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Singrando mares internacionais
| Foto: Pixabay

Na primeira parte destas reflexões, publicada no início da semana, foi feita uma pausa, como se estivéssemos numa navegação de cabotagem, quando foi mencionado o Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos. É deste porto que retomamos nossa jornada.

No que se refere a esse Tratado Internacional, há ainda um complicador que precisa ser chamado à arena desta disputa, qual seja: o art. 18 do. Convém lembrar que o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi ratificado e internalizado no nosso ordenamento no ano de 1991. Transcrevemos tal dispositivo, o art. 18:

“§1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

§2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.

§3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita a penas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

§4. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais - e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar aos filhos a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.”

Nele, portanto, está prevista, no §3º, a restrição da liberdade religiosa, a qual pode se dar em várias hipóteses, sendo que uma delas menciona, justamente, a saúde pública, que se encaixa perfeitamente no cenário de pandemia em que vivemos.

Sabe-se, de outra feita, que, pelo §3º, do artigo 5º, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004, os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos que forem aprovados pelo Congresso Nacional, no processo legislativo com rito similar ao da emenda constitucional, possuem o status desta, isto é, adentram o ordenamento jurídico pátrio como se Emenda Constitucional fosse.

Só que os tratados internalizados no direito pátrio antes da EC 45/2004 têm status supralegal, de acordo com o leading case, que se deu nos (RE) nº 466.343 e (RE) nº 349.703, dado no ano de 2008, quando do julgamento da prisão do depositário infiel, prisão esta que era prevista no Decreto-Lei 911/69. Os tratados internacionais anteriores a EC 45/2004, portanto, devem se conformar com o que estipula a Constituição Federal.

Ou seja, aplicando-se o entendimento consagrado pelo Supremo, especificamente ao que nos referimos no momento, pode-se concluir que a restrição da liberdade religiosa, prevista no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, não pode ser contraposta às formulações dos dispositivos constitucionais do art. 5º, inc. VI, combinado com os artigos 136 e seguintes, pois a limitação estipulada neste tratado internacional está hierarquicamente abaixo da Constituição, na pirâmide kelseniana.

Em busca de um porto seguro

Ao nos defrontarmos com a realidade do coronavírus, quando, digamos assim, o mundo adentrou no direito, ante à resistência federal em decretar estado de defesa ou de solicitar a decretação do estado de sítio – instrumentos previstos na Constituição Federal, como já referimos – bem como diante de vários atos normativos (leis, decretos, medidas provisórias) dos mais variados entes federados, com determinações legais contraditórias e confrontantes, nos vimos perante um impasse social e jurídico.

Neste contexto de tempestade bravia num mar revolto, uma disputa irrompeu pelas prerrogativas e atribuições dos Estados Membros e Municípios com a União, no sentido de saber quem poderia determinar tal medida e qual restrição. Por esta razão, o conflito foi judicializado no STF, e dele saíram como vencedores da queda de braço os primeiros e derrotada a última – o que nos furtamos de comentar pormenorizadamente no momento. Neste cipoal de desencontros e desinteligências, o que se seguiu foram as mais variadas condutas e disparates contra a liberdade religiosa, verdadeiros abusos tangenciados acima.

Diferentemente do cenário brasileiro, em Portugal, para se fazer uma comparação, durante a pandemia do COVID-19, foram decretados três estados de emergência e, em seguida, ao findar as medidas restritivas mais graves, passou a vigorar o denominado estado de necessidade administrativa, que, entre nós, é conhecido como estado de calamidade.

O professor doutor Jorge Bacelar Gouveia, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, constitucionalista de renome e cuja tese de doutorado tratou do Direito da Crise (estado de exceção), numa obra de fôlego com 1.700 páginas, relançada recentemente, ao comentar as peripécias das autoridades lusitanas, teve uma similar percepção à que trouxemos aqui, na primeira parte, e acrescentou outras que reproduzimos abaixo. São palavras dele ao tratar das medidas administrativas:

“É um instrumento de natureza assaz diversa da do estado de exceção constitucional na vertente de estado de emergência por não estar fadado para limitar direitos fundamentais e por não dotar as autoridades administrativas das competências extraordinárias adequadas a solucionar a crise que lhe deu causa[...].”

