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morte por asfixia
Falta de oxigênio tem comprometido tratamento de pacientes internados com Covid-19 em Manaus.| Foto: Michael Dantas/AFP

A sensação é bem conhecida por alpinistas de alta montanha: o raciocínio fica confuso, há dificuldade de reconhecer o que é real e o que não é, a cabeça dói, perde-se o equilíbrio nos movimentos e a fadiga se abate sobre o indivíduo. São os efeitos da hipóxia, a falta de oxigênio nas células do corpo, causada pela baixa concentração de gases na atmosfera em altitudes elevadas. Os pulmões não conseguem captar a quantidade de oxigênio necessária para fazer o organismo funcionar. Acima de 8.000 metros de altitude, na chamada zona da morte, as células começam a definhar. Ficar muito tempo lá leva à morte por asfixia.

A asfixia é lenta quando se escala uma montanha gradualmente, com as próprias pernas e mãos. Se uma pessoa fosse levada diretamente ao topo do Monte Everest, a montanha mais alta do mundo, na fronteira com o Nepal e a China, porém, perderia a consciência em menos de três minutos e morreria em questão de horas. O organismo não tem sequer tempo de tentar se adaptar.

O ar rarefeito da política nacional provocou uma hipóxia crônica da sociedade brasileira. Em nosso país, como ocorre com os gases na alta montanha, a concentração dos elementos básicos para o funcionamento do tecido social e do organismo público é baixíssima.

Na composição desse ar, o oxigênio é o consenso político mínimo para priorizar o bem estar da população. Mas a polarização ideológica, fenômeno que vem se intensificando há anos no país, torna esse elemento cada vez mais escasso. E leva a sociedade brasileira, lentamente, à morte por asfixia.

Em Manaus, isso não é uma figura de linguagem. A morte na capital do Amazonas por asfixia é real, e rápida, nos alas dos hospitais dedicados a pacientes com covid-19.

Mas a origem é a mesma. A desagregação política fez com que o governador Wilson Lima (PSC) e o prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB) ficassem cultivando desentendimentos ao longo de todo o ano passado, enquanto Manaus protagonizava as piores cenas nacionais da pandemia do novo coronavírus.

Não foi por falta de aviso que o colapso do sistema de saúde do estado e de Manaus se repetiu, na semana passada, com o fim dos estoques de oxigênio nos hospitais. A curva de mortes por covid-19 era ascendente desde meados de dezembro e, conforme alertaram inúmeros especialistas, agravou-se por causa das aglomerações no comércio e nas festas de final de ano.

Aqui, novamente, o ar rarefeito se impõe, mas em nível federal. Tornou-se uma questão de identidade ideológica defender que aglomerações e o contato social intenso não têm nada a ver com taxas maiores de contaminação ou que usar máscaras é inútil. Do outro lado do espectro político, insiste-se em dizer que o único culpado por tudo, até o fim do oxigênio em Manaus, é o governo federal. Há quem afirma isso, mas lota os barzinhos da moda com os amigos ou faz o mesmo tipo de aglomeração que critica o presidente por fazer.

É verdade que o governo federal, em especial o Ministério da Saúde, não tem sido eficiente em lidar com a pandemia. O ministro Eduardo Pazuello esteve em Manaus na segunda-feira passada e foi informado sobre a falta de oxigênio. Nada fez a respeito. Em vez disso, insistiu na promoção do chamado "tratamento precoce", uma ilusão que a Sociedade Brasileira de Infectologia (alinhada com o que recomendam também entidades especializadas nos Estados Unidos e na Europa) afirma não ter eficácia contra covid-19.

Até nisso percebe-se o ar rarefeito da política nacional. Para o presidente Jair Bolsonaro, colocar-se contra o que diz a ciência tornou-se uma questão identitária (os defensores do "tratamento precoce" são uma minoria, de baixa credibilidade, na comunidade médica especializada).

Com isso, inverteu-se a prioridade: em vez de garantir a vacina e uma estrutura hospitalar decente (incluindo oxigênio para quem precisa), incentiva-se medicamentos sem comprovação científica. Para lembrar: vacina e oxigênio têm comprovação científica e podem salvar vidas; "kit covid", não. Tanto é assim que a prefeitura de Porto Alegre (RS) distribui os medicamentos mediante a assinatura de um termo de isenção de responsabilidade, com o aviso: não há comprovação de que funcione.

O ar é tão rarefeito que ciência tornou-se coisa de esquerdista, de comunista. Mas ciência é apartidária. Pergunte a infectologistas sérios que votaram em Bolsonaro, mas se escandalizam com a promoção irracional da hidroxicloroquina.

O vice-presidente Hamilton Mourão tem uma boa dose de razão quando disse que parte do problema está na "indisciplina" do povo — e isso, acrescento, em todas as classes sociais. "A questão é que nós aqui não fechamos nunca, né? Essa é a realidade", disse Mourão, referindo-se às medidas para restringir a circulação e o contato social. Mourão está certo, ainda que tenha falado de maneira cifrada para não parecer uma crítica ao maior incentivador de aglomerações do país e o maior opositor do isolamento social, o presidente Bolsonaro.

Sim, as restrições reduzem o contágio e desafogam o sistema de saúde. E se tivessem sido bem feitas pelos estados e municípios, como fizeram outros países, não precisariam ter durado tanto tempo.

Em condições normais, apoiadores e opositores de Bolsonaro poderiam discordar de quase tudo (nos costumes, na economia, na segurança pública, etc.), mas concordar em adotar medidas técnicas, baseadas na ciência, e não ideológicas contra a pandemia.

A recusa em encontrar consensos está nos levando à morte por asfixia.

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