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Vista da Basílica Nacional de Aparecida, também conhecida como Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Aparecida, SP. (Aparecida, SP, 14.05.2013.
Vista da Basílica Nacional de Aparecida, também conhecida como Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Aparecida, SP. (Aparecida, SP, 14.05.2013.| Foto: Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress

Uma espantosa decisão judicial, nos autos da Ação Civil Pública 1000010-12.2020.8.26.0621, que tramita na Vara de Plantão do Foro de Guaratinguetá (SP), desferiu um ataque direto ao Estado laico brasileiro. O Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida foi intimado a não realizar quaisquer eventos, incluindo o “Terço das Mulheres” e as missas, pelo prazo inicial de 30 dias. E, para garantir o cumprimento da decisão, foi arbitrada uma multa de R$ 100 mil para cada dia de descumprimento, bem como a possibilidade de responsabilização por crime de desobediência. A justificativa para a determinação é evitar a propagação do novo coronavírus. A ação foi proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

A decisão surreal parece vinda de um filme de ficção distópico, como 1984 ou Fahrenheit 451. De um lado, temos o protagonista: o Ministério Público. Seu roteiro, previsto no artigo 127 da Constituição, é bem claro: “Incumbe-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. O outro protagonista é o juiz plantonista de Guaratinguetá, aquele que deve defender os direitos e garantias de cada cidadão brasileiro, zelar pelo Estado Democrático de Direito, fazer cumprir a lei e a Constituição e promover a justiça. Porém, o que ambos promoveram com a propositura da ação e a decisãoliminar provocou o efeito contrário (pra falar em termos farmacêuticos): interesses sociais e individuais foram para o espaço – e a democracia junto –, tudo sob os auspícios de uma multa “irrisória” de R$ 100 mil! Mas por que o “roteiro” lembra um filme de ficção distópica? Vamos demonstrar.

O sistema brasileiro de laicidade

O Brasil adota o sistema colaborativo de laicidade. Está cravado na pedra, ou melhor, no artigo 19, I da Constituição brasileira. Leiam o que diz o texto:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

O texto começa com o particípio passado do verbo “vedar”: vedação, ou seja, indica obstrução e impedimento total à passagem de qualquer coisa. Quando algo está vedado nem mesmo ar ou água deve passar, oras! E o que exatamente este termo quer proteger? O que se ordenou foi a vedação total e completa por parte de qualquer órgão, em qualquer esfera da Federação brasileira, de embaraçar o funcionamento de cultos religiosos ou de igrejas. O comando é imperativo, e não pode ser mais claro e direto: é vedado!

O Estado nunca pode emitir atos, políticas e decisões, em qualquer de suas esferas e poderes, que venham limitar ou embaraçar o funcionamento de cultos e igrejas

O artigo 19, I também estabelece que a relação do Estado, em todos os níveis da Federação, e por meio de todas as suas instituições, deve ser de maneira a colaborar com as igrejas em busca do interesse público, permitindo até mesmo aliançasneste sentido. O objetivo principal do Estado brasileiro, bem como o de qualquer confissão religiosa ou crença, é o bem comum das pessoas, e é aqui, precisamente no dispositivo constitucional, que se opta pela separação das ordens material e espiritual da existência humana, que a Constituição reconhece o objetivo final em comum de ambas as instituições, qual seja, o bem comum (interesse público). Neste particular, ambas podem e devem colaborar reciprocamente, como aliás explicamos em nosso livro Direito Religioso.

Assim, a interação estatal com o fenômeno religioso no espaço das crenças deve ser sempre positiva, a saber, a proteção do sentimento religioso e a promoção da liberdade de crença e de culto. O Estado nunca pode emitir atos, políticas e decisões, em qualquer de suas esferas e poderes, que venham limitar ou embaraçar o funcionamento de cultos e igrejas, sob pena de violação, reiteramos, do artigo 19, I e do artigo 5.º, VI, ambos da Constituição:

Art. 5.º (...) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Utilizar diferentes agentes da administração pública para “fiscalizar” igrejas é um tipo impensável de ingerência na vida das pessoas

Explicamos melhor. A interação do Estado é neutra no sentido confessional e benevolente, no sentido de criar condições para o exercício público e particular da fé. Exercício público quando garante o funcionamento dos cultos religiosos (artigos 5.º, VI e 19, I), e exercício particular quando garante a liberdade de crença e a objeção de consciência (artigos 5.º, VI, VIII e 143, §1.º). Assim, em nosso país não poderia ocorrer situação em que uma decisão judicial impeça o funcionamento do Santuário, e ainda por cima mande oficiar a Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Metropolitana, Conselho Municipal de Saúde e Vigilância Sanitária. Só faltou mandar oficiar a Polícia Federal e as Forças Armadas.

