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crise política
Apoiadores de Trump entram em confronto com a polícia e forças de segurança ao invadir o Capitólio dos EUA em Washington, 6 de janeiro| Foto: Brendan SMIALOWSKI / AFP

"Temo que as eleições sejam manipuladas", disse Donald Trump em agosto de 2016. Sim, em 2016. Três meses depois, ele foi eleito presidente do Estados Unidos. Nem por isso deixou de dizer que houve fraude eleitoral. Trump passou a afirmar que venceu também no voto popular — quando, na realidade, recebeu 2,8 milhões de votos a menos do que a democrata Hillary Clinton. Ele ganhou, sim, na contagem de delegados no Colégio Eleitoral, que é o que vale no sistema de voto indireto americano. A crise política que os Estados Unidos enfrentam neste início de ano, com direito a uma invasão do congresso por manifestantes pró-Trump que resultou em cinco mortos, não começou agora. Está sendo gestada há anos, desde antes de Trump entrar na Casa Branca.

Trump foi eleito de forma legítima, assim como era legítimo o descontentamento de seus eleitores com a elite política americana, com a desconexão da burocracia de Washington com os anseios de uma parcela significativa da população do país. A democracia americana vem sofrendo corrosões há décadas, mas Trump provou-se o líder errado para corrigir o sistema. Tanto é assim que foi derrotado na eleição seguinte — no voto popular e no Colégio Eleitoral.

Nos seus quatro anos de governo, Trump não reformou e tampouco fortaleceu as instituições democráticas de seu país. Ao contrário, atuou sistematicamente para minar ainda mais a confiança do povo na democracia, com seus ataques à Justiça, ao consenso bipartidário, à imprensa e, acima de tudo, aos fatos.

Trump sempre soube que podia perder a eleição, por isso atuou para disseminar, desde antes de assumir o cargo, a suspeita de que o sistema eleitoral era manipulado com o objetivo de prejudicá-lo.

Obviamente, essas alegações se intensificaram depois que ele perdeu a eleição de novembro do ano passado para o democrata Joe Biden. Desde então, Trump disparou 300 tuítes com denúncias de fraude. A realidade, porém, era outra. Trump perdeu todas as 60 tentativas de contestar o resultado eleitoral na Justiça. E cada uma das suas alegações foi derrubada pelos fatos. Fatos simples, facilmente verificados.

Na semana passada, por exemplo, ele escreveu no Twitter (antes de ter a conta suspensa) que os estados querem refazer a votação, que os legislativos estaduais nunca aprovaram os resultados das urnas. Nada mais falso. Todos os estados aprovaram os resultados que sustentaram, posteriormente, a decisão do Colégio Eleitoral, favorável a Biden.

Na manifestação do dia 6 de janeiro que resultou na invasão do Capitólio, a sede do congresso americano, e na atual crise política, Trump disse que em Detroit, no estado de Michigan, houve mais votos do que eleitores registrados. Igualmente falso. Os dados oficiais da cidade indicam que apenas metade dos eleitores registrados depositaram seus votos. Não houve mais votos do que eleitores.

Como em qualquer mentira, quem a faz conta com a baixa probabilidade de que quem a recebe vai ter tempo, disposição ou capacidade de conferir por conta própria se a afirmação condiz com os fatos.

O principal alvo desse tipo de falsidade é o que se chama, nos Estados Unidos, de low information crowd, a massa de cidadãos mal-informados.

Não por acaso, a aceitação de um líder populista, de traços autoritários, está diretamente relacionada ao baixo nível de informação dos cidadãos.

Segundo pesquisa do World Values Survey, conduzida em dezenas de países há várias décadas, a aceitação de um líder forte em detrimento dos valores democráticos aumentou nos Estados Unidos nos últimos anos — o que pode ser compreendido como um sintoma do desencantamento dos americanos com seu sistema político e parte da explicação para a crise política vivida pelo país hoje.

Em 2006, 31,6% dos americanos achavam ótimo ou bom ter um governante forte. Em 2017, 37% deles consideravam ótimo ou bom ter um líder forte que não precise se preocupar com o parlamento ou com eleições. A proporção dos que consideram positiva uma liderança antidemocrática é significativamente menor entre os cidadãos com maior nível de escolaridade (supostamente aqueles com maior acesso a informação): 16,6% em 2006 e 25,2% em 2017. Ainda assim, como se pode perceber, a aceitação de líderes fortes aumentou espantosamente entre os americanos mais escolarizados.

No Brasil, a tendência se repete, com o agravante de que aqui o gosto por líderes fortes, de verve autoritária, é ainda mais acentuado. Em 2006, 62,1% dos brasileiros achavam ótimo ou bom ter um líder forte. Em pesquisa feita em 2018, a proporção dos que aceitavam um líder forte que não precisasse se preocupar com o congresso ou com eleições havia caído para 56,4%.

Entre os brasileiros com maior nível de escolaridade, a aceitação de um líder forte aumentou de 45,5% em 2006 para 53,5% em 2018.

Ou seja, assim como nos Estados Unidos, também no Brasil a aceitação de líderes antidemocráticos entre cidadãos de maior escolaridade aumentou. Ao contrário do que ocorre lá, porém, essa não é uma tendência geral da população. Aqui, apesar de mais da metade ainda flertar com a ideia de ter um líder forte alheio às instituições democráticas, essa aceitação tem tendência de queda — exceto entre os cidadãos mais escolarizados.

Trata-se de um fenômeno preocupante, porque significa que quem mais tem condições de estar bem informado no país se distancia cada vez mais dos valores democráticos.

Em um país onde 7 em cada 10 pessoas lêem apenas os títulos das notícias, alegações infundadas de fraude eleitoral tendem a ser aceitas com ainda mais facilidade.

O presidente Jair Bolsonaro tem seguido o mesmo roteiro de Trump na construção de uma narrativa cujo objetivo é disseminar a desconfiança em relação ao processo eleitoral — que, no caso brasileiro, é ainda mais transparente e protegido contra violações do que o americano.

Bolsonaro vem afirmando repetidamente que a eleição da qual saiu vitorioso foi marcada por fraudes e que isso pode se repetir na próxima votação de que ele vier a participar.

Se ele for derrotado na tentativa de reeleição de 2022 — o que, por enquanto, parece improvável, a julgar pelas pesquisas —, o Brasil corre o risco de enfrentar cenas ainda piores do que as que presenciamos no dia 6 de janeiro nos Estados Unidos. Afinal, aqui o presidente conta com o apoio de parte da cúpula das Forças Armadas, o que não ocorre com Trump nos Estados Unidos. Em vez de uma simples crise política, como ocorre nos Estados Unidos, poderíamos ter um ambiente propício para um golpe.

A direita democrática que apoia o governo Bolsonaro deveria recusar, desde já, sua falsa narrativa de fraude eleitoral.

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