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A economia sabemos para onde vai; e a democracia?
| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo

Há aproximadamente três semanas, quando as medidas restritivas para o enfrentamento à pandemia do novo coronavírus começaram a ser sentidas, observamos também algumas falas meio estranhas, e outras situações já materializadas em “canetadas” de prefeitos e governadores, mediante a expedição de vários decretos.

Ao mesmo tempo, como parece acontecer em momentos como o atual, a maioria das pessoas é tomada de um certo estado de torpor, uma coisa meio “mundo zumbi”, provavelmente fruto do pânico instalado por autoridades e meios de comunicação quando abusam de seu poder de informação e, em vez de instruir para a calma, acabam por propagar uma onda alarmista na tentativa de conter a massa.

Ou seja: enquanto dormimos “em berço esplêndido”, muitas cositas andam acontecendo nos Paços municipais e estaduais pelo Brasil. Mais abaixo vamos explicar nosso ponto.

O que está acontecendo é o ultrapassar de marcos antigos, de estacas cujas delimitações custaram a vida de milhões de pessoas

Novamente queremos repisar que nossa visão sobre o tema (até por nossa ciência não ser da área biológica) é de que uma doença reconhecida como uma pandemia – a 12.ª registrada na história – deve ser tratada com o devido respeito. Não podemos ser levianos e descuidar de medidas que evitem a propagação deste mal. Esperamos sinceramente que o mesmo vá embora o mais rápido possível, embora saibamos que o mês de abril traz notícias ainda de uma curva em escalada de contágios, e também tendemos a ver um infeliz aumento no número de mortes por aqui.

Também sabemos da devastação econômica que a retração da atividade atual tende a causar no médio e longo prazos. Neste momento, a maré ainda está recuando, e quem nunca passou por um tsunami talvez não esteja se dando conta. Uns continuam na praia, observando o estranho fenômeno do mar indo muitos quilômetros para trás; outros seguem seu banho de sol como se nada de grave fosse acontecer. E justamente por isso é que a destruição acaba por ser avassaladora. Os incautos são pegos de surpresa.

Por mais que não queiramos ouvir, o que hoje sentimos como sinais em poucas semanas veremos de maneira mais cristalina. Recessão, desemprego, fuga de capitais, empobrecimento coletivo e as desordens sociais daí decorrentes são uma realidade-em-perspectiva muito palpável e cuja materialização está sendo precificada na bolsa de valores e nos vários escritórios de negócios das capitais do globo.

Entretanto, o que ainda mais escapa ao olhar menos sensível, para além dos rumos da economia, são os próprios rumos da nossa jovem e cambaleante democracia. E isso tem tudo a ver justamente com a religião e o Estado laico!

Retomando os parágrafos iniciais de nosso texto, a escalada dos decretos municipais e estaduais que, no contexto das declarações de emergência e/ou calamidade pública, têm imposto restrição às liberdades civis fundamentais – e, em especial, à liberdade religiosa – está tomando proporções nunca vistas por muitas gerações de brasileiros. E, nesta semana, chegamos a duas situações realmente preocupantes.

Entenda, caro leitor: não podemos dizer que, sob circunstâncias como a que estamos vivendo, temos de ser condescendentes com eventuais abusos em prol da nossa proteção coletiva. O que está acontecendo é o ultrapassar de marcos antigos, de estacas cujas delimitações custaram a vida de milhões de pessoas. Muitos de nossos antepassados foram protagonistas nos séculos passados para garantir que, hoje, você e eu pudéssemos ter este feixe incrível e inigualável de direitos e garantias individuais. Não podemos assistir ao desmonte do sistema de liberdades civis de braços cruzados. Not on my watch! Vejamos, então.

O pânico do povo não pode ser espelhado pelo aparelho de Estado

Em Salinópolis (PA), uma senhora que foi a Belém visitar a mãe de 86 anos e comprar remédios para o filho – pois o medicamento não estava disponível em sua cidade, conforme o relato disponível aqui – ficou “presa” na barreira sanitária ao tentar retornar para casa. Ela explica no vídeo que não foi tomada nenhuma medida de avaliação médica (aferir temperatura, questionários e afins) que pudesse justificar seu impedimento de retorno para casa.

Agora, o centro da conversa. Em Forquilhinha (SC), um grupo de cinco pessoas teve seu momento de oração doméstica interrompido pela Polícia Militar. Sim, estamos falando de um grupo familiar, em pleno momento íntimo de comunhão espiritual no lugar mais sagrado de todos – o lar –, interrompido porque a guarnição em questão, os agentes públicos encarregados da manutenção da paz e da ordem social, interpretou um decreto estadual de maneira mais realista que o rei.