Utilizar diferentes agentes da administração pública para “fiscalizar” igrejas é um tipo impensável de ingerência na vida das pessoas; é fazer os brasileiros se sentirem como se morassem na China ou Coreia do Norte, onde qualquer atividade religiosa que contrarie os interesses do governo é alvo de denúncia. Ou, ainda, uma versão tupiniquim do Afeganistão, em que o “Estado Islâmico, por lei, utiliza-se dos funcionários públicos para entregar religiosos que não seguem aquilo que foi determinado pela liderança religiosa.

Não estamos em um Estado de exceção

Antes que o leitor diga que a decisão de Guaratinguetá não é tão “chinesa” ou “norte-coreana” assim, pois, afinal de contas, vivemos a pandemia do coronavírus, precisamos lembrar que, com ou sem pandemia, somos uma nação livre, democrática e que tem como missão constitucional promover e garantir a liberdade de todos. Querer usar o aparelho estatal para controle da organização religiosa na ordem constitucional colaborativa é querer colocar fogo na casa para matar as baratas.

A ação proposta e a decisão decorrente contrariam, além da laicidade e da liberdade religiosa, outras liberdades do povo brasileiro. Contraria o direito de ir e vir (artigo 5.º, inciso XV da Constituição) e o direito de reunião (artigo 5.º, inciso XVI da Constituição).

O cenário construído pelo Ministério Público Paulista, acatado pelo Judiciário, é típico de estado de sítio e de defesa, e acontece em casos de emergência nacional como calamidade de grandes proporções ou ameaça à ordem constitucional. Tais exceções são decretadas apenas e tão somente pelo presidente da República, isso após ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional; no caso de estado de sítio, ainda se exige autorização do Congresso Nacional. Vejam que a garantia ao direito de reunião somente pode ser restringida em estado de defesa ou de sítio:

Artigo 136. (...) § 1.º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I – restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
Artigo 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
(...)
IV - suspensão da liberdade de reunião.

Apesar de estarmos em uma situação reconhecida como pandemia pela OMS, há outras alternativas constitucionais e legais que não ensejam a violação da laicidade brasileira

Até o momento em que este texto foi publicado, na tarde de 17 de março, não temos conhecimento da decretação presidencial de estado de defesa ou de sítio pelo presidente da República. Apesar de estarmos em uma situação reconhecida como pandemia pela OMS, há outras alternativas constitucionais e legais que não ensejam a violação da laicidade brasileira, da liberdade de crença e de culto e dos direitos de ir, vir e se reunir.

Tal decisão muito mais se assemelha a claro ato de perseguição religiosa do que a promoção da justiça e defesa das liberdades e garantias individuais, dever do Poder Judiciário.

O Estado deve implementar políticas públicas de combate à proliferação do vírus sem ferir a laicidade brasileira, e usar sua soberania para fechar aeroportos para estrangeiros vindos de locais de pico da pandemia, como Ásia e Europa. Manter as recomendações quanto aos locais fechados e estruturar a administração pública para trabalhos de conscientização e higienização de locais públicos. Pode, também, fechar as repartições públicas e cancelar aulas no ensino público.

A função do Estado limita-se, exclusivamente, a orientar as lideranças eclesiásticas para que estruturem seus cultos da melhor forma

Em 6 de fevereiro de 2020 foi sancionada e publicada a Lei Federal 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. Em nenhum de seus dispositivos existe qualquer menção ou autorização de restrição ao direito de reuniões e de culto dos brasileiros. Existe apenas a disposição de isolamento daquelas pessoas que comprovadamente são portadoras do vírus. Ou seja, nem mesmo lei federal, aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República, restringiu genericamente as liberdades do povo brasileiro.

Quanto aos locais de culto com alto número de fiéis, a função do Estado limita-se, exclusivamente, a orientar as lideranças eclesiásticas para que estruturem seus cultos da melhor forma – realizando-os em turnos diferentes, por exemplo – ou que pensem em suspender as atividades litúrgicas de modo voluntário, em uma decisão tomada pela governança da respectiva igreja e dos fiéis, que pode variar de acordo com o local – sem a intromissão do Estado, sem ingerências por parte de Ministério Público e determinações judiciais. Como afirma Filipe Fontes, “algumas igrejas são grandes, têm muitos membros; outras são pequenas, têm poucos membros. Algumas são constituídas majoritariamente por jovens, outras por idosos. Algumas têm templo arejado, outras têm templo sem ventilação. [...] Essas são algumas, mas as variantes que determinam a condição de uma igreja local na tomada de decisão referente a uma questão como essa são diversas.

Não é papel do Estado declarar o que é causa finita est (causa encerrada) nas questões exclusivas da sedem apostolicam (Sé Apostólica). As decisões da igreja devem ser tomadas pela congregação e as decisões de Estado, pelos governantes.

Alguns vivem clamando pela tal “laicidade”, mas estão sempre à espreita para invadir o espaço da igreja e se alvorar como seu chefe, dizendo o que os fiéis devem ou não fazer. Para estes, o coronavírus é só uma desculpa para concretizar um desejo secularista e ideológico de entronização do Estado transcendente e ateu.

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