e simulam práticas sexuais."

Maurício Cunha, Secretário Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente

Além da suspensão do filme no Brasil, o secretário pede a apuração da responsabilidade pela oferta e distribuição do que ele chama de “conteúdo pornográfico envolvendo crianças” e cita que está descrito como crime no Estatuto da Criança e do Adolescente: o ato de “vender ou expor à venda, vídeo ou outro registro que contenha cena pornográfica envolvendo criança e adolescente”. A pena para quem faz isso é de 4 a 8 anos de prisão e multa.

Se você é daqueles que acham exagero classificar como pornográficas cenas de meninas com roupas justas, se agachando de pernas abertas, fazendo gestos e expressões sensuais e movimentos que simulam o ato sexual, veja a definição do ECA.

“Pornografia infantil é qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais”.

Art 241 - Estatuto da Criança e do Adolescente

Isso também está descrito em tratados internacionais que o Brasil assina, como o Protocolo Facultativo da Convenção dos Direitos da Criança - texto aprovado em 2003 pelo Congresso Nacional referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, adotado em Nova York três anos antes.

No documento que mandou para a Comissão do Ministério Público o secretário Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente escreveu: “Em momento no qual as representações nacionais e internacionais de proteção à infância e adolescência se unem para o enfrentamento à pedofilia e à sexualização precoce de crianças e adolescentes, não há como deixar de repudiar o longa-metragem. Isso porque, além de conduta criminosa (à luz do ordenamento jurídico brasileiro), há evidente retroalimentação da lascívia de pessoas que se sentem atraídas sexualmente por crianças e adolescentes, além do claro abastecimento da indústria de pornografia infantil.”

A ministra Damares Alves tem dito insistentemente que o governo não vai desistir da luta para “botar freio” em conteúdos que coloquem as crianças em risco ou que exponham crianças à erotização precoce. E que sempre que for necessário tomará as medidas judiciais cabíveis, por estar à frente da pasta responsável por lutar para garantir direitos humanos para todas as crianças do Brasil.

Se a Comissão do MP achar que a Netflix está mesmo estimulando adultos a se interessarem sexualmente por crianças, e assim deixando as crianças brasileiras ainda mais vulneráveis à pedofilia e a outros tipos de abuso e violência sexual, pode denunciar a plataforma à Justiça e os responsáveis, eventualmente, serem punidos com multa e até prisão, conforme está previsto no ECA.

Investigação nos EUA

Não é só no Brasil que a Netflix está ameaçada de responder criminalmente por disseminar pornografia infantil, tornando as crianças mais vulneráveis. Nos Estados Unidos um deputado do Texas (Matt Schaefer) anunciou que pediu ao procurador-geral do Estado para investigar se houve violações às leis americanas de exploração e pornografia infantil por causa da exposição exagerada de partes íntimas do corpo das atrizes mirins.

O Código Penal norte-americano tem trechos específicos definindo o que é pornografia infantil e exploração sexual de menores. A editoria Ideias da Gazeta do Povo publicou recentemente um artigo sobre isso. Para analisar quais limites podem ter sido ultrapassados pelo filme, Fabio Marcelo Calsavara lembra uma decisão da suprema corte americana de 1986.

Ao condenar dois homens que fotografaram um menina de 10 anos e outra de 14, nuas, a suprema corte estabeleceu alguns critérios para definir se uma foto ou filmagem pode ser considerada pornografia infantil.

Entrariam nessa categoria as representações visuais que são propositalmente criadas para ativar uma resposta sexual no espectador; aquelas que sugerem uma certa timidez sexual ou mesmo a vontade de praticar um ato sexual; aquelas onde as crianças estiverem parcialmente vestidas ou nuas; e as que mostram as crianças em posturas não condizentes com a idade, ou em trajes impróprios.

Nessa sentença os juízes americanos indicaram que também podem ser consideradas pornográficas fotos ou filmagens feitas em poses ou lugares associados à atividade sexual; além das imagens em que o foco está na região genital da criança.

Argumentos contra o filme

Para quem ainda acha que todo esse barulho é exagerado, que não há qualquer possibilidade de a Netflix estar promovendo incitação à pedofilia ao exibir esse filme, trago um argumento que achei excelente, tirado de um artigo publicado pela revista americana National Review e reproduzido pela Gazeta do Povo (também na editoria Ideias). Recomendo a leitura, inclusive.

A autora, Madeleine Kearns, faz uma analogia muito apropriada para derrubar a falácia de que o filme pretende abrir os olhos de adultos que ainda não perceberam o perigo de banalizar a erotização precoce de crianças e adolescentes.

“Imagine se um filme, que se dispusesse a fazer uma crítica social sobre crueldade com animais, mostrasse imagens reais de espancamento de cães e gatos, ou mostrasse esses animais sendo queimados vivos.”

Madeleine Kearns, em artigo da National Review

E diz ela que os cineastas, como não poderiam usar aquele aviso padrão de que "nenhum animal foi ferido durante as gravações do filme" sairiam dando a desculpa de que o objetivo era mostrar como isso é errado.

A autora lembra que, no caso de "Lindinhas", tinha uma maneira fácil de contornar o "desafio artístico" de alertar para os riscos da erotização precoce: escolher atrizes jovens, mas adultas com aparência infantil, para protagonizar as cenas, que são todas pesadas demais para crianças de 11 anos como é o caso. Seriam também, aliás, até para meninas mais velhas, de 13, 15 ou 17 anos, que dirá para meninas de 11.

Em outro argumento excelente, que você pode usar quando ouvir alguém reclamando das críticas sendo feitas por quem sequer assistiu ao filme, a autora diz: “Minha reclamação com quem faz essa defesa é que essas pessoas assistiram ao filme e mesmo assim fingem que não há ali nenhum grande problema ético.”

Assino embaixo. Assistir e fingir que não há problema num filme para adultos em que crianças se insinuam sexualmente é pior do que não assistir e criticar o que está lá. Que venham as investigações criminais.

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