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O Massacre de São Bartolomeu, por François Dubois.
O Massacre de São Bartolomeu, por François Dubois.| Foto: Nora Rupp/Domínio Público

Nos anos de 2016 e 2017 estive Oxford e Coimbra, com o propósito de estudar mais um pouco acerca da primeira das liberdades, a religiosa. A primeira, cronologicamente, porque foi ela quem abriu o caminho para o desenvolvimento dos direitos humanos e primeira também, do ponto de vista da importância, porque diz respeito à relação entre a pessoa humana e o transcendente, não apenas, portanto, em relação aos semelhantes.

Há cinco séculos, em nome de tal liberdade – que, frise-se, refere-se principalmente ao direito de adorar a Deus (um dos aspectos dela), de acordo com a própria consciência –, homens confrontaram poderes religiosos; confrontaram também poderes políticos e econômicos; enfrentaram riscos, cruzando os mares e oceanos, imigrando e deixando para trás seus lares e sua história; foram também ainda torturados e executados, infelizmente.

Tudo isso porque nenhum Estado, ou nenhuma autoridade, poderia impor uma verdade, ou uma maneira de pensar, nem determinar sequer a forma como os crentes deveriam prestar culto ao Deus deles. Nenhum Estado ou autoridade, da mesma forma, deveria obrigar alguém a crer – em outras palavras, tal liberdade também protege os que creem em nada. Estávamos, então, na última oportunidade, completando os 500 anos da Reforma Protestante.

Foi neste período que as Guerras Religiosas tomaram lugar, na Europa: exatamente no século XVI. Podemos, assim, mencionar, por exemplo: a famosa Noite de São Bartolomeu, em 1572, a qual ficou conhecida porque os protestantes franceses foram martirizados (fala-se em mais de 30 mil mortos); podemos lembrar também, já no então século XVII, a Guerra dos Trinta Anos, entre 1618 e 1648, ao término da qual foi assinado o Tratado de Westphalia, moldando os estados modernos e dando início do Direito Internacional.

Abro um parêntesis: este tratado viria modelar e formatar o conceito de soberania, tão caro à Ciência Política, valorizando a autodeterminação dos povos. Outro fruto advindo dele foi que a tolerância foi esgrimida como ideal a ser alcançado: cada um deveria servir a Deus, ou aos deuses no futuro (já que não estaria limitado apenas ao Deus judaico-cristão), de acordo com a própria consciência, e deveria, portanto, ter a esfera individual respeitada, pelo Estado e pelos concidadãos, o que passou a ser conhecida no século passado como dimensões vertical e horizontal dos direitos humanos. Fecho o parêntesis.

Retomando o raciocínio: paralelo a este último evento, ocorria, na Inglaterra, a Revolução Puritana, de Oliver Crommwel, também movida por um cunho religioso, embora não se limitasse a isso apenas – os USA surgiriam como causa direta desse momento político-social, pois os peregrinos do Mayflower, cansados da perseguição da igreja oficial da Inglaterra, a Igreja Anglicana, migraram e fundaram as trezes colônias. Faço um exercício mental: teriam eles rememorado a predica de Moisés ao Faraó, quando, por mandado divino, disse “Deixa sair meu povo para prestar-me culto”?

Todos estes fatos, que moldaram a civilização ocidental, se deram, substancialmente, por causa da liberdade de crer, cultuar, com o consequente desenvolvimento de conceitos, tais quais: Liberdade Religiosa, Soberania, Tolerância, Direitos Humanos, etc. Os sublinho, mais uma vez.

