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Ninguém renuncia àquilo que não tem
| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo

A celeuma da vez é o tal perdão de dívida tributária de igrejas em valores próximos ou superiores a R$ 1 bilhão, noticiado pelos mais diversos canais de mídia. Mas a grande pergunta que fica é: será que isso é verdade? Parece-nos que o brasileiro já aprendeu a confiar na imprensa desconfiando. E isto é uma virtude da democracia. Afinal, é tanta informação desencontrada, entre fake news e interpretação de texto a partir de lentes ideológicas, que não podemos assinar embaixo de qualquer notícia que sai por aí – e esta é mais uma delas.

Um disclaimer inicial: não conhecemos os processos administrativos e judiciais nos quais porventura a igreja X ou Y seja ré de dívidas fiscais, e especialmente qual a origem de tais dívidas, bem como se a cobrança do fisco é devida ou não. Mas parece haver duas situações autoevidentes. 1. O fisco de qualquer lugar do mundo quer mais é arrecadar; e 2. as igrejas são imunes a impostos e possuem isenção do pagamento de contribuição previdenciária em algumas hipóteses. Dito isto, passamos a analisar a segunda situação e o porquê da tal notícia do “perdão” bilionário.

Ninguém está legislando corporativamente, atendendo a um grupo específico, mas está repisando argumentos constitucionais

O assunto guarda relação com o Projeto de Lei 1.581/2020, que foi aprovado na Câmara e no Senado e, agora, vai para a sanção presidencial. O PL trata do pagamento de precatórios federais em meio a pandemia e, nos seus dois últimos artigos, traz o seguinte:

Art. 9.º O art. 4.º da Lei n.º 7.689, de 15 de dezembro de 1988, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 4º São contribuintes as pessoas jurídicas estabelecidas no País e as que lhe são equiparadas pela legislação tributária, ressalvadas as vedadas na alínea b do inciso VI do caput do art. 150 da Constituição Federal, na forma restritiva prevista no § 4.º do mesmo artigo.

Parágrafo único. Conforme a previsão dos arts. 106 e 110 da Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966, passam a ser consideradas nulas as autuações feitas em descumprimento do previsto no caput deste artigo, em desrespeito ao disposto na alínea b do inciso VI do caput do art. 150 da Constituição Federal, na forma restritiva prevista no § 4º do mesmo artigo.”(NR)

Art. 10. O art. 22 da Lei n.º 8.212, de 24 de julho de 1991, passa a vigorar acrescido do seguinte § 16:

“Art. 22. ............................... ................................................... § 16. Conforme o previsto nos arts. 106 e 110 da Lei n.º 5.172 (Código Tributário Nacional), de 25 de outubro de 1966, o disposto no § 14 deste artigo aplica-se aos fatos geradores anteriores à data de vigência da Lei n.º 13.137, de 19 de junho de 2015, consideradas nulas as autuações emitidas em desrespeito ao previsto no respectivo diploma legal.”(NR)

De cara, já vemos que não se trata de um perdão legal direcionado a uma situação específica. Então realmente não precisamos entrar no mérito da casuística referente à igreja X ou Y; trata-se de uma norma abstrata que regula uma situação tributária abstrata. Isto é absolutamente importante no sentido de que guarda relação com o princípio democrático: ninguém está legislando corporativamente, atendendo a um grupo específico, mas está repisando argumentos constitucionais e sendo coerente com a opção da sociedade política que promulgou a Constituição. Simples compliance constitucional.

Vejamos as indigitadas e “temidas” normas, então.

A primeira “inovação” é a alteração do artigo 4.º e o acréscimo de um parágrafo no mesmo artigo da Lei 7.689/1988. Esta lei é a que institui e regula a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), e o artigo 4.º indica quem são os contribuintes: as pessoas jurídicas estabelecidas no país. Nos demais artigos, regula-se a forma de arrecadação, sempre vinculado ao lucro líquido das operações.

Ainda mais a fundo, esta lei verticaliza o tema amplo previsto na Constituição a respeito do financiamento do sistema de seguridade social. Trata-se de matéria importante do federalismo fiscal brasileiro. O artigo 195 do nosso Texto Fundamental diz o seguinte:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – o empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 20, de 1998)
(...)
c) o lucro.

Igreja não tem lucro e, obviamente, não pode ser tributada por isso

Pois bem, é evidente que igrejas não auferem lucro e que todas as suas rendas são absolutamente ligadas, necessárias e direcionadas para sua finalidade essencial, estabelecida também no chamado “objetivo social” de seus estatutos, quais sejam, tratar do cuidado do espírito e promover a disseminação de seu credo para, assim, proporcionar ao maior número de pessoas possíveis o contato com o sagrado, o divino, cada qual da maneira que o enxerga. Desta forma, a lei em questão evidentemente não se aplica às organizações religiosas, salvo exceções em que uma igreja, porventura, esteja promovendo outra atividade, totalmente distinta de seus objetivos espirituais.

Justamente com o intuito de garantir a liberdade do corpo político e restringir a ação do seu instrumento especializado, o Estado, no domínio da fé religiosa e sua propagação, é que a sociedade política consagrou o princípio da laicidade colaborativa brasileira (artigo 19, I, da Constituição) e vedou o Estado de instituir impostos sobre os templos de qualquer culto, aí entendidos todo o patrimônio, renda e serviços que tenham relação com a finalidade essencial dos mesmos.

