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Allan dos Santos
Blogueiro Allan dos Santos (à esquerda), do site de fake news Terça Livre, foi alvo da Polícia Federal no inquérito aberto pelo STF| Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo

Em um momento em que os brasileiros estão lutando para sobreviver ao desastre econômico e de saúde pública causado pela pandemia do novo coronavírus, as preocupações do governo federal se voltam para o inquérito sobre fake news conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e que produziu, na semana passada, uma operação de busca e apreensão em endereços de empresários, políticos e militantes digitais que apoiam o presidente Jair Bolsonaro. O inquérito tem fragilidades, como comentarei mais adiante. Mas os supostos crimes que ele investiga não são frugais e tampouco são facilmente desmontados com o argumento da liberdade de expressão. Para entender a razão disso, é preciso relembrar alguns episódios que mostram o poder das fake news.

A expressão em inglês fake news é frequentemente traduzida para o português como "notícias falsas". Alguns estudiosos da comunicação, como Eugênio Bucci, professor da Universidade de São Paulo, consideram mais adequado traduzir fake news para "notícias fraudulentas", para reforçar a ideia de que se tratam de informações produzidas e divulgadas com a intenção de fraudar os fatos — não por erro, omissão ou viés ideológico, mas com o propósito deliberado de desinformar e confundir.

O que diferencia um veículo de comunicação sério de um perfil online ou site de fake news é a intenção ou não de produzir desinformação. O jornalismo profissional por vezes divulga informações equivocadas ou incompletas, mas elas não são intencionais e muito menos desejadas. Quando identificadas, são corrigidas. Já os sites ou perfis de fake news "erram" de propósito, criando conteúdos que parecem reais, mas embutem mentiras deliberadas.

Uma estratégia comum dos produtores de fake news ou de quem se beneficia delas é a de acusar a imprensa profissional de fazer o que eles fazem. Um exemplo: o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Bolsonaro, que não é um produtor de fake news mas tomou as dores das pessoas que foram alvo do inquérito do STF, postou no Twitter a imagem de uma manchete com uma notícia que, segundo ele, é falsa e tascou-lhe o carimbo "fake news". Ainda que a informação estivesse incorreta, Heleno estaria errado em classificá-la como fake news.

Bolsonaro também inverte o uso da expressão com frequência. Neste domingo (31), foi publicado em seu perfil no Facebook que "o maior dos FAKE NEWS é o 'gabinete do ódio' inventado pela imprensa" e que "essa mesma mídia podre produz, diariamente, dezenas de Fake News contra o Presidente".

O choro é livre, como se tornou costumeiro dizer por aí. A questão é que essa é uma estratégia antiga para desqualificar a imprensa. Sem querer usar o exemplo para defender a narrativa de que o governo Bolsonaro é fascista (como já escrevi em meu primeiro artigo aqui, o conceito não se aplica à realidade brasileira atual), apenas para demonstrar que a estratégia já se mostrou eficaz no passado, recorro a uma expressão que foi muito utilizada no contexto da ascensão do nazismo na Alemanha: Lügenpresse.

Lügenpresse, em alemão, significa "imprensa da mentira" ou "imprensa mentirosa". Antes de chegar ao poder, Adolf Hitler tratava a imprensa e os jornalistas como inimigos do povo. Hitler e seus partidários repetiam à exaustão a palavra Lügenpresse para desacreditar todos aqueles que se dedicavam, nos jornais, a desmontar as mentiras ("Lügen", em alemão) que ele próprio tratava de espalhar.

Uma imprensa profissional e crítica era, portanto, uma ameaça às informações fraudulentas — essas, sim, verdadeiras fake news — que Hitler e seus propagandistas, como Joseph Goebbels, difundiram com o intuito de ascender ao poder e de promover a perseguição aos judeus.

As fake news do nazismo tinham por objetivo convencer a população de que outros grupos políticos faziam parte de conspirações para trair a nação em prol de interesses estrangeiros, de que os alemães compunham uma raça superior e de que os judeus eram culpados por tudo o que havia de errado no país.

