• Carregando...
Igrejas voltam a celebrar missas com presença de fieis no Rio de Janeiro. Na foto, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado.
Igrejas voltam a celebrar missas com presença de fieis no Rio de Janeiro. Na foto, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado.| Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Uma das principais polêmicas que a presente pandemia trouxe à tona foi acerca das atividades religiosas: sua natureza, seus limites, suas responsabilidades, seus direitos, etc. O tema ganhou destaque especialmente a partir do decreto de número 10.292/20, editado no dia 25 de março pelo Presidente da República, que incluiu as atividades religiosas no rol das “atividades essenciais” (assegurando-lhes assim o direito de continuar funcionando mesmo durante a pandemia – desde que respeitassem as recomendações do Ministério da Saúde, é claro).

Essa decisão gerou considerável número de críticas, sobretudo no que se refere à sua compatibilidade com o princípio da laicidade do Estado (quer dizer, ela foi acusada de ferir esse princípio); e desde então tem havido sérios problemas políticos com relação ao exercício da liberdade religiosa, sempre tendo como pano de fundo a questão da laicidade do Estado (ou ainda, sua suposta incompatibilidade com a visão de que as atividades religiosas são essenciais – a laicidade e o caráter essencial da religião seriam como água e óleo).

Felizmente, o leitor desta coluna tem estado muito bem servido de esclarecimentos a esse respeito. E não só quanto ao princípio da laicidade, mas também quanto ao caráter fundante que tem a liberdade religiosa para as demais liberdades e direitos fundamentais; e que tem a religiosidade para a vida humana em geral, dado estar inteiramente voltada para as preocupações últimas dos seres humanos (sobre o sentido da vida) e dado ser uma expressão da própria dignidade da pessoa humana (cujo valor é intrínseco não apenas em virtude da capacidade para personalidade moral, mas também por conta da própria espiritualidade que a constitui, a qual lhe permite elevar-se sobre a ordem da necessidade natural, dos meros fatos brutos, para a ordem dos sentidos, das normas, dos princípios, dos valores, etc. – em suma, em direção a ser humano ao invés de mero animal). Aliás, note-se que mesmo Ludwig Feuerbach, um dos pais do ateísmo moderno, reconheceu que: “A religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal – os animais não têm religião.”[1]

Todavia, conforme afirmei há pouco, ao leitor desta coluna tem sido dada a oportunidade de familiarizar-se com tudo isso. E, então, pareceu-me melhor escrever um texto que pudesse servir de complemento às elucidações jurídicas e políticas já estabelecidas a essa altura do debate. Em particular, desejo recorrer, aqui, a uma reflexão filosófica que ajude a corroborar a tese da essencialidade da religião.  Proporei, pois, um experimento de pensamento para este fim. Experimentos de pensamento são dispositivos imaginativos e reflexivos que estabelecem uma situação hipotética com o fim de apreender razões ou evidências para uma dada tese ou argumento.

Quer dizer: quem propõe um experimento de pensamento quer mostrar que certa situação hipotética e imaginada ajuda a confirmar uma tese ou um argumento. “Imagine que o mundo é de tal e tal maneira, e então me diga se a tese X não se torna mais plausível depois de ter imaginado isso” – é algo assim que temos em mente quando propomos um experimento de pensamento. Na qualidade de experimento, é natural que proponha situações ou enfoques que de alguma maneira destoam do mundo real – ou ainda, que destoam das pressuposições que nós normalmente fazemos com relação a este. A situação ou o mundo hipotético aí proposto pode ser mais ou menos diferente daquela a que normalmente estamos habituados, tudo dependerá dos objetivos particulares do experimento em questão.

Dito isso, resta ainda pontuar alguns pressupostos que se mostram importantes para o experimento que estou prestes desenvolver. Em primeiro lugar, tenho de reconhecer que o conceito de “religião” é tão amplo e complexo quanto a própria natureza humana. Há tantas coisas profundas e significativas abarcadas por ele que, em verdade, torna-se difícil decidir qual aspecto seu é mais digno de atenção. Neste artigo, todavia, quero concentrar-me especialmente na ênfase que a tradição cristã costuma dar à transcendência e à vida após a morte – pois que, convenhamos: as críticas recentes ao caráter essencial da religião têm exatamente tal tradição como seu alvo.

Em segundo lugar, esteja claro que aqui se endossará a tese clássica e comum que diz que os seres humanos sempre buscam por algum tipo de bem; e que, ainda, frequentemente falham nesta busca, agindo de maneira prejudicial para consigo mesmos e para com os outros. Em terceiro e último lugar, tenha claro o leitor que eu endosso, também, tese equivalente no campo do conhecimento: pois entendendo que os seres humanos, apesar de buscarem a verdade e a objetividade, frequentemente caem no engano, no erro, na confusão, etc.