Os trouxe a memória desta vez para destacar algo que foi falado por um dos painelistas, em Oxford: não há paz, onde não há liberdade religiosa; enquanto outro, no mesmo sentido, declarou: não há democracia, onde não há liberdade religiosa. Da mesma forma, nos ensina meus colegas que estiveram comigo em Oxford e Coimbra, Thiago Vieira e Jean Regina: “A liberdade religiosa é base para qualquer Estado Democrático Constitucional em decorrência de sua nuclear pluralidade de ideias e pensamentos[i]”. Não precisaríamos ir tão longe, no tempo, entretanto. Basta darmos uma olhadela no que ocorre no Oriente Médio, hoje em dia, e a história a se repetir: a tentativa de imposição de uma fé, por parte do Estado Islâmico, gera sofrimento, perseguição, guerras, migrações, mortes.

A liberdade religiosa é a primeira das liberdades. Ela abriu caminho para que os demais direitos humanos se desenvolvessem, fundamentados na afirmação de que tais direitos não são dados pelo Estado, pela Igreja, ou por qualquer outra autoridade: eles são inerentes à pessoa humana. E o Estado, bem como as demais esferas da sociedade, apenas os reconhece. Aliás, um dos objetivos do Estado é, justamente, garantir o exercício dos direitos humanos e salvaguardar tais direitos, mas jamais os conceder! O Estado, sendo assim, pode, no máximo, suprimir, numa atitude ilegítima e tirânica, mas não é ele, jamais, quem os outorga. Reconhece, tão somente. Ou, numa linguagem bem conhecida, declara os direitos (preexistentes).

Isso é uma verdade que tem que ficar firme no pensamento do cidadão: direitos humanos não são concedidos pelo Estado. Direitos humanos são reconhecidos, já que são anteriores ao Estado. A existência deles não depende do estado, da família, da igreja, da sociedade. Direitos humanos são, utilizando um outro termo, inatos.

A Declaração dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 18, estipula: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência, religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.”

Causava estranheza, a mim, no ano de 2017, depois disso tudo, depois de tantas guerras, depois de 500 anos de lutas, sofrimentos, mortes, que tivessem sido aprovadas leis proibindo que as confissões cristãs preguem, ou ensinem, que determinado comportamento, diante do que é colocado nas Escrituras, é pecaminoso. Pergunto: o Estado agora é quem dita e determina as verdades teológicas? Falo, por exemplo, de leis na Suécia e no Canadá, as quais criminalizam o que tacham como “discurso de ódio”, a impedirem que pastores e padres preguem contra a prática homossexual.

Costumava ser dito, até bem pouco tempo, em países laicistas, os quais são francamente hostis à religião, ou, numa menção oitocentista, anticlericais, que, em decorrência da separação do estado frente à religião, os crentes poderiam ter a fé deles para a vida privada, mas que ela não deveria ser colocada no espaço público. Agora, se assim for, se tais leis grassarem pelos países, nem no púlpito, o qual é de certa forma âmbito privado, mais poderá ser a fé posta com a liberdade que se pretende. Pergunto: que liberdade é esta, tão sufocada, que mal pode respirar?! Estamos vivendo um Constantinismo às avessas, sem que haja a separação entre estado e religião, a supressão do tão conhecido dualismo gelasiano do século V, num lamentável retrocesso.

Thomas Schirrmacher, uma das maiores autoridades da liberdade religiosa da Alemanha, conselheiro da primeira ministra Ângela Merkel, em uma das aulas que proferiu em Oxford, em 2017, deu o seguinte exemplo e fez uma comparação com a liberdade de expressão e de imprensa, pontuando: de nada vale afirmar que tenho liberdade de expressão, que posso escrever o que quiser no meu computador, quando, ao mesmo tempo, é determinado que tais ideias tem que ficar guardadas na minha casa, impublicáveis. Isso não é liberdade de expressão! É a negação dela! Ninguém escreve um texto, para não divulgá-lo! Ninguém tem uma liberdade religiosa para não poder expressá-la, de acordo com as mais íntimas convicções.

