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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Possuídos pelo complexo cristão ocidental de culpa, sempre imaginamos que o castigo de Deus seria a grelha do demônio. Tivemos de alcançar o século 21 para constatar que o Todo-Poderoso nos reservou a expiação dos nossos pecados para o período das filas de verão. Das vésperas do Natal ao carnaval, que Deus tenha piedade de nós.

No segundo dia de verão, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, Ele conduziu o casal até as rodovias de acesso a Sodoma e Gomorra e proclamou do alto de sua espada: “Agora conheçam o verdadeiro inferno: filas para alcançar qualquer destino nesse insensato mundo!”

Desorientados, Adão e Eva ainda ousaram perguntar: “Após chegarmos a algum destino, Senhor, estaremos livres do castigo das filas?” O Todo-Poderoso respondeu: “A temporada das filas é apenas o começo do inferno. Depois vocês vão conhecer a fila do banco e a fila para comprar o pão com o suor do próprio rosto”.

Dito isso, o Senhor fechou as portas do Paraíso para Adão e Eva. Largados à própria sorte, decidiram, então, consultar um guia de viagem para escolher o melhor destino. Em Sodoma, ao norte, sempre é carnaval. Na chegada do verão, os Blocos de Sujos esquentam os tamborins e a folia se estende pela eternidade. A viagem poderia ser feita de avião, porém sujeita à fila de embarque com horário incerto. Para Gomorra, ao sul, a viagem poderia ser feita de ônibus ou automóvel.

Adão voltou a consultar o Guia 4 Rodas e, com desagrado, observou à companheira que protegia a genitália desnuda com a menor das folhas de parreira: “Gomorra não me cheira bem. No sul, o mar e o esgoto se encontram. Chove dia sim, dia não, e o sol é prêmio da loteria”. Eva guardou o bronzeador e, resoluta, apontou: “Por aqui o pedágio é mais barato, vamos para Gomorra!”

Adão seguiu a intuição feminina e, depois de três dias e três noites para percorrer 300 quilômetros, os primeiros turistas do Velho Testamento chegaram, enfim, aos muros de Gomorra, um balneário nesta época do ano tomado pelos bárbaros sertanejos de alto-falantes motorizados, onde foram recebidos por um imenso outdoor que dizia: “Vós que entrais, abandonai todas as esperanças!”

Era o inferno. Não o inferno do poeta italiano, pior: o inferno das filas de verão, nas quais vamos penar até depois do carnaval.

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Nas filas de verão em Camboriú (o maior balneário do Paraná), os emergentes e deslumbrados fazem fila para se exibir: quem tinha um apartamento de três milhões de dólares no ano passado trocou por outro de cinco milhões este ano e, para humilhar o vizinho ao lado, já entrou na fila para comprar uma cobertura tríplex com o valor ainda incalculável.

Com as estradas entupidas de carros da classe média endividada, o andar de cima está num beco sem saída. Sem ter onde exibir suas Ferraris em plena velocidade (as poucas estradas disponíveis são crateras das vias lunares), os emergentes foram às compras na indústria náutica. Um endinheirado paulista comprou um iate Ferreti F870 (26 metros de comprimento, salão de festas, três suítes duplas, dependências de empregados), nem recebeu da fábrica e já vai trocar por outro: o maldito vizinho do andar de cima entrou na fila para comprar um iate maior ainda.

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Sabe como reconhecer um gaúcho na praia? Está na fila do açougue. Sabe como reconhecer um catarina na praia? Está na fila do peixe frito. Sabe como reconhecer um baiano na praia? Está na fila da rede, sombra e água fresca. Sabe como reconhecer um paulista na praia? Está na fila de “um chopes e dois pastel”. Sabe como reconhecer um carioca na praia? Está na fila do arrastão. Sabe como reconhecer um mineiro na praia? Está na fila de espera para o Espírito Santo. Sabe como reconhecer um argentino na praia? Está na fila para entrar em Florianópolis. Sabe como reconhecer um paraguaio na praia? Está na fila do milho verde. Sabe como reconhecer um curitibano na praia? Está numa fila qualquer, porque curitibano faz fila até para pular as sete ondas.

E sabe como reconhecer um paranaense no verão? Está na fila do pedágio.

 

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