O caso, registrado em boletim de ocorrência (Registro 0252715/2020 -BOPM-02342.2020.0000450) aconteceu com fundamento no artigo 3.º do Decreto 515/2020 do Estado de Santa Catarina, que proíbe os cultos, inclusive no âmbito privado. Conforme a (muito infeliz) ação dos policiais, nem mesmo o interior da residência/casa/moradia está “seguro”, e nem a quantidade de pessoas presentes foi levada em conta. No dia seguinte, após o constrangimento ter sido publicado por todo o Brasil, representantes da polícia visitaram Carina Andrade da Silva e, inclusive, pediram oração pelos policiais. Contudo, até o momento em que escrevemos este artigo, não houve nenhum pedido de desculpas por parte da corporação, nenhuma retratação ou algo do tipo, conforme vídeo disponível aqui.

Qual a gravidade das situações? A primeira, no Pará, mostra que o município de Salinópolis está carente de estabelecer prioridades. Por qual motivo é possível fazer caminhadas, ter veranistas, mas não é possível que uma mãe se desloque para socorrer um filho doente? Se estamos falando de saúde pública, é função do município, em um Estado Democrático de Direito, viabilizar que outras doenças não deixem de ser tratadas!

Já o segundo caso parece mais assustador que o primeiro. Primeiro, porque a polícia somente chegou ao local da “ocorrência” graças a alguma denúncia. As pessoas estão realmente amedrontadas; entendemos isto e simpatizamos com todos. Mas o pânico do povo não pode ser espelhado pelo aparelho de Estado. O Estado é uma instituição firme e perene; não está suscetível às vicissitudes de nossa fragilidade corpórea. Nós morremos, o Estado não. Por isso mesmo é obrigação de quem está investido de poder pautar a atitude coerente, lógica, sadia. A palavra tem de ser a mesma que usamos para elogiar a atitude do presidente do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região na semana passada: serenidade.

Assim, não é razoável que a corporação policial valide o pânico do denunciante quanto ao fato de um grupo insignificante de pessoas que convivem em uma casa, ou mesmo de amigos se visitando (por menos recomendável que sejam os deslocamentos desnecessários neste tempo), estar orando na casa ao lado! Deveriam os policiais elogiar a atitude de fé e esperança em dias tão nebulosos. No mínimo, deveriam informar ao denunciante que não foi quebrado nenhum código de conduta. Mas jamais deslocar-se ao lar e interromper o momento íntimo de fé dizendo que não poderiam orar em casa! Isto é um abuso imperdoável!

E a Constituição da República Federativa do Brasil, como fica nessa história? Desrespeitada. A Carta Magna, no artigo 5.º, inciso VI, declara ser inviolávela liberdade de crença, e em seu artigo 19, inciso I, determina que o culto não pode ser embaraçado por nenhum ente da Federação! E que tal a Declaração Universal de Direitos Humanos? Parece que o Artigo XVIII, bem claro ao dizer que “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião [...] pelo culto e pela observância, em público ou em particular”, também não foi consultado. Impedir um culto doméstico é um sinal de arrogância perante a determinação da Constituição e um desrespeito ao sagrado.

Nossas ações, escolhas, opção religiosa, são desdobramentos da nossa vida. Estão no íntimo do nosso ser e fazem parte do nosso dia a dia. Avocar uma pandemia de Covid-19 para ditar aquilo que alguém faz dentro da sua própria casa é um descalabro contra a dignidade da pessoa humana. O homem é litúrgico, conforme nos ensina o professor James K. A. Smith. A religião molda aquilo que somos, e a aversão/ódio ao sentimento religioso denuncia os monstros que podem habitar no coração de alguém. “Somos o que amamos, e nosso amor é moldado, aperfeiçoado e guiado por práticas litúrgicas que tomam posse das nossas entranhas e direcionam nosso coração para certos fins. [...] Somos, mais concretamente, Homo liturgicus; nós, seres humanos, somos animais religiosos [...] criaturas encarnadas, praticantes, cujo amor/desejo está voltado para algo supremo”, escreve ele em Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural.

Avocar uma pandemia de Covid-19 para ditar aquilo que alguém faz dentro da sua própria casa é um descalabro contra a dignidade da pessoa humana

Por isso explicamos, em nosso livro Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, que “Os direitos fundamentais dos seres humanos, entre eles as liberdades de crença e culto que expressam a liberdade religiosa, são os formadores das instituições democráticas, os quais só podem ter eficácia e vez num Estado Constitucional.”

Destarte, é imprescindível que os estados e municípios (por meio de seus decretos e diretrizes aos agentes públicos), e os seus cidadãos estejam conscientes de que 1. vivemos em uma democracia; 2. somos regidos pela dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa sociedade; 3. as pessoas ficam doentes, remédios precisam ser comprados; 4. as pessoas são livres para crer e cultuar – ainda, graças a Deus.

A economia vai para o seu caminho de deserto. Sangue, suor e lágrimas e ela terá outro ciclo de bonança. Mas para onde vai a democracia brasileira?

Que aprendamos a dura lição de Joaquim Nabuco: “A liberdade, uma vez confiscada, não pode ser restituída íntegra, ainda mesmo que a aumentem; ficará sempre o medo de que ela seja suprimida outra vez e com maior facilidade”.

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