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Processos judiciais requerendo que planos de saúde forneçam tratamento para crianças com autismo é uma realidade para muitas famílias paranaenses. Com o tempo, o lócus que essas demandas ocupam no Judiciário e a própria maneira como os planos de saúde lidam com a situação se modificou. Dentre as mudanças que avaliei como avanços, também houve outras que avaliei como retrocessos. Agora, é possível que o cenário de demandas judiciais contra planos de saúde seja inteiramente modificado por um projeto do TJPR que, ao mesmo tempo, mostra-se arrojado e humano – uma mudança pela qual estou ansiosa e que não posso deixar de aplaudir.

Para que se entenda minha empolgação com o referido projeto, antes de explicá-lo, faz-se impende que eu descreva uma leitura de como essas ações têm impactado o Judiciário e as vidas de pessoas com autismo. Toda essa história tem seu início, a meu ver, em três fatores: o aumento de pessoas diagnosticadas com autismo, a integração no cenário nacional de um maior número de profissionais capacitados para atendimento especializado em terapias tradicionalmente recomendadas a crianças com autismo e, é claro, a conscientização de pais e mães de crianças com autismo da imprescindibilidade do tratamento.

Há não muitos anos, era muitíssimo difícil encontrar, mesmo nas grandes capitais, profissionais que atendessem ABA, Denver, D.I.R Floortime, Integração Sensorial, dentre outros tratamentos. Embora o número de profissionais qualificados ainda não seja suficiente para atender à demanda nacional, a realidade da possibilidade de tratamento adequado é promissora, sendo Curitiba considerada um grande polo de atendimento de pessoas com autismo. A internet também tem sido uma importante ferramenta para que famílias que receberam o diagnóstico recentemente conheçam com mais facilidade os tratamentos (sem nunca nos esquecermos da importância do cuidado com as pesquisas sobre autismo na internet; é o médico assistente da criança quem deve definir o norte do tratamento necessário).

Com a possiblidade de realização do tratamento tornando-se uma realidade, muitas famílias recorreram aos planos de saúde, a fim de ter acesso ao referido tratamento. A vasta maioria das respostas concedidas pelos planos de saúde a estas famílias, contudo, era a negativa. Essas negativas dos planos em conceder os tratamentos necessários acabavam, por sua vez, transformando-se em demandas judiciais. Nessas demandas, requeria-se a antecipação de tutela, a fim de que, já no início do processo, devido à urgência judicial envolvida, fossem custeados provisoriamente pelos planos de saúde os tratamentos necessários, o que deveria ser ou não confirmado no final da demanda. O entendimento do Tribunal de Justiça Paranaense se via alinhado ao Superior Tribunal de Justiça: não é possível excluir o tratamento necessário, quando a doença está coberta em contrato.

Com o aumento das demandas, vieram as primeiras mudanças no comportamento dos planos de saúde: muitos passaram a liberar terapias genéricas em substituição às terapias específicas (por exemplo, psicoterapia ambulatorial em substituição à terapia ABA), o que gerou algumas modificações na forma como a demanda era levada ao judiciário.  No momento, uma das maiores brigas enfrentadas pelas famílias é quando o plano de saúde gera ruptura do atendimento especializado já iniciado, minando assim um Projeto Terapêutico Singular (PTS) em curso. Outra grande problemática recorrente é a divergência com o plano de saúde quanto à qualificação necessária ao profissional para aplicar os tratamentos, bem como a possibilidade de realização da terapia ABA em ambiente natural (prevista pelo próprio protocolo científico da terapia como necessária à DTT), quando prescrito.

A mudança mais marcante se deu no entendimento de parte dos Desembargadores do TJPR. O Tribunal de Justiça possui três Câmaras que trabalham sobre a matéria: 8ª Câmara Cível, 9ª Câmara Cível e 10ª Câmara Cível. Em um tempo essas três Câmaras concordavam: era preciso conceder a tutela antecipada. E, de fato, existe uma urgência jurídica em razão do perigo de dano, pois esperar até o final da demanda seria perder a possibilidade de alcançar o máximo potencial de desenvolvimento e independência, uma vez que contamos com as janelas de desenvolvimento e o tratamento precoce é encarado pela doutrina de saúde como de fundamental importância.

