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Witzel
Fechamento de divisas interestaduais devido ao coronavírus, como fez o governador do Rio, Wilson Witzel, criou atritos com o governo Jair Bolsonaro| Foto: Rogerio Santana/Governo do Rio

A pandemia colocou em movimento as placas tectônicas do federalismo brasileiro e pode provocar, depois do "terremoto" do novo coronavírus, uma mudança duradoura na centralização de poder no Brasil. O mais recente tremor causado pelo atrito entre essas placas tectônicas é a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de encontrar, no últimos dias, uma maneira de impedir que governadores e prefeitos mantenham ou intensifiquem medidas de restrição de circulação dos cidadãos para conter o avanço da covid-19.

Na quarta-feira (8), antes de pronunciamento em cadeia nacional, Bolsonaro disse, em entrevista a um programa de televisão, que pensava em soltar um decreto ou apresentar um projeto de lei para obrigar os governos locais a suspender as medidas de isolamento. Mas que sabia que enfrentaria resistência na Justiça ou no Congresso Nacional. Neste fim de semana, surgiu outra opção, a de o governo federal recorrer à Justiça, por iniciativa da Advocacia-Geral da União (AGU), para impedir que estados e municípios imponham restrições que violem direitos fundamentais dos cidadãos.

O governo considera que encontrou nas ameaças feitas pelo governador de São Paulo, João Doria, de mandar multar ou prender quem desrespeitar as ordens de quarentena, a justificativa perfeita para impor limites à capacidade de estados e municípios de aplicar suas próprias soluções contra a epidemia.

Mas o incômodo de Bolsonaro com as medidas adotadas por estados e municípios antecede as propostas de recorrer a prisões para impor a quarentena. Para o presidente, governadores e prefeitos de grande cidades fizeram a opção errada ao dar ouvidos à comunidade científica e acreditar que os efeitos da pandemia na saúde pública serão mais danosos do que o impacto do fechamento de comércio e serviços na economia e na renda das pessoas.

O tempo dirá quem está certo. A maior parte da comunidade científica — da Organização Mundial de Saúde (OMS) às principais publicações acadêmicas, passando pelos mais renomados epidemiologistas do Brasil — está do lado da defesa do distanciamento social como medida preventiva mais eficaz contra uma catástrofe humanitária, especialmente em lugares com estruturas de atendimento de saúde mais precárias. Mas a maioria nem sempre está certa. A ciência não é democracia e hipóteses minoritárias por vezes saem vencedoras.

O que sim parece certo é que, no campo da política, seja qual for a extensão da epidemia do coronavírus no Brasil, ganhará impulso a pauta da descentralização de poder no país.

O Brasil tem uma federação sui generis, com grande concentração de capacidade decisória e de recursos nas mãos da União. É o contrário do ocorre nos Estados Unidos, que serviram de inspiração para nós, onde os estados têm muito mais autonomia em relação a Washington. Um exemplo dessa autonomia é o fato de que lá há estados que legalizaram a maconha e outros, não. No Brasil, isso seria inimaginável.

Há razões históricas para essa diferença. A federação americana nasceu de entes políticos que aceitaram se unir. Já a brasileira foi construída sobre a ideia de distribuição de poder em um território que já havia sido unificado sob o Império.

Desde a proclamação da República, a federação brasileira oscilou entre períodos de maior ou de menor centralização do poder. A Constituição de 1988 apontou para a descentralização, dando aos municípios status de entes federativos, ao lado da União e dos estados, mas, nas prática, o poder segue mais concentrado em Brasília.

Essa concentração é política e financeira. O primeiro tipo de concentração reside no fato de, apesar de estados e municípios terem a competência para executar políticas públicas, a formulação dessas políticas costuma partir do governo federal, como ocorre, por exemplo, com as áreas da saúde e da educação.

Em grande medida, essa falta de autonomia está relacionada ao segundo tipo de concentração, a financeira. Há uma grande dependência dos entes federativos subnacionais (estados e municípios) em relação aos recursos federais. A arrecadação de tributos tem distribuição desigual: 55% fica com a União, 26% com os estados e 19% com os municípios.