Desta feita de nada adianta ter reconhecida a liberdade religiosa se, ao fim e ao cabo, o Estado ordena que devo guardá-la comigo, que não posso divulgar a minha religião e levá-la ao conhecimento do público, no espaço público. Chegamos, agora, ao paroxismo de não poder exerce-la sequer nos púlpitos! Isso é, definitivamente, numa palavra, negação dos direitos humanos. É isso, sem sombra de dúvidas, a desumanização daqueles que creem, que passam a ser, doravante, cidadãos de segunda classe.

Quanto à liberdade de expressão religiosa, convém referi, não se trata, de forma alguma, de “discurso de ódio”; trata-se, sim, na verdade e de verdade, utilizando-se de um trocadilho, da pregação de uma verdade teológica (pelo menos para os que creem), a qual é o exercício de um direito humano: a liberdade primeira, a liberdade religiosa. Não se trata de um “discurso de ódio”, categoria esta que não foi ainda conceituada, porque não se ataca a pessoa, essência que não subsiste em algumas escolas filosóficas, como as pós-estruturalistas, mas uma prática, uma conduta.

Aliás, do ponto de vista do crente, pelo menos do cristão, é mais do que um direito, é um dever! É o cumprimento do “Ide”. “Ide e fazei discípulos em todas as nações” (Mateus 28: 19). Como se pode cumprir este dever cristão, se o Estado proíbe e criminaliza o discurso religioso ou pune o proselitismo?! Parafraseando o cancioneiro popular, “O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade?”. Mas isso, sabe-se, como as perseguições, não é novo. Os apóstolos da igreja primitiva conheceram tais impedimentos, há dois mil anos, e disseram: “Importa mais obedecer a Deus que aos homens” (Atos 5:29).

Abro um outro parêntesis, agora: com certeza, alguns dos que leram tais citações bíblicas, podem ter pensado que tais argumentos não seriam cabíveis, numa discussão acerca dos direitos humanos, pois não teriam legitimidade, já que advindas de um livro sagrado. Pontuo: trata-se de fatos históricos. Nenhum juízo de valor foi feito neste ponto. Não leva-los em consideração seria uma espécie de negacionismo. São tais fatos legítimos para serem trazidos à liça, porque eles moldaram nossa história ocidental. E bem sei que, para alguns, a fala, o discurso, já é um ato, carregado de sentido e valor, mas o outro lado da moeda é que, assim sendo, querer suprimi-la é, ao mesmo tempo, o seu revés: um ato de opressão e violência – no mínimo, violência simbólica. Calar meu oponente é, também, em outro sentido, desumanizá-lo, ao não dar-lhe vez e voz! Fecho o parêntesis.

Retomando o raciocínio: o que vemos agora, a esta altura, com a desculpa da promoção daqueles mesmos direitos humanos, sendo estes instrumentalizados para limitar, justamente e ironicamente, o exercício da liberdade religiosa, é a imposição de um moralismo. Sim! Um moralismo secular! O Estado faz hoje o que a Igreja fez no passado, de forma totalmente equivocada, ao impor a moral dela aos não-crentes. Ou seja, o Estado quer empurrar goela abaixo a “verdade” teológica dele, ou a verdade teológica dos não-crentes aos cidadãos que creem.

Quando se defende o exercício da liberdade religiosa, nas vertentes da liberdade de ensino (nos púlpitos) e da liberdade de proselitismo (nos espaços públicos), os crentes de hoje não querem, portanto, cair nos erros do passado e impor a moral deles a quem crê de forma diferente (ou a quem não crê); nem querem suprimir os direitos civis de quem quer que seja – daqueles que queiram viver da forma que melhor lhes apraz. O que se quer, única e exclusivamente, é a liberdade de tentar convencer os que ainda não foram convencidos e discipular (ensinando) os que já foram convencidos acerca de uma verdade teológica (não adentrando aqui na discussão acerca da existência da verdade, nessa quadra da pós-verdade).