Entretanto, houve uma mudança no entendimento da 10ª Câmara Cível, a qual passou a dispor que apenas após a perícia seria possível dizer se o tratamento era necessário. A mudança, exclusiva dessa Câmara, ensejou críticas por parte de advogados, mas principalmente, no meu entender, despertou um sentimento de descrença e abandono por parte do Direito a muitas famílias. Esse sentimento se fazia nutrido principalmente porque, na espera por uma perícia apropriada, muito tempo se perdia. Justamente o precioso tempo. As dificuldades da perícia englobavam três fatores: demora para encontrar um perito especializado que seja isento, e, portanto, não cooperado ao plano de saúde Réu; valor de honorários pagos ao perito; espera da fase saneadora do processo para realização da pericial.

Pouquíssimas vezes era possível uma conciliação nesses processos. Um dos principais fatores que dificultava que as partes chegassem a um consenso era a presença de advogados do plano de saúde sem poderes para negociar. As audiências de conciliação eram via de regra inócuas nessas situações. Por outro lado, votos da 8ª Câmara Cível e 9ª Câmara Cível tornaram-se cada vez mais detalhados, sendo que já vi tais Câmaras serem prestigiadas através de citações de conteúdo de seus julgados sobre o tema em processos em todo o Brasil.

Esse cenário atual me levava a horas e horas a fio de reflexão do que poderia ser feito. Independente de concordar ou não com o entendimento da 10ª Câmara Cível (e eu definitivamente tenho uma profunda discordância da tese dessa Câmara, como já manifestei aqui), a realidade é que dois aspectos eram de extrema preocupação: a dificuldade de negociação com a parte Ré e, principalmente, a dificuldade de realização de uma perícia célere e segura. Mal eu sabia que, enquanto eu "quebrava minha cabeça" pensando numa solução, uma juíza do TJPR fazia a mesma coisa. Ela foi mais rápida, mais esperta e, sem dúvida, muito bem sucedida em encontrar uma solução (e confesso que estou com um pouco de inveja, por não ter pensando no “pulo do gato”).

Drª Vanessa Jamus Marchi, juíza da 09ª Vara Cível de Curitiba, coordenadora do CEJUSC – 1º Grau de Curitiba, empenhou-se em encontrar uma solução para conferir maior celeridade e eficiência às demandas judiciais que têm por objeto pedidos de tratamentos aos planos de saúde, o que beneficia sobremaneira também crianças com autismo. Quando eu soube do Projeto Eficiência na Judicialização da Saúde Suplementar, procurei a Drª Vanessa, que se dispôs a me receber em seu gabinete para me explicar mais detalhes do projeto. Não tenho palavras para agradecer por todo o empenho da magistrada em me explicar sobre o Projeto. Para ser mais exata, eu fiquei sem palavras diante do Projeto em si.

Com sua experiência de gabinete e sua participação em reuniões e palestras do Comitê de Saúde Suplementar do TJPR, Drª Vanessa Vanessa Jamus Marchi começou a diagnosticar a necessidade de perícias seguras e céleres e uma maior potencialização das possibilidades de conciliação, que, como mencionei acima, são dificuldades atuais pungentes em demandas de pessoas que requerem tratamentos a serem custeados pelo plano de saúde. E é justamente nesses dois eixos de atuação que o Projeto Eficiência Judicial se revela incrivelmente benéfico.

 Drª Vanessa Vanessa Jamus Marchi
Drª Vanessa Vanessa Jamus Marchi

Os lugares mais adequados para a realização de conciliação são os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania - CEJUSCs. Assim, a primeira medida do Projeto é realocar esses processos da Vara Cível para o CEJUSC, na tentativa de uma conciliação. Porém, apenas isso não resolveria, e poderia até tardar a demanda, visto que as possibilidades de acordo sempre se mostraram diminutas. E aí é que temos uma grande mudança: conseguiu-se que os planos de saúde aderissem ao projeto e, nessa adesão, houve o comprometimento de que, na audiência, comparecessem advogados com poderes para negociar e realizar acordo.

Outra questão importante é solucionada no Projeto: demandas que envolvem crianças e adolescentes necessitam da importante participação do Ministério Público, inclusive em audiências, como fiscal da lei. Contudo, no CEJUSC, em regra o Ministério Público não estaria presente nas audiências. Isso seria um grande impeditivo para que processos em que o Autor fosse menor de idade fossem encaminhados ao CEJUSC. Para resolver esse dilema, contou-se com a participação do Ministério Público no Projeto, o qual passa a atuar em audiências que envolvam essa matéria também no CEJUSC. Todas essas mudanças trazem uma grande potencialização da possibilidade de acordo, o que definitivamente é uma maneira muito econômica e célere, para todos os envolvidos, de resolver o conflito.

