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O governo do presidente Jair Bolsonaro não é fascista
O governo do presidente Jair Bolsonaro não é fascista| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Já era moda antes mesmo de o ex-secretário de Cultura, Roberto Alvim, posar de Goebbels em vídeo oficial: a esquerda brasileira pegou a mania de chamar o governo Bolsonaro e seus apoiadores de fascistas. A mais recente vítima do insulto é a atriz Regina Duarte, destacada pelo presidente para substituir o secretário demitido.

O fato de Alvim ter plagiado o ministro da Informação e da Propaganda de Adolf Hitler para explicar seus planos para uma arte "nacional" apenas deu impulso e legitimidade ao xingamento político: fascistas, todos fascistas.

Mas são, mesmo?

Há duas formas de interpretar o termo "fascismo". O primeiro é pelo seu significado histórico. O segundo é pelo seu uso político.

Do ponto de vista histórico, o fascismo foi um fenômeno político que nasceu em 1919, entregue ao mundo pelo ex-socialista italiano Benito Mussolini, e morreu em 1945, com a queda da Alemanha nazista. O fascismo só existiu ao longo de um período de 26 anos, portanto. Já em 1946 o escritor britânico George Orwell, um antifascista de respeito, concluiu que o termo havia perdido qualquer significado, a não ser como "algo não desejado".

O fascismo estava morto e a história não seria capaz de ressuscitá-lo. Qualquer fenômeno político contendo alguns de seus traços que viesse a surgir teria que receber um novo nome.

O termo "fascismo" sobrevive apenas como instrumento político, ou melhor, como um insulto usado para desqualificar adversários.

A instrumentalização política da palavra começou cedo, quando o movimento ao qual ela dava nome ainda estava no auge. No VII Congresso Mundial da Internacional Comunista, celebrado em Moscou, em 1935, o fascismo foi denunciado como a expressão ditatorial e "terrorista" do capital financeiro. A partir de então, a ideia de que fascismo e capitalismo estão interligados (ou que o capitalismo sempre procura esconder sua faceta fascista) enfronhou-se inexoravelmente no discurso de esquerda.

Na atualidade, "fascismo" é uma expressão de domínio da esquerda, ainda que muitos setores da direita também tentem instrumentalizá-lo ao dizer que o comunismo, sim, é que era fascista. Tratam-se, em ambos os casos, de apropriações indevidas do termo.

O fascismo tinha características muito específicas. Listo aqui as principais, tiradas do livro Fascistas, do sociólogo inglês Michael Mann (Editora Record), e da Enzyklopädie des Nationalsozialismus (editora DTV, sem tradução no Brasil):

  • Anticomunismo
  • Antiliberalismo
  • Antidemocracia
  • Nacionalismo extremo
  • Imperialismo racial
  • Culto ao líder
  • Monopólio de um partido forte
  • Paramilitarismo
  • Criação de um Novo Homem
  • Ambição de transcender à luta de classes

Se fizermos o exercício de tentar identificar quais elementos acima são encontrados no governo do presidente Jair Bolsonaro, chegaremos à conclusão que faltam, a ele, características essenciais do fascismo.

O governo Bolsonaro se apresenta como anticomunista? Sim. Mas antiliberal? Nos costumes, sim, mas não no sentido econômico. O fascismo, tanto em sua variante italiana como na alemã, era fortemente estatista. Buscava-se o fortalecimento e a centralização do poder econômico do Estado. O posto Ipiranga Paulo Guedes não seria aceito no ministério de Hitler.

Antidemocrático? Bolsonaro não é afeito ao debate de ideias e à tolerância política. E, apesar de se dizer um defensor da liberdade de expressão, tem dificuldade de entender o papel crítico da imprensa. Ele flerta, em alguns momentos, com medidas autoritárias. Mais do que isso, ele expressa claramente sua nostalgia em relação à ditadura militar.

Mas a verdade é que, no primeiro ano de mandato de Bolsonaro, do ponto de vista institucional, o Brasil não se moveu um milímetro sequer em direção a uma ditadura. Talvez o presidente, como indivíduo, seja em essência antidemocrático. Mas seu governo não é.