Ora, dizer que buscamos o bem e a verdade, e que falhamos nisso, parece óbvio – ao menos para quem rejeita as alegações absurdas do “pós-modernismo” – segundo o qual não há fatos ou verdades objetivas, mas só “construções sociais” e “narrativas”. De todo modo, no que segue ficará mais claro por que é importante destacar tais suposições comuns na presente ocasião.

Considere – finalmente! – a seguinte situação hipotética, a qual eu chamei de “hipótese fatalista”: Imagine um mundo que é absolutamente restrito à experiência imediata, à temporalidade e à finitude. Mesmo que você considere isso impossível, permita-se imaginar que tal coisa é absolutamente verdade. Imagine, inclusive, que você vive nesse mundo. Considere que você sabe, com certeza absoluta, que ele é restritivamente temporal e finito, e que realmente não há nada que possa mudar isso. Você e todos os participantes desse mundo hipotético e fatalista sabem que ele é assim e ponto final. Todos deverão viver por um dado período de tempo – isto é, pelo tempo que o corpo e a saúde permitirem – e então virá o fim supremo e inabordável.

Depois da vida, um simples e inefável “nada” tomará conta de todos. Sendo esse o caso, todo o tempo se tornará único e absoluto; cada milésimo de segundo se revelará um período de existência que passa e não volta mais, rumo ao fim absoluto e derradeiro de toda vida possível e da existência mesma. Deste modo, cada milésimo de segundo acaba se tornando fatalmente precioso. Ocorre que, em acréscimo, tal vida trágica inclui todas as mesmas mazelas físicas, morais e cognitivas das quais padecemos na vida atual (vida essa que eu e a maioria das pessoas consideramos estar fora do experimento em questão). Ou seja: trata-se de uma vida mortal e fisicamente limitada, em que as pessoas buscam pelo bem e pela verdade (ou objetividade), mas acabam sempre afligidas pelo erro, pela maldade, pela injustiça, pela confusão, etc. Estamos imaginando, pois, um mundo que é idêntico ao nosso mundo real, com a única diferença (hipotética, é claro) de que sabemos com certeza absoluta que se trata de um mundo restritivamente temporal e finito.

Com essas considerações em mente, imagine agora como seriam as situações mais corriqueiras, com as quais estamos familiarizados a partir do nosso mundo real, mas, também, todas as fatalidades que elas necessariamente envolveriam no referido mundo hipotético. Por exemplo: em tal mundo fatalista, qual seria a reação de uma pessoa que recebeu uma informação errada de alguém e acabou perdendo uma hora de sua vida indo na direção errada? Em nosso mundo real, é coisa simples pedirmos uma informação na rua; e é igualmente simples e comum recebermos informações imprecisas e até mesmo erradas. Se isso acontece, em geral ficamos bravos, mas relevamos.

Porém, na hipótese fatalista esse deslize poderia se tornar imperdoável – afinal, é uma hora de existência que se perdeu e que jamais se recuperará ou se compensará plenamente. Em tal mundo, pareceria prudente, então, eximir-se de dar informações e, na verdade, de oferecer qualquer ajuda que pudesse gerar danos e prejuízos para outrem. Muito provavelmente seria o fim da caridade.

Mas é óbvio que isso não seria suficiente para acabar com os equívocos e confusões; e assim o mínimo deslize que resultasse num prejuízo para outra pessoa poderia ser considerado imperdoável. Se o seu vizinho pobre batesse no seu carro e não tivesse como pagar o conserto diretamente a você (senão apenas cumprindo certa pena comunitária, por exemplo), esse prejuízo poderia ser considerado gigantesco: já que lhe demandaria mais horas de trabalho ou mais privações de prazeres (p. ex., dinheiro tirado de seus gastos com lazer) para suprir o dano. Parece que com isso teríamos o fim do perdão e da capacidade de relevar as coisas.

Todo prejuízo representaria um dano fatal e potencialmente indesculpável. De igual maneira, todo prazer, alegria e satisfação teria uma importância absoluta, pois não haveria (digamos, em outra vida) o que poderia compensar a perda de tais coisas. Uma hora do dia que fosse perdida poderia posteriormente ser vista como uma verdadeira catástrofe existencial. Seria praticamente impossível fazer justiça à relação entre trabalho e remuneração – as relações trabalhistas seriam um verdadeiro pandemônio, inimaginavelmente piores do que o são hoje. Haveria uma pressão gigantesca por precisão, resolução e acerto. E se alguém quisesse ficar na dúvida sobre o que é realmente bom (por exemplo, qual estilo de vida levar) ou sobre o que é realmente verdadeiro (por exemplo, qual regime político é o melhor), tal pessoa tampouco estaria em melhores condições: pois toda compensação a que pudesse chegar estaria sempre fadada à maior proximidade com o fim da existência mesma. Ou seja: não adiantaria dizer “Não vou correr feito louco atrás do que me parece bom ou correto, pois ninguém sabe ao certo o que é realmente melhor ou mais correto na vida”; pois essa decisão mesma não mudaria a fatalidade desse mundo – e um dia essa pessoa teria de aperceber-se de que esse ceticismo já é uma decisão sobre o que é o melhor, e que o benefício envolvido nele iria fatalmente perecer. Essa pessoa poderia fingir-se de doida, como se não se importasse com o que é bom e/ou correto. Mas a maioria das pessoas não conseguiria chegar à tamanha dissimulação.