Mas o fisco, na sua ânsia arrecadatória e, muitas vezes, para cumprir metas fiscais, glosa e cobra. Isto é mais comum do que se pensa. Nós, em quase 20 anos de atividade advocatícia defendendo igrejas de norte a sul do Brasil, muitas vezes nos deparamos com questões assim. E, neste espírito, nasce a alteração acima: dizer o óbvio, que igreja não tem lucro e, obviamente, não pode ser tributada por isso.

Para a incidência de qualquer tributo é necessária a presença do conjunto de elementos que formam a regra-matriz de incidência fiscal, que são a hipótese e a sua consequência, ou seja, o fato gerador e a relação jurídica tributária entre o Estado, denominado de sujeito ativo, e o contribuinte, denominado de sujeito passivo, como explicamos em nossa obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas. Na hipótese tributária do CSLL o fato gerador que desencadeia a relação tributária é o lucro líquido, inexistente nas igrejas; logo, este imposto nunca poderá incidir, ou nunca poderia ter incidido, tendo uma igreja como sujeito passivo da relação.

Citamos novamente nosso trabalho: “Ao conjunto de elementos que compõe o fenômeno jurídico da incidência de uma norma tributária podemos chamar de regra-matriz. A regra-matriz da incidência tributária nasce de uma lei abstrata que prescreve: ‘Ocorrendo o fato gerador, incide o imposto’. Existe a previsão legal de que a ocorrência de um fato social resulta no nascimento da relação jurídica tributária”.

Assim, por conta desta corrente de alimentação do Estado-administração, e muitas vezes pela falta de compreensão da imunidade tributária religiosa e do importante papel das igrejas na sociedade política, o óbvio deve ser dito. Foi exatamente o que foi feito no dispositivo legal em questão, que “lembra” aos fiscais da Receita e julgadores que a igreja é imune e não tem lucro! Algum desavisado ainda pode insistir: “mas a igreja é imune a impostos e não a contribuições!” Exato; todavia, no caso da CSLL a cobrança é indevida porque, além da vedação do Estado cobrar impostos das igrejas, também não pode cobrar uma contribuição quando o principal requisito da regra matriz tributária não acontece contra ela, ou seja, o fato gerador.

E a segunda situação da lei? Esta trata de uma isenção, outra muitas vezes ignorada. Mas qual a diferença entre imunidade e isenção? Explicamos em nossa obra: “Na isenção tributária, a obrigação tributária surge, mas a lei dispensa o pagamento do tributo; ou seja, ocorre o fato gerador do tributo, porém a lei determina que o contribuinte deixe de arcar com a respectiva obrigação tributária”. Em outras palavras, as igrejas devem pagar, mas o Estado as isenta do pagamento por meio de uma lei ordinária. No caso das contribuições à seguridade social que ficam a cargo das empresas, quando se trata do pagamento de prebenda a pastores e demais ministros de confissão religiosa, bem como fiéis consagrados. Prestem atenção: esta isenção já existe desde 30 de dezembro de 2000, instituída pela Lei 10.170/200. O PL 1.581 não está criando tal isenção! O PL está “lembrando” ao fisco que todas as normas tributárias que excluem infrações devem ser aplicadas com efeitos pretéritos e que, também, apenas a Constituição Federal pode limitar competências tributárias.

Não existe nenhuma lei perdoando dívida desta ou daquela igreja, mas apenas e tão somente dois dispositivos legais que nada fazem a repetir o óbvio

Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:

§ 13. Não se considera como remuneração direta ou indireta, para os efeitos desta Lei, os valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional com ministro de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa em face do seu mister religioso ou para sua subsistência desde que fornecidos em condições que independam da natureza e da quantidade do trabalho executado.

§ 14.  Para efeito de interpretação do § 13 deste artigo: (Incluído pela Lei n.º 13.137, de 2015)

I – os critérios informadores dos valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional aos ministros de confissão religiosa, membros de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa não são taxativos e sim exemplificativos;   (Incluído pela Lei nº 13.137, de 2015)

II – os valores despendidos, ainda que pagos de forma e montante diferenciados, em pecúnia ou a título de ajuda de custo de moradia, transporte, formação educacional, vinculados exclusivamente à atividade religiosa não configuram remuneração direta ou indireta. (Incluído pela Lei nº 13.137, de 2015)

Ou seja, a regra para que a lei alcance o passado já existe no código tributário, mas o PL está “relembrando” tal regra para situações em que o fisco cominou penas contra as igrejas em razão da “quota patronal”, em fatos anteriores à interpretação de que a isenção destas também se aplicava ao pagamento das prebendas ou óbolos de pastores e demais ministros de confissão religiosa. Esta interpretação se deu por via legislativa, acrescentando o §14 no artigo 22 da Lei Geral da Previdência.

Enfim, agora você já sabe: não existe nenhuma lei perdoando dívida desta ou daquela igreja, mas apenas e tão somente dois dispositivos legais que nada fazem a repetir o óbvio: igreja não tem lucro líquido e é isenta de pagamento de contribuição à seguridade social de ministros de confissão religiosa e outros membros de vida consagrada.

Como diria nosso mestre, professor Ives Gandra da Silva Martins, “o Estado não pode renunciar ao que não tem”!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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