O governo Bolsonaro é nacionalista, mas sem o aspecto racial que caracterizava o fascismo. Este, especialmente em sua variante nazista, almejava a unidade étnica do povo. Já o governo Bolsonaro, apesar da ojeriza de parte de sua base de apoiadores, recebe de braços abertos refugiados venezuelanos e nada fez para conter o fluxo de imigrantes pobres de outros países.

Os comentários preconceituosos que o presidente faz a respeito de nordestinos, por exemplo, podem e devem ser rechaçados, mas estão longe de representar o tipo de racismo que se manifestava entre os fascistas, cuja finalidade era a aniquilação física das minorias.

Seguindo esse raciocínio, verifica-se que tampouco há um caráter de imperialismo racial no governo Bolsonaro. O fascismo buscava expandir seu nacionalismo racial para além das próprias fronteiras. Chega a ser patético imaginar algo parecido no Brasil.

O culto ao líder, no caso do presidente brasileiro, certamente há. A obediência cega de sua base é uma exigência interna de seu grupo político e Bolsonaro faz questão de se dirigir diretamente às massas (digitais, no caso), sem intermediários.

Mas sua força política passa longe de se sustentar em um partido forte e monopolista. Os partidos fascistas ramificavam-se em diversas organizações (Juventude Hitlerista, por exemplo) para uniformizar sua ideologia em todas as esferas da sociedade. Bolsonaro não tem nada disso. Ele mal consegue criar o próprio partido, depois de brigar com aquele que o elegeu.

O governo Bolsonaro é integrado por militares e flerta com a violência política, mas não chegou ao poder amparado por um grupo paramilitar nem conta com uma organização armada para perseguir opositores. Todos os movimentos fascistas dignos desse nome tinham organizações paramilitares. As suspeitas conexões entre o clã Bolsonaro e as milícias do Rio de Janeiro não se equiparam ao papel ostensivo que os grupos paramilitares exerceram na ascensão do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.

Por fim, cumpre lembrar que, apesar de Mussolini e Hitler terem se aferrado ao poder em alianças com as elites conservadoras de seus países, seus movimentos políticos eram essencialmente revolucionários. Suas ideologias tinham a ambição de transcender ao conceito de luta de classes, segundo o sociólogo Michael Mann no livro Fascistas, e almejavam a criação de um Novo Homem, um ser humano ideal, livre dos vícios tanto do liberalismo burguês quanto do comunismo. O fascismo queria destruir o status quo para construir uma nova sociedade em seu lugar. O estado totalitário era um meio para isso. Por isso, era uma ideologia revolucionária.

O bolsonarismo não é nada disso. Talvez não seja sequer verdadeiramente conservador. O filósofo britânico Roger Scruton (1944-2020), teórico do conservadorismo, em visita ao Brasil no ano passado, evitou classificar Bolsonaro nesses termos.

Dadas as constantes referências nostálgicas de Bolsonaro ao Brasil dos anos 70, o mais correto seria enquadrá-lo como reacionário (no sentido literal, de alguém que reage às mudanças vertiginosas do mundo contemporâneo). Revolucionário, certamente não.

Dos dez elementos do fascismo citados acima, portanto, apenas quatro (dois deles com ressalvas) podem ser identificados no governo Bolsonaro. Está longe de ser o suficiente para chamá-lo de fascista.

O mundo produziu outros fenômenos políticos recentes que cumprem mais itens na lista, a exemplo do chavismo na Venezuela e da ideologia que justificou o terrorismo islâmico nas últimas décadas, sem que pudessem ser considerados verdadeiramente fascistas.

Tirando a discussão do plano histórico e trazendo-a para o contexto recente da realidade brasileira, há mais um motivo para não chamar o governo Bolsonaro de fascista: a palavra já foi de tal forma banalizada pela classe política tupiniquim (principalmente pela esquerda) que perdeu totalmente sua força e sentido.

Dois pequenos, mas ilustrativos, exemplos:

Em 2010, o petista Tarso Genro, que foi ministro da Justiça no governo Lula, disse que o então presidenciável tucano José Serra estava se aproximando da ideologia fascista em suas propostas contra o narcotráfico. E, em 2001, o PT divulgou uma nota chamando o então presidente Fernando Henrique Cardoso de fascista, depois que o próprio FHC afirmou que a oposição estava criando um clima de fascismo no país.

Depois de uma década de acusações mútuas de fascismo entre PT e PSDB, que valor tem a palavra para nomear o atual governo? Nenhum, é claro.

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