Em suma, o mundo que a hipótese fatalista nos apresenta é um mundo de extrema ansiedade, tensão, preocupação, nervosismo, desconfiança, beligerância, radicalismo, inclemência, inflexibilidade, intolerância. Estamos diante de um mundo que é simplesmente inviável na prática. Na verdade, trata-se de um mundo que não é o nosso mundo real – este onde eu e você vivemos agora. Quer percebamos ou não, o fato é que a vida humana se encontra circunscrita no horizonte de uma esperança futura. E ainda que alguém (digamos, um descrente) considere que tal futuro é restritamente finito (isto é: que não haverá nada após a consumação de seu futuro mediante a morte), o fato é que enquanto esse futuro não se consumar não haverá certeza alguma de que ele é realmente finito.

Quer dizer: não é porque alguém acha que o seu futuro é restritivamente finito que em essência ele será; e a pessoa, por estar sempre no presente, jamais disporá dos meios adequados para provar sua tese com certeza, isto é, para provar que depois que todo o seu futuro chegar (sua vida inteira passar) não haverá mais nada. Esse ceticismo sobre a transcendência nada é mais do que uma crença metafísica, a qual pode ser mais ou menos razoável conforme se logre refutar a existência da alma e do porvir (coisa que até hoje ninguém chegou nem perto de fazer). Portanto: (i) a nossa vida normalmente depende de uma esperança futura; e (ii) não há como provar que ela é restritivamente finita, que terá um fim derradeiro. Ora, essas são premissas vitais para a “viabilidade” da nossa vida prática. Gostando ou não, todos nós precisamos de um domínio de “esperança futura”, de “idealidade”, de “compensação das perdas inevitáveis” para conseguir viver. E ocorre que a busca por esclarecimento, compreensão e realização dessa necessidade é um elemento central da religiosidade humana. Ou seja, a necessidade de uma vida viável, minimamente “praticável”, é parte do que nos abre para a transcendência e para o porvir, para a vida após a morte.

É verdade que nem todas as pessoas vão enveredar por aí: muitos considerarão ser suficiente apenas perceber que o ser humano tem necessidades psicológicas que eventualmente podem levar à religiosidade, mas que poderiam ser supridas por estratégias igualmente psicológicas (p. ex., de aceitar um domínio de esperança hipotético, como se fosse uma fantasia, e então focar-se nas coisas boas da vida, evitando pensar no que vem depois). A essa pessoa eu certamente desafiaria enfrentar a hipótese fatalista! Mas, a liberdade religiosa também serve para ela, isto é, para sua momentânea falta de interesse ou sua “desconversa”.

Seja como for, o fato é que a maioria das pessoas embarca na busca por respostas mais profundas, respostas sobre a natureza do seu futuro – se ele vai chegar de uma vez por todas, se há algo a esperar para além da morte, se há compensações mais amplas para as nossas perdas e para as injustiças, etc. E essa mesma maioria acaba endossando alguma doutrina que alega revelar as respostas de tais questões. Dadas as necessidades humanas (de memória, preservação, comunicação, relacionamento, estabilidade, etc.), acabam formando-se instituições religiosas ao longo do tempo – as quais são os sinais mais evidentes de todas essas coisas profundas sobre as quais estamos refletindo aqui; mas que nem por isso exaurem o fenômeno como um todo. E assim, mesmo que haja descrença na sociedade, há uma base legítima e razoável para o respeito às instituições religiosas.

Ora, penso que deve estar claro, finalmente, por que um decreto tal como aquele editado pelo nosso presidente em março deste ano não pode ser dito ignorante, sem sentido ou sem fundamento. Na verdade, parece-me que, à luz do que vimos aqui, ele se mostra deveras difícil de ser refutado (se não em seu caráter jurídico, ao menos em sua base filosófica sobre a essencialidade da religião). À vista disso, o máximo que o descrente pode fazer – me parece – é lamentar a existência de religião institucionalizada – pois ele já não pode negar a centralidade da inclinação religiosa, a qual, conforme mostrei aqui, está essencialmente atrelada à própria viabilidade prática do nosso mundo.

*John Florindo de Miranda é bacharel, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Editor-Assistente da Revista Online Seara Filosófica. Segundo Vice Presidente do think tankClube Austral. Vice-Diretor da regional gaúcha da associação Docentes Pela Liberdade (DPL).

[1] FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo [1841]. Tradução e notas de José da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]