“ [...] o que sucede porque a situação de calamidade, ao envolver a suspensão dos direitos fundamentais de circulação, de liberdade de trabalho e de propriedade privada, configura um estado de exceção constitucional decretado administrativamente pelo Governo, que será sempre inconstitucional – tanto material como organicamente – porque decidido fora do condicionalismo estabelecido pelo artigo 19.º da CRP.”

Em outras palavras, o que quis dizer o professor Jorge Bacelar foi que: o estado de necessidade administrativa, o nosso estado de calamidade, não dota os agentes públicos com instrumentos capazes de debelar a crise do corona vírus e – como sublinhamos outrora – embora tenha o estado português um arcabouço legal de Direito da Crise mais bem estruturado do que o nosso, as medidas adotadas foram, e estão sendo, flagrantemente inconstitucionais, da mesma maneira do que ocorreu aqui conosco. Ele ainda destaca a forma como as restrições deveriam ter sido aplicadas (o que assinamos embaixo), no seguinte sentido:

“Graves foram algumas opções tomadas, mesmo admitindo esta possibilidade concreta de ser imperioso dirimir este conflito, num raro caso de colisão entre direitos igualmente insuspensíveis:

* a violação do princípio da proporcionalidade, com total proibição de celebrações religiosas, quando haveria outras medidas menos gravosas de igual efeito protetor;

* a consumação de um tratamento discriminatório em relação a atividades não religiosas, máxime as económicas, como as regras de distanciamento social aplicadas a outros espaços públicos ou abertos ao público sem qualquer proibição absoluta da sua atividade;

* a excessiva extensão do ‘dever geral de confinamento’ dos cidadãos, o qual, admitindo exceções, delas nunca constou a possibilidade de se sair de casa para praticar atos individuais de culto, no espaço público ou em templos religiosos.”

Muito trabalho pela frente

É inegável, por tudo que aventamos, que nos encontrávamos despreparados para o enfrentamento da pandemia (como todos os demais países que foram colhidos por ela), pois os instrumentos legais disponibilizados pelo sistema constitucional brasileiro mostraram-se incapazes de trabalhar com a realidade pandêmica, sem terem, por exemplo, a flexibilidade que era exigida que existisse para debelar o contágio, respeitando concomitantemente os direitos e as liberdades fundamentais.

Da mesma maneira, também estávamos desprovidos de leis que, se tivessem sido formuladas no passado, tal como estipula a Constituição Federal, poderiam ter concedido um mínimo de lucidez para todos envolvidos no enfrentamento da pandemia e manutenção da ordem pública, nos vetores da tranquilidade e saúde, o que é por demais necessário no momento de uma crise tal qual concretizada.

Além disso, nossas autoridades governamentais, para aumentar o desnorteamento, apresentaram-se, salvo raríssimas exceções, com um desrespeito sem tamanho pelas liberdades constitucionais.

Ora, cara a cara com a biopolítica que se agiganta diante da cidadania, com a presença de ferramentas biotecnológicas de reconhecimento tanto quanto de limitação de movimentos, as quais podem controlar corpos, mentes e impedir o florescimento das pessoas que vivem num determinado território, nos vemos confrontados não só com o vírus como também com um iminente e oportunista domínio estatal de tendência totalitária no uso destas novas tecnologias.

Ou seja, quem precisa ter o poder limitado, cada vez mais, são os agentes públicos, não os cidadãos, justamente pela relação assimétrica de quem detém o múnus público e a consequente potencialidade de causação de danos existenciais aos indivíduos. É, portanto, tal simbologia de poder uma temeridade para as liberdades constitucionais como um todo!