E quanto às perícias? É exatamente aí que eu acho que o Projeto se torna extremamente arrojado e preciso. Arranjar uma solução que entenda as especificidades dos casos que envolvem pedidos de tratamento e, ao mesmo tempo, siga rigorosamente o Código de Processo Civil não é nada fácil nessa situação. E, a meu ver, o objetivo foi cumprido! O Projeto cria um cadastro de médicos para realização da perícia (inclusive, médicos interessados podem — e devem — se inscrever). Nesse cadastro, já existirão médicos que não têm vínculo com o plano de saúde (não são cooperados, por exemplo) e, portanto, são isentos. Ainda, o cadastro visa a contar com especialistas, na medida em que o médico ser especialista na matéria é de fundamental importância nessa situação.

Ainda, houve uma definição de preço fixo da pericial, o qual será arcado exclusivamente pelos Planos de Saúde participantes do projeto. E não, não é um médico do plano de saúde, mas sim um médico isento. Ou seja, já estaria pré-estabelecido quanto o perito ganharia e quem pagaria por essa perícia (no caso, o plano de saúde). E talvez você esteja pensando: “Por que o plano de saúde pagaria sem reclamar? Deve ter alguma intenção escusa!”.

Bom, não estou dentro dos planos de saúde para dizer o que os levou ao Projeto, porém, acredito realmente que é uma questão de custo/benefício. Demandas judiciais custam ao plano de saúde e, quanto mais demorada a demanda, mais custo. Ainda, é de se observar que a tendência jurisprudencial é que os planos de saúde acabem sendo condenados ao custeio do tratamento (isso num sentido genérico, pois cada caso é um caso). O plano de saúde aderir a este projeto pode representar diminuição de seus custos com demandas judiciais e diminuição dos próprios gastos que o plano de saúde já tem com perícia. Ou seja, o Projeto aparenta ser economicamente favorável tanto ao plano de saúde como a seus consumidores.

Não havendo conciliação, nos casos em que se faça necessária a perícia, o objetivo é que, já na audiência de conciliação, seja definido o perito e a data da perícia, o que representaria uma economia de tempo incrível! O fundamento jurídico para essa possibilidade encontra-se no instituto do negócio jurídico processual. Prevê o art. 190 do Código de Processo Civil (2015): Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. E é diante desta previsão que se torna possível a realização da perícia, quando necessária, já no início da demanda.

Ainda, o Projeto conta com a possibilidade de citação online dos planos de saúde, o que significa uma economia de tempo, de papel e de dinheiro. A citação é o ato que (falando simplificadamente) dá ciência ao Réu da existência do processo. Nos casos contra planos de saúde, tal audiência ocorria frequentemente por carta A.R. ou oficial de justiça, que evidentemente não têm a mesma celeridade que a citação online.

Em meu entendimento, o Projeto representará uma nova realidade referente às demandas judiciais que envolvam saúde suplementar. Minha vontade de falar do Projeto aqui se deu tanto pela sua importância para pessoas com autismo que pleiteiam tratamento junto ao plano de saúde, quanto como uma forma de tentar demonstrar que não podemos desacreditar do Judiciário. Eu entendo que a mudança de entendimento da 10ª Câmara Cível tenha causado um profundo impacto em como pais e mães de crianças autistas do Paraná veem o Direito, porém, não devemos descreditar o Judiciário paranaense.

Conversando com a Drª Vanessa (a quem mais uma vez agradeço a receptividade e carinho de me explicar com detalhes sobre esse projeto), uma frase, escapada, displicente, no meio de uma fala longa, me chamou muita atenção: “e eu me preocupava muito com as crianças com autismo”. Ou seja, ela pensava em como resolver questões de pedidos de tratamentos a planos de saúde e o autismo passava em sua cabeça. Depois de um ponto da minha jornada, eu comecei a pensar que talvez as únicas pessoas que realmente dedicavam tempo de seus dias se preocupando os autistas eram os pais e os médicos/terapeutas; comecei a achar que era preciso estar o dia-a-dia com uma criança com autismo para se preocupar com ela. Às vezes tenho a felicidade de encontrar pessoas que mostram que estou errada e, quando essas pessoas são operadoras do Direito, eu passo a me sentir orgulhosa pela escolha profissional que fiz.

Estou com grande expectativa nesse projeto e igualmente grande torcida. O Judiciário, a vida e minhas esperanças estão sempre em movimento.

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