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O presidente Jair Bolsonaro participa de live com líderes religiosos no domingo de Páscoa.
O presidente Jair Bolsonaro participa de live com líderes religiosos no domingo de Páscoa.| Foto: Reprodução/Facebook

12 de abril de 2020, domingo de Páscoa. O cristianismo mundial celebra sua data mais importante: a ressurreição de Jesus, o Filho de Deus. Dois milênios depois, mais de 2 bilhões de pessoas seguem os passos do Nazareno, que, além de reconciliar os homens com Deus através de sua vida e morte sacrificiais, impactou tanto a história que literalmente a dividiu entre antes e depois de caminhar entre nós.

Como todos sabemos, ao longo dos séculos o cristianismo tem influenciado o mundo em praticamente todas as áreas da vida humana: do conhecimento científico, ora estimulado ora desafiado, passando pelas humanidades e estudos sociais, sem descuidar do impacto na esfera política. Roma sucumbiu, mas a Igreja floresceu; o que hoje conhecemos por Europa (e, de quebra, o que depois veio a ser o nosso continente americano) bebe diretamente da cultura estabelecida pela fé cristã. Já São João Paulo II afirmara (depois ratificado pelo papa emérito Bento XVI) que a Europa é o produto do encontro de três cidades: Jerusalém, que nos legou a fé no Deus de Abraão, Isaac e Jacó – de quem descende o Messias anunciado, Jesus; Atenas, que deu ao mundo a sistematização do pensamento por meio da filosofia; e Roma, ao organizar a sociedade para o florescimento pelo Direito.

Sob esta bandeira foram os diferentes postos romanos espalhados pela Europa formados e, depois, organizados como os países que hoje conhecemos. Um dos exemplos é o antigo “Porto da Gália”, que depois passa a ser organizado como “Portugal”, de quem somos nós, brasileiros, filhos diretos. Assim sendo, esta nossa terra, que nasceu como “Ilha de Vera Cruz” e, logo depois, “Terra de Santa Cruz”, jamais deixou de ter no madeiro onde foi vergado o Logos divino o seu símbolo maior. A cruz nos uniu como povo – conta a história, inclusive, que as grandes embarcações portuguesas sempre carregavam consigo “lascas da cruz de Cristo”, ou melhor, da verdadeira (vera) cruz em que Cristo fora crucificado, fruto da fé e da missão de propagação do Evangelho ao novo mundo –, e seguimos sendo o povo da cruz! Prova disto é que todas as bandeiras de nossa herança nacional, até a atual, mantêm-na (a cruz) à vista. Desde os reis portugueses aos imperadores brasileiros – a cruz da Ordem de Cristo, criada em 1319, foi incorporada aos pavilhões das dinastias reinantes, de dom Dinis até dom Pedro II por aqui (e que continuam no brasão da família Orleans e Bragança).

A cruz nos uniu como povo, e seguimos sendo o povo da cruz

Logo após o golpe republicano, e na sanha de refundar o país sob os novos valores embasados na doutrina positivista, também a bandeira nacional, expressão de um país que emergia do regime monárquico para a “evolução natural” da humanidade em progresso, foi alterada. Mantiveram o retângulo verde com o losango amarelo, tal como idealizado por Jean Baptiste Debret e José Bonifácio de Andrada e Silva ao constituírem a bandeira imperial, mas, em vez das armas da casa reinante, colocaram um céu azul, a faixa positivista e estrelas. Entre elas, a brilhar, a constelação que nos identifica: o Cruzeiro do Sul ou Crux, que em latim significa simplesmente “cruz”.

Toda esta introdução serve para lembrar, repisar, firmar o entendimento que, possamos querer ou não, o elemento religioso de matriz cristã é absolutamente entranhado em nossa consciência nacional. O povo brasileiro é majoritariamente cristão, esmagadoramente religioso. Bater-se contra isto é exercitar um negacionismo da realidade, expressão esta que vem tomando as matérias jornalísticas nos últimos meses ao se referir a quem, especialmente líderes políticos, minimiza os impactos da pandemia mundial.

O presidente Jair Bolsonaro resolveu, neste domingo de Páscoa tão singular, quando todos os cristãos – ou pelo menos sua maioria esmagadora – foram privados da oportunidade de viver sua festa maior nos diversos templos do país, fazer uma transmissão ao vivo, uma live, como todos dizemos, juntando líderes religiosos do catolicismo romano, de algumas tradições evangélicas e, inclusive, de um líder da comunidade judaica. A transmissão ocorreu pela internet e pela TV Brasil. Foi o suficiente para uma parcela do povo tomar por ofensa ao Estado laico tal atitude. Será?

