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marketing de Doria
O governador de São Paulo, João Doria| Foto: Governo do Estado de São Paulo

Em março de 2010, estive em Manaus para entrevistar o diretor de cinema James Cameron, de Titanic e do então recém-lançado Avatar. Cameron estava na capital do Amazonas para participar do Fórum Internacional de Sustentabilidade, organizado pelo empresário paulista João Doria. O evento — apinhado de personalidades nacionais e internacionais, além de palestrantes e debatedores que, juntos, representavam uma parcela considerável do PIB brasileiro — era uma demonstração da habilidade de marketing de Doria.

Marketing: a atividade ou o processo de comunicar valor a clientes ou à sociedade em geral. Um detalhe, porém, me chamou a atenção na ocasião. Um detalhe que, inicialmente, me pareceu um deslize do anfitrião do evento, mas que hoje entendo como um efeito colateral dos excessos do impulso natural ao marketing de Doria. Na abertura do seminário com a participação de Cameron, ao qual assisti como preparação à entrevista que eu faria com o diretor de cinema, Doria apresentou o convidado com um discurso um tanto quanto fora do tom.

O discurso tinha um quê de antiamericanismo, alguns clichês que remetiam a uma narrativa de imperialismo americano mais comum em cartilhas do Psol e menções às responsabilidades dos americanos na preservação do Planeta. Mais do que o teor, destoava do contexto especialmente o tom levemente exaltado do anfitrião. Cameron pareceu-me constrangido ao tomar a palavra e viu-se na obrigação de defender os Estados Unidos de alguma forma, de esclarecer que não era bem assim.

O breve arroubo anti-imperialista de Doria diz menos sobre suas convicções pessoais ou visão de mundo e mais sobre seu desejo de causar um impacto, de criar uma conexão com o público.

Talvez ele tivesse imaginado que Cameron, cujo filme Avatar vinha sendo criticado por conservadores como "propaganda esquerdista", se identificaria e concordaria com o teor crítico do seu discurso. Ou talvez soubesse muito bem que a audiência ali presente, mesmo a dos empresários, queria mais é ver os Estados Unidos sendo responsabilizados por poluir o mundo. (Quando esse questionamento voltou à tona na palestra do ex-presidente americano Al Gore, também presente ao evento, o público aplaudiu intensamente.)

Onze anos depois, o marketing de Doria dá a tônica da atuação do governo de São Paulo na pandemia do novo coronavírus. O governador quer mostrar serviço, e isso é ótimo. Se não fosse por esse desejo de ter algo para embrulhar em uma boa apresentação de marketing, os brasileiros teriam esperado dois meses a mais, no mínimo, para começar a serem vacinados contra a covid-19.

Sim, isso é fato. A Fiocruz entregou o primeiro lote de vacinas produzidas na instituição como resultado do acordo com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca duas semanas atrás. As doses anteriores foram encomendadas às pressas pelo governo federal (via Fiocruz) a um fornecedor indiano da mesma vacina apenas para não ficar atrás do governo paulista, que estava pronto para iniciar a vacinação com a CoronaVac já em janeiro.

Doria explorou como pode o mérito de ter dado a largada da vacinação contra covid-19 — e de, com isso, ter feito o governo federal sair da inércia para correr atrás de mais vacinas. Mas, como no episódio de James Cameron, o excesso de marketing de Doria faz ele errar o tom e o teor daquilo que vende como grandes conquistas. Não precisava ser assim, porque médias e pequenas conquistas também têm mérito.

O exemplo mais recente foi o anúncio feito por Doria na sexta-feira (26) de que o Instituto Butantan pediria autorização à Anvisa para testar uma vacina "100% nacional". "É a 1ª vacina 100% nacional, integralmente desenvolvida e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan", disse Doria. Logo, porém, descobriu-se que a tecnologia da vacina foi desenvolvida pelo Instituto Mount Sinais, dos Estados Unidos.

Já era bom o suficiente anunciar uma parceria com uma respeitada instituição americana para a testagem e a produção de uma nova vacina. Precisava omitir essa informação, apenas para amplificar o impacto do anúncio? É o excesso de marketing de Doria resultando em um tiro no próprio pé.

Outro exemplo foi o anúncio, feito por Doria na quarta-feira (24), de que o estado de São Paulo vai antecipar a vacinação de policiais e de professores do ensino básico para abril. A medida foi anunciada sem que se informasse o que aconteceria com o cronograma de vacinação dos idosos de 60 a 68 anos (a dos idosos de 69 a 71 começou na sexta-feira, 26).

Pela ordem de prioridade estabelecida pelo Ministério da Saúde no Programa Nacional de Imunização, idosos com 60 anos ou mais devem ser vacinados antes de policiais, professores e outras categorias profissionais prioritárias. Doria não explicou os critérios epidemiológicos para antecipar a vacinação de policiais e professores. É mais do que justo que essas categorias sejam vacinadas logo, mas como fazê-lo sem prejudicar os idosos que estão na fila, já que há escassez de doses?

Ficou claro que o critério foi político: policiais haviam feito protestos dias antes contra o governo de Jair Bolsonaro pedindo rapidez na imunização e professores pressionam para não voltar às salas de aula quando a situação da pandemia permitir, com a redução no número de casos. Já os idosos são um grupo difuso, sem a mesma capacidade de organização e de lobby.

Na sexta-feira, Doria anunciou que idosos com 68 anos começarão a ser vacinados no dia 5 de abril, junto com os policiais. Evidentemente, devido à escassez de doses, isso significa uma desaceleração no ritmo de vacinação dos idosos. Mas não foi dessa forma que a decisão foi comunicada por Doria. Para ele, como sempre, trata-se de uma "ótima notícia".

Para o governador de São Paulo, tudo é marketing. Até a aproximação com Bolsonaro em 2018 foi um jogada de marketing de Doria para se eleger governador.

Doria tem mérito indiscutível na questão da vacina. Se não fosse pelo governo paulista, a vacinação contra covid-19 mal teria começado no Brasil. Ele pode se vangloriar disso, mas tudo tem um limite.

Nada de errado em vender bem o peixe. Desde que o que está sendo vendido seja peixe, mesmo.

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