O sociólogo alemão Harald Welzer descreveu recentemente em um artigo para o jornal Die Zeit um dos princípios das mentiras espalhadas por Hitler e Goebbels: quanto mais numerosos e quanto maiores os absurdos que são ditos, mais as pessoas tendem a acreditar neles. A analogia é a de uma cama de pregos: se um faquir pisar em um prego, irá se ferir; mas se repousar seu corpo sobre vários deles, se sentirá confortável.

Ou, segundo a formulação que Vinícius Libel fez em seu livro "Os Alemães" (Editora Contexto) sobre o ambiente de paranoia generalizada que se instalou na Alemanha nazista e sobre as mentiras que então se disseminava sobre a oposição e sobre os judeus: "Algumas frases que se mostram falsas ou mesmo absurdas quando analisadas de forma mais detida, de repente se tornam verdades absolutas, irrefutáveis para muitos alemães mesmo com dados e com as provas mais evidentes em contrário."

As fake news do nazismo — e a ameaça da repressão violenta que as acompanhavam — tinham por objetivo construir a crença cega em seu líder. Nos interrogatórios, soldados alemães capturados durante a II Guerra Mundial diziam: "Se o Führer falou, então dá para confiar." Essa crença cega em mentiras deliberadas permitiu ao regime nazista enviar milhões de judeus para as câmaras de gás dos campos de concentração.

Eis um dado importante sobre o poder das fake news: ele se torna muito maior quando aqueles que as divulgam também controlam outras instituições do Estado. Daí a necessidade de se investigar, no Brasil, se pessoas próximas do presidente ou membros do Poder Legislativo integram uma rede organizada de produção e disseminação de notícias fraudulentas.

O genocídio em Ruanda, para recorrer a outro exemplo extremo que demonstra o poder das fake news, ocorrido em 1994, também foi sustentado sobre dois pilares complementares: a construção de uma narrativa de ódio baseada em informações mentirosas (via estações de rádio) e o controle de instrumentos do Estado para organizar a matança, como a administração pública, o exército e os partidos.

Entre as muitas informações falsas usadas para incitar a população da etnia huti contra a minoria tutsi, segundo a ong de direitos humanos Human Rights Watch, estavam as de que os tutsis eram estrangeiros e não tinham direito de viver em Ruanda; de que eles eram mais ricos que os hutis e portanto culpados pela pobreza da maioria da população; e de que as mulheres tutsis eram usadas para seduzir os hutus. O genocídio em Ruanda resultou na morte de 1 milhão de tutsis.

Recomenda-se sempre cuidado a usar exemplos do nazismo ou de genocídios para analisar fatos políticos como os que vêm ocorrendo no Brasil. Não se deve sugerir, muito menos, que estejamos nos encaminhando para realidades semelhantes como as descritas acima. Mas esses episódios históricos demonstram o poder das fake news, seus mecanismos e sua capacidade de conduzir as massas a participarem ou serem coniventes com grandes atrocidades.

Existem bons argumentos para defender que, no caso das fake news que inundam a internet brasileira, a melhor reação se dá no âmbito da plena liberdade de expressão que permite a existência das próprias notícias fraudulentas. Ou seja, que não se deve combater as fake news por meio judiciais, mas deixando que a sociedade e o jornalismo profissional refutem as mentiras disseminadas em meios digitais com informações mais fidedignas.

Esse é um caminho que não deve ser abandonado. Mas pode não ser suficiente em um contexto em que, como sugere o inquérito do STF, a produção de fake news é comandada por pessoas próximas ao núcleo do Poder Executivo e, portanto, com influência sobre as ações de instituições do Estado.

O que enfraquece o argumento para uma investigação aprofundada da fábrica de fake news aparentemente ligada ao governo Bolsonaro é que ela seja conduzida com secretismo, sem que os advogados dos investigados tenham acesso aos autos — como tem ocorrido no inquérito do STF.

A reação às fake news exige transparência e respeito ao estado de Direito.

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