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Retirada de Saigon
Foto histórica mostra vietnamitas na casa de diretor da CIA, tentando fugir do país em 1975| Foto: Wikimedia Commons

“O Talibã não é o exército do Vietnã do Norte. Eles não são nem remotamente comparáveis em termos de capacidade. Não haverá nenhuma circunstância em que você verá pessoas sendo retiradas do telhado da embaixada dos Estados Unidos no Afeganistão. Não é comparável." Esta foi a resposta dada pelo presidente Joe Biden no mês passado quando perguntado se a sua decisão de seguir com a retirada das tropas americanas do Afeganistão, apesar do avanço militar da milícia fundamentalista Talibã, não levaria à repetição em Cabul de cenas como as da humilhante evacuação de Saigon, no Vietnã, em 1975.

E, no entanto, eis que neste domingo (15), o Talibã entrou em Cabul, a capital do Afeganistão, quase vinte anos depois de ter sido expulso do poder por bombardeios americanos e aliados. E eis que helicópteros militares são usados para ajudar na evacuação de funcionários da embaixada americana, de onde A Bandeira Estrelada foi recolhida.

O governo americano continua tentando sustentar a narrativa de que Cabul não é a repetição de Saigon. Mesmo enquanto parte dos habitantes de Cabul se trancam apavorados em casa, as mulheres preparam-se para novamente ter de usar a burca e funcionários do governo do presidente Ashraf Ghani, que fugiu do país, se perguntam se serão massacrados como foram seus colegas em outras províncias tomadas pelo Talibã nas últimas semanas, o secretário de Estado americano Antony Blinken declarou: "Lembrem-se, isso não é Saigon." Como não é Saigon?

A queda de Saigon, em 1975, coroou a vitória do exército norte-vietnamita e a unificação do país sob o jugo comunista, após mais de dez anos de envolvimento americano no conflito. Os Estados Unidos já haviam reduzido sua presença no Vietnã, mas a evacuação de Saigon, enquanto os comunistas entravam na cidade, deu à retirada os contornos de uma derrota e produziu as imagens para simbolizá-la.

Os Estados Unidos não cumpriram sua missão no Vietnã, e por isso podem ser considerados derrotados. Blinken diz que o caso do Afeganistão é diferente, porque lá os objetivos iniciais foram alcançados. “Nós fomos ao Afeganistão 20 anos atrás com uma missão, e essa missão era lidar com o pessoal que nos atacou em 11 de setembro — e nós fomos bem sucedidos nessa missão."

Sim, os Estados Unidos bombardearam o Afeganistão em outubro de 2001 e depois ocuparam o país como resposta aos ataques terroristas de 11 de setembro daquele ano. O regime do Talibã abrigava a rede terrorista Al Qaeda, de Osama Bin Laden, que os americanos passaram a caçar — mas que só foi morto dez anos depois, em um esconderijo no Paquistão.

A Guerra ao Terror se estendeu por mais de uma década, e justificou intervenções militares americanas bem menos justificáveis, como o do Iraque, a partir de 2003 — que em vez de reduzir, aumentou a ameaça do terrorismo islâmico no mundo.

O perigo terrorista hoje de fato é menor do que quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e derrubaram o Talibã. A Al Qaeda, por exemplo, foi em grande medida desmantelada.

Mas o retorno do Talibã ao poder renova o risco de que o país volte a ser uma base para grupos terroristas. Desde que Biden confirmou a retirada americana este ano, jihadistas da Síria, do Paquistão e da Líbia começaram a chegar ao país, aproveitando o avanço do Talibã.

Além disso, não é verdade que os Estados Unidos tinham apenas uma missão no Afeganistão, a de combater o terrorismo. Os americanos engajaram-se em um projeto de construção de nação, ou seja, de transformar um país atrasado, miserável e submetido a uma ideologia e um cotidiano repressivos em uma democracia em que os direitos de certos grupos da população, como as mulheres, fossem respeitados.

Com efeito, as meninas puderam voltar às escolas e práticas medievais foram abolidas, como o apedrejamento até a morte de pessoas que fizessem sexo fora do casamento. Mas esses direitos não eram garantidos em todas as regiões do país e, de resto, a empreitada americana fracassou.

Biden sempre defendeu a retirada americana do Afeganistão, inclusive quando era vice-presidente de Barack Obama. Nisso, tinha a concordância do ex-presidente Donald Trump.

Trump reconheceu o fracasso da empreitada no Afeganistão e iniciou um processo de negociação com o Talibã, que pressupunha a retirada das tropas americanas e manutenção do governo afegão e dos direitos conquistados pela população.

A promessa de Trump era retirar as tropas até maio deste ano. Biden mudou os planos, unilateralmente estabelecendo como prazo 11 de setembro — depois antecipado para o final deste mês. O Talibã entendeu isso como uma violação do acordo feito com Trump, e iniciou sua campanha militar para tomar o país.

É bastante provável que o poder teria voltado às mãos do Talibã mesmo se o plano de retirada estabelecido por Trump tivesse sido mantido. Os fundamentalistas apenas aguardariam o melhor momento para fazer o seu avanço militar.

Mas a maneira como isso ocorreu, tão rápido e tão nas barbas dos americanos, que simplesmente continuaram batendo em retirada enquanto o Talibã avançava, tomando capital por capital de província, dá ao episódio os contornos de primeira grande derrota externa de Joe Biden.

Cabul é a Saigon do presidente democrata.

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