É bom que fique claro: não se está aqui dizendo que, no cenário que ainda vivenciamos, nada deveria ter sido feito, mas sim que as medidas cabíveis estão dentro da autonomia dessas organizações, principalmente quando se trata do espaço privado das confissões religiosas, os templos; elas mesmas, portanto, é que deveriam ter se autolimitado e ter estabelecido as regras de celebrações e atendimento ao público, sem a interferência indevida e exorbitante do poder estatal, a princípio e por princípio. Somente em casos de omissão do dever de cuidado, no exercício da liberdade religiosa, ou seja, a posteriori, é que a autoridade estatal poderia ter interferido; mesmo assim, não com os excessos que testemunhamos.

Ainda mais que é injustificável cerrarem-se templos para a celebração de cultos, com a finalidade de serem evitadas aglomerações, e terem permitido que ocorressem tais aglomerações em espaços mais exíguos, nos quais a proximidade é maior, a circulação de ar menor, com consequente maior possibilidade de contaminação pelo vírus, como por exemplo em trens urbanos e ônibus. O poder simbólico dessa forma de agir e coarctar as igrejas e cultos religiosos diz muito do tratamento dispensado aos cidadãos crentes e fiéis.

Assim, no que se refere especificamente a forma de lidar com a liberdade religiosa, tomamos um verdadeiro 7x1, pois: nossas autoridades se mostraram desconhecedoras do tema; estavam assessoradas pessimamente; não tiveram, em regra, um mínimo de humildade para buscar caminhos e construir soluções com as autoridades religiosas, representantes estas das confissões e dotadas, portanto, de legitimidade para aprovar e/ou corroborar medidas e decisões para o enfrentamento da pandemia nos espaços privados dos templos, o que teria frutificado, de forma ímpar e inédita, num adimplemento da laicidade colaborativa, prevista no art. 19, Inc. I da Constituição Federal.

Aliás, abrindo um parêntesis: ainda precisa ser contada a cooperação das igrejas e cultos religiosos não só no âmbito interno, no apoio dos mais carentes (do pobre, do órfão, da viúva,  do imigrante), tanto quanto no estrangeiro, pois muitos brasileiros se viram na rua da amargura, em vários países, com hotéis fechados e voos cancelados. Nestes momentos de aflição vividos por nossos patrícios, em terras longínquas, na Europa, América do Sul, Ásia, África et cetera, a presença solidária das igrejas brasileiras para os acolher foi fundamental – os quais não teriam sido atendidos se as autoridades destes países tivessem determinado o fechamento cabal dos templos, como ocorreu em várias localidades do Brasil.

De tudo que foi dito, as igrejas e os cultos religiosos, juntamente com o estado brasileiro, nos mais variados níveis, tem muito trabalho a realizar. Se, por um lado, podemos dar um desconto pela confusão instalada pela pandemia, se podemos ser compreensíveis para analisar os eventos inesperados, ao ver que uma “movimentação de terreno”, a pandemia, abalou estruturas da sociedade e atingiu o nosso “Cristo Redentor”, leia-se liberdade religiosa – estando ele talvez precisado de escoras e reformas – por outro lado, conseguimos detectar que há uma “infestação de cupim”, a carcomer a beleza e segurança deste monumento, que pertence a todos nós, uma verdadeiro legado nacional, quando inimigos silenciosos oportunisticamente cerceiam o exercício dos cultos.

Tais desrespeitos devem, por tudo aventado, serem atacados pacificamente, como se espera que cidadãos cientes de seus direitos façam, e não acatados bovinamente.

*Jeová Barros de Almeida Júnior é diretor e conselheiro fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Pesquisador de liberdade religiosa. Editor adjunto da Dignitas - Revista Internacional do IBDR. Formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pelo Mackenzie com estudos na Universidade de Oxford e na Universidade de Coimbra.

Dois trabalhos que podem ser consultados para um mais amplo entendimento dos meandros da liberdade religiosa neste tempo. O primeiro, que foi atualizado já em uma segunda ediçao, é um guia para as igrejas e confissões religiosas, de autoria dos doutores Thiago Vieira e Jean Regina, intitulado “Direito Religioso: Orientações Práticas em Tempo de Convid”, que pode ser baixado. O segundo é da lavra do Doutor Jorge Bacelar Gouveia, epigrafado com o título “Portugal e a COVID-19: balanço e perspectivas de uma Ordem Jurídica de Crise”.

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