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Sede do STF, em Brasília
Sede do STF, em Brasília.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Todos acompanhamos, com vívido interesse, o estimulante desenvolvimento do julgamento do deputado Daniel Silveira pelo Supremo Tribunal Federal, e a concessão da graça constitucional pelo presidente da República. De lá para cá o mundo político brasileiro, sempre em polvorosa, explodiu e são inúmeras as opiniões, pareceres e demais análises de juristas, cientistas políticos e da sociedade como um todo a respeito do que vai acontecer daqui para frente. A Rede Sustentabilidade (partido político de esquerda) ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o STF, pedindo que este declare inconstitucional o decreto presidencial. E isto dá uma mostra interessante de como chegamos até aqui.

Entre muitos que deram opiniões a respeito do tema, uma fala do professor de Direito e atual vice-prefeito de Porto Alegre, Ricardo Gomes, chamou-nos a atenção. Para entendermos um pouco deste conflito entre os poderes, temos de remontar à nossa história nacional. Este ano completamos 200 anos de independência política, e no último 25 de março a primeira Constituição brasileira completou 198 anos.

Diferentemente das demais nações que adotaram o constitucionalismo escrito de inspiração liberal no fim do século 18 e decorrer do século 19, o Brasil não nasceu com o poder político dividido em apenas três “ramos”, ou “braços”, a saber: Legislativo, Executivo e Judiciário. Nascemos com um quarto ramo, o chamado Poder Moderador. A inspiração veio por um teórico suíço chamado Benjamin Constant (não o Botelho de Magalhães, político brasileiro que ajudou a costurar o golpe de 1889), mais propriamente Henri-Benjamin Constant de Rebecque, que, entre outras obras, ficou conhecido pelo livro Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, escrito em 1819.

A adoção dos sistemas de freios e contrapesos, os chamados checks and balances, foi uma inovação estranha à cultura política brasileira, que sempre teve na figura do imperador, por quase meio século, a estabilidade de interferência nos demais poderes para a criação dos consensos

A teoria de Constant foi, segundo dizem, definitiva para a delimitação dos poderes reais, não sendo mais o monarca o chefe do Executivo, como entendia sir William Blacksone, mas sim o gabinete (o conselho de ministros), que, mesmo sendo apontado pelo rei ou rainha, ainda assim seria o detentor final da promoção de política pública (a partir daí saiu a expressão “o rei reina, mas não governa”). Essa teoria acabou influenciando toda a Europa, tendo sido desenvolvida tanto na monarquia quanto na república parlamentar.

No Brasil, depois da dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, a comissão de notáveis entregou o projeto que veio a ser a Constituição de 1824 com a inserção desta figura, o Poder Neutro, ou Poder Moderador, para que o imperador exercesse o equilíbrio e balanço entre demais detentores do poder (por mais que o imperador tenha dissolvido a Assembleia Constituinte e outorgado a Constituição, a base acabou sendo a mesma). Portugal seguiu nosso exemplo e adotou o Poder Moderador em sua Constituição de 1826 (e ainda adota hoje, sendo prerrogativa do presidente da República – lá se adota o sistema parlamentarista de governo). O imperador acumulou a chefia do Executivo até uma reforma constitucional feita em 1847, quando se criou a figura do “presidente do conselho de ministros”, o equivalente ao primeiro-ministro inglês, à época.

Porém, com a implantação da forma republicana após o golpe de 1889, e a partir da promulgação da Constituição de 1891, sacou-se fora o Poder Neutro e voltou-se à famosa tripartição ao estilo de Montesquieu: Legislativo, Executivo e Judiciário, em linha, ou seja, com o mesmo peso (independentes e harmônicos entre si, como diz o artigo 2.º da Constituição de 88). A adoção dos sistemas de freios e contrapesos, os chamados checks and balances, foi uma inovação estranha à cultura política brasileira, que sempre teve na figura do imperador, por quase meio século, a estabilidade de interferência nos demais poderes para a criação dos consensos – o grande alvo da política.

O que mostrou, porém, a história republicana sobre conflitos entre os poderes? Ao longo do século 20, o Brasil viu pelo menos três momentos em que o Poder Moderador foi exercido pelas Forças Armadas. Seja na própria instauração do regime republicano – de 1889 até 1894; no tenentismo (embora não tenha tomado o poder geral, foi o pano de fundo para o que viria depois), nos anos 20; na Revolução de 1930, que alçou Getúlio Vargas ao poder, até 1934; depois, de 1937 a 1945; e, finalmente, no regime militar que vigorou no país de 1964 a 1985, culminando com a redemocratização, a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, e as eleições diretas de 1989.

Inclusive, na atual Constituição, o artigo 142 afirma que compete às Forças Armadas garantirem a lei e a ordem, podendo ser invocadas por quaisquer dos poderes constitucionais para tal. E como chegamos à crise atual?

Ocorre que, para fins de análise, entendemos ter sido o Supremo Tribunal Federal o grande protagonista da mediação da crise política que culminou com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. Diferentemente do que ocorreu em 1992, quando da situação envolvendo o ex-presidente Fernando Collor de Mello, o STF ditou regras procedimentais, formas de julgamento, rito, e inclusive a partição da condenação de perda de mandato com manutenção de direitos políticos de Dilma, o que foi acatado tanto pelo Congresso (que via um momentum oportuno para fazer isso acontecer) quanto pelo chefe interino do Executivo, Michel Temer, certamente ávido por se ver confirmado no cargo por meio mandato.

A partir deste julgamento, o que já era uma prática perigosa e alertada por grande parte da comunidade jurídica nacional só fez aumentar. Toda e qualquer decisão do Congresso que desagradasse a parte perdedora desaguaria no Supremo para “corrigir” a opção política. Mais recentemente, vimos postura do Supremo ordenando ao Executivo determinada alocação de recursos em políticas públicas próprias daquele poder. O Supremo tomou para si a “palavra final” não apenas como uma fronteira da democracia, mas como um poder revisor, que, em última análise – lembre-se do temor de Lord Acton sobre o poder absoluto –, dá as cartas, mesmo ao arrepio da vontade das urnas, que determina o “governo do dia”.

Ou o Supremo volta ao seu status de ser cúpula do Poder Judiciário, ou seja, de ser “um” poder; ou vai querer se confirmar como “o” poder. Ou os demais poderes aceitam ou se insurgem

Agora, em abril de 2022, discute-se se o STF poderia ter condenado um deputado federal na Ação Penal 1.044 em razão de suas falas (em um vídeo), com uma pena maior que a de um homicídio doloso simples – e, pior, se pode desconsiderar um indulto presidencial sobre a mesma condenação.

As possibilidades são várias: ou o Supremo volta ao seu status de ser cúpula do Poder Judiciário, ou seja, de ser “um” poder; ou vai querer se confirmar como “o” poder. Ou os demais poderes aceitam ou se insurgem. Ou a Constituição de 1988 segue neste duro teste (ainda que muito combalida), ou veremos a nossa sétima ordem constitucional ruir em pleno bicentenário da Independência. São muitos “ous”, mas é o que temos para o momento.

E o que isso tem a ver com Estado laico e liberdade religiosa? Tudo. Crer, expressar-se e viver de acordo com o imperativo da consciência é a primeira (e mais frágil) das liberdades. Vejamos os próximos capítulos deste embate. E que, tomara Deus, vença a razoabilidade e a busca pela paz. Viva o Brasil!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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