Um estudo feito pelo pesquisador Marcelo Castro, da Universidade Federal de Uberlândia, e pelo economista Tiago Cisalpino, publicado no ano passado, mostra que há uma relação direta entre a dependência dos municípios menores por recursos federais e o alinhamento das prefeituras com o grupo político que ocupa o governo federal. Ou seja, a dependência financeira reflete-se em dependência política e, portanto, em menos autonomia.

Curiosamente, o governo Bolsonaro vinha promovendo, desde o ano passado, um programa focado em reformular o Pacto Federativo por meio de uma maior descentralização dos recursos. O grande defensor de medidas com essa finalidade é o ministro da Economia, Paulo Guedes, que apresentou no ano passado propostas para dar mais flexibilidade a estados e municípios na decisão de como usar recursos, além de distribuir uma fatia maior da arrecadação — por exemplo, com royalties do petróleo.

Guedes vê na pandemia uma oportunidade para avançar na aprovação dessas propostas. Ele falou sobre isso duas semanas atrás: "A crise de calamidade é exemplo agudo de crise de emergência fiscal. Estava no pacto federativo. O protocolo da crise já prescrevia isso. E também previa mandar mais dinheiro para estados e municípios." Para Guedes, a epidemia demonstra que ele estava certo em promover um "novo" Pacto Federativo. No dia 23 de março, Bolsonaro saiu de uma videoconferência com governadores reforçando a mesma mensagem, no Twitter: a de que é preciso "acelerar a descentralização de recursos proposta no pacto federativo" para combater a covid-19.

O presidente e seu ministro, portanto, estão alinhados quanto a um dos pilares da descentralização de poder: a de dar maior autonomia de recursos para que governadores e prefeitos possam executar políticas públicas. Bolsonaro defendeu até mesmo a inclusão de uma cláusula de calamidade pública nas propostas para o Pacto Federativo, com o intuito de propiciar recursos extras para os entes subnacionais no caso de emergências — como a que o país enfrenta atualmente, com o novo coronavírus.

Curiosamente, porém, o instinto de sobrevivência política de Bolsonaro faz com que ele vá na direção contrária da descentralização no que se refere à autonomia para a tomada de decisões. Quando questiona a competência de governadores e prefeitos em adotar medidas draconianas para conter a pandemia— fechando atividades comerciais, restringindo o transporte e cogitando mandar prender quem desobedecer —, Bolsonaro está, em última análise, resistindo à ampliação da autonomia dos entes federativos.

A partir do momento, porém, em que governadores e prefeitos assumiram o protagonismo na adoção de medidas drásticas para evitar o desastre na saúde pública que os modelos científicos previam, acabaram por colocar em movimento uma série de decisões judiciais que reforçam a descentralização da formulação de política públicas.

As mais importantes dessas decisões foram as dos ministros Marco Aurélio Mello e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 25 de março, Mello deferiu parcialmente uma liminar resguardando a competência de governadores e prefeitos de adotar medidas restritivas para conter o novo coronavírus. Na prática, Mello deixou sem efeito parte de uma Medida Provisória assinada por Bolsonaro para fazer frente à pandemia, no trecho em que se afirma que estados e municípios só poderiam interromper serviços públicos e essenciais "em articulação" com o governo federal.

Na quarta-feira (8), por sua vez, o ministro Alexandre de Moraes afastou a possibilidade de que o governo federal "afaste unilateralmente" as medidas de isolamento social que vêm sendo adotadas por estados e municípios, resguardando "o respeito à determinação dos governadores e prefeitos quanto ao funcionamento das atividades econômicas e às regras de aglomeração".

As decisões dos ministros Marco Aurélio Mello e Alexandre de Moraes são monocráticas, mas apontam para uma tendência que, se confirmada em julgamentos no plenário do STF, pode levar a uma consolidação da autonomia de estados e municípios na formulação, não apenas na execução, de políticas públicas.

O choque entre as placas tectônicas da federação brasileira desencadeado pela pandemia do coronavírus intensificou uma tendência de maior descentralização de poder que já estava em movimento. De um lado, o governo Bolsonaro incentiva essa descentralização, defendendo um novo formato de distribuição de recursos. De outro lado, resiste à descentralização, opondo-se à busca por autonomia de governadores e prefeitos na tomada de decisões contra o avanço da covid-19.

Quando as placas tectônicas se acomodarem e o terremoto passar, será possível descobrir o quanto a nova paisagem do Pacto Federativo ainda guarda de semelhança com a antiga.

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