Relembrando Thomas Schirrmacher: “Onde não há liberdade religiosa, não há paz”. Ele também discursou em Oxford, no ano de 2017, que, quando da desagregação da antiga Iugoslávia, após o fim da União Soviética, nos Balcãs, onde havia várias nações convivendo com vários seguimentos religiosos (Croácia, predominantemente Católica Romana; Bósnia, com maioria mulçumana; Kosovo, e Albânia, também mulçumanos; Montenegro – Cristãos Ortodoxos), o único país que conseguiu manter a ordem e se desenvolver normalmente foi a Albânia, justamente porque reconheceu aos cidadãos dela a liberdade religiosa.

Estamos a ver no novo milênio alguns estados caírem no mesmos erros do passado, sem se darem conta, quando, para citar um exemplo, nos USA, algumas leis estaduais proibiram o ensino do Evolucionismo nas escolas, porque ia contra a doutrina da criação divina do mundo: o filme Inherit the Wind (em português “O vento será a sua herança”) retratou tal caso, o famigerado “Julgamento dos macacos”, quando um professor de uma escola estadunidense foi julgado criminalmente por ensinar a teoria de Charles Darwin aos seus alunos. A diferença, contemporaneamente, é que quem está na iminência de se sentar no banco dos réus não são os ateus, mas os crentes.

Vivemos, assim, uma espécie de “apartheid”, não racial, mas religioso, no qual os que resistem a determinados comportamentos – que querem ser impostos por uma elite ou por um grupo através do Estado –  e não resiste às pessoas, aos seus concidadãos, e essa, portanto, é a diferença substancial, são tidos como inimigos do Estado. E contra eles o Estado movimenta o seu aparato judiciário, na aplicação de um Direito Penal do Inimigo, a fim de silenciá-los. Sim, também de segregá-los, ao ameaça-los com penas de prisão!

Que escalada é esta?! Será que amanhã o Estado determinará a supressão dos capítulos bíblicos que relatam a ressurreição de Cristo, já que é algo que não pode ocorrer, de acordo com a ciência?! Dirá ele qual a doutrina religiosa mais apropriada?! Teremos teólogos oficiais que, numa espécie de concílio, decretarão, como já se falou jocosamente, “a inconstitucionalidade de Deus”?! Há algum Sófocles moderno para reescrever a Antígona moderna, personagem que não se conforma em ser impedida de manter a tradição (religiosa)?!

Antes de terminar, convém fazer uma espécie de contraponto, para evitar qualquer mal-entendido: de forma alguma, este escrito pretende o não reconhecimento dos direitos civis e políticos de qualquer seguimento da sociedade. O que se critica é a limitação esdrúxula de uma liberdade legítima e primeira.

Já concluindo. Estamos retornando, com esse tipo de legislação, ao tempo das monarquias setecentistas, em que se condenava alguém por crimes políticos ou crimes de opinião, ou retomando aos tempos dos regimes militares, de esquerda e de direita, que se bania, exilava, prendia quem tinha pensamentos considerados subversivos pelo establishment. Estamos, a bem da verdade, na antessala da tirania! Aqui no Brasil, ainda estamos no aguardo da publicação do acórdão da criminalização da famigerada homofobia, para ver quais são os contornos que serão dados a tal questão. Até porque, é bom lembrar, na nossa legislação penal já há dispositivos que disciplinam, de forma equilibrada, a liberdade de expressão, evitando os eventuais abusos dela, através dos tipos penais da calúnia, da injúria, da difamação, do escarnecimento e da injúria racial.

Repita-se: os erros e moralismos de ontem, do Estado e da Igreja, ao quererem impor uma certa moralidade, não podem justificar os moralismos seculares do Estado de hoje.

*Jeová Barros de Almeida Júnior – Formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, com pós-graduação em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Mackenzie e pós-graduação em MBA-Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Conselheiro e Diretor Institucional do Instituto Brasileiro de Direito e Religião  - IBDR.

[i] VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques. Direito Religioso: questões práticas e teóricas. 3ª ed, Porto Alegre: Edições Vida Nova, 2020, p. 90.

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