Em nossa obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas, comentamos sobre a opção do constituinte originário brasileiro ao adotar o regime da laicidade colaborativa. Ao mesmo tempo que o povo define que o Estado não adotará uma postura institucional quanto à questão transcendental (em outras palavras, não confessará uma fé ou religião específica), reconhece a importância fundamental da religião como sendo o fenômeno capaz de dar respostas a questões existenciais sem as quais é impossível ao ser humano ter plena dignidade. E a dignidade, por sua vez, é um dos fundamentos da nossa Constituição (artigo 1.º, III). Logo, ambos se colocam em suas esferas (o Estado na dimensão física, material; e a religião, na esfera espiritual) ao buscarem o bem comum, ou, como no texto do artigo 19, I, o “interesse público”.

Por outro lado, sempre há quem pense que o Estado laico colaborativo brasileiro guarda relação com a experiência observada na França, que resolveu adotar uma ruptura entre o tecido social e a sua herança de fé cristã. A Revolução Francesa foi, em essência, um ato de destruir o passado e criar ex nihilo o seu país. Nele, a fé foi relegada à esfera privada da vida humana, uma espécie de “mal” a ser combatido pela iluminação da razão intelectual, mas tolerada enquanto os néscios não conseguem evoluir. A fé jamais seria um argumento de autoridade na esfera pública! E este pensamento é acolhido e anelado por uma parcela significativa de nossa elite brasileira, nas várias áreas da produção e disseminação de cultura, e que ora se vê em choque com a cultura majoritária do Brasil profundo: aquele que responde por mais de 90% dos 209 milhões de habitantes deste país. Muito diferente do país do qual herdamos nossa laicidade: os Estados Unidos.

Para os norte-americanos, a fé em um Deus criador de todas as coisas sempre foi fundamental e a separação entre Igreja e Estado se deu muito mais como proteção para a Igreja de intromissões estatais do que o contrário. Vejam uma das frases mais conhecidas do idioma inglês, que está presente na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness” (“Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são a vida, a liberdade e a busca da felicidade”).

Sempre há quem pense que o laicismo brasileiro guarda relação com a experiência da França, onde a fé foi relegada à esfera privada da vida humana, uma espécie de “mal” a ser combatido pela iluminação da razão intelectual

Até um representante da Organização dos Estados Americanos – curiosamente, o seu relator para liberdade de expressão (!), Edison Lanza, criticou a transmissão da live, dizendo em sua conta do Twitter no dia 13 de abril: “Um continente que não aprende com os erros está condenado a repetir suas tragédias. A tevê pública do Brasil convertida em um espaço de proselitismo político e religioso. Há de se banir o uso sectário (confessional) e longe do interesse público das mídias públicas com garantias legais” (tradução livre).

É o típico exemplo de confusão sobre o modelo brasileiro em contraposição a outros modelos. O Brasil não vê uma afronta na existência da fé em sua dimensão pública! Fique claro: não foi um culto religioso. Seria impossível congregar católicos, evangélicos e judeus na mesma cerimônia litúrgica! O que aconteceu ali (analisando especificamente sob o argumento de ferir ou não o Estado laico; deixamos as interpretações políticas para o juízo de cada leitor) foi, a pretexto da maior data do calendário cristão, buscar conversar com líderes que expressam a maioria das confissões religiosas brasileiras sobre a situação atual, e encorajar a todos a manterem o bom ânimo e a perseverança diante dos dias difíceis que todos enfrentamos.

A liberdade de expressão religiosa de pelo menos 180 milhões de pessoas foi celebrada neste domingo da Ressurreição. Em tempos nos quais as liberdades civis estão tão fragilizadas diante do pânico instalado pela pandemia, a tsunami de fake news que é descarregada e compartilhada por aí e o desalento por tantas previsões catastróficas são armas de propaganda que podem abater o moral do povo. Ser um pacificador é virtude muito bem-vinda nestes dias. Assim como denunciar o que está errado é função de todos aqueles que se consideram homens e mulheres de boa vontade, voltemos nossos pensamentos igualmente para ações que nos façam animados e prontos para a dura tarefa de reconstrução do nosso Brasil após esse vírus maldito sumir daqui.

E Feliz Páscoa aos leitores, mesmo com atraso!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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