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Funcionários de saúde de hospital de Nova York reclamam da falta de equipamentos de proteção individual em meio à pandemia: EUA também falharam na resposta inicial à covid-19
Funcionários de saúde de hospital de Nova York reclamam da falta de equipamentos de proteção individual em meio à pandemia: EUA também falharam na resposta inicial à covid-19| Foto: STEPHANIE KEITH/2020 Getty Images

O que há de errado com a OMS (Organização Mundial de Saúde), a ponto de motivar o presidente americano Donald Trump a suspender o financiamento de seu país à entidade multilateral? Trump determinou na semana passada que as doações não serão retomadas enquanto sua administração não concluir uma investigação da suspeita de má gestão, acobertamento de informações e outras falhas da OMS durante a atual crise pandêmica do novo coronavírus.

O presidente dos Estados Unidos está especialmente insatisfeito com a atuação do diretor-geral da OMS, o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus. Mas o que há de verdade e o que há de exagero ou contradições nas suspeitas levantadas por Trump?

Nos tópicos a seguir, estão reunidas algumas das principais críticas justas que se pode fazer à OMS desde o início da atual pandemia. Na sequência, são apresentadas as inconsistências das acusações feitas por Trump e as ponderações que podem explicar, ao menos em parte, as falhas da entidade e da atuação do Dr. Tedros (como o chefe da OMS costuma ser chamado por colegas e pela imprensa mundial).

  • As críticas do presidente Trump às falhas na resposta inicial da OMS ao alastramento do novo coronavírus não são totalmente infundadas. E também é verdade que, ao menos em parte, isso teve como pano de fundo uma aceitação automática, sem questionamento, das informações que vinham desde Pequim. Um exemplo disso é a afirmação, feita no perfil da OMS no Twitter, no dia 14 de janeiro, de que não havia evidência clara de transmissão do vírus entre seres humanos em Wuhan, na China, replicando algo que o próprio governo chinês estava divulgando no mesmo dia. Estudos independentes, no entanto, já apontavam que isso era falso. Apenas no dia 22 de janeiro a OMS reconheceu que havia transmissão entre pessoas;
  • A OMS não apenas assumiu como verdadeiros dados questionáveis passados pelo governo chinês, como evitou fazer qualquer crítica a Pequim, mesmo depois que ficou claro que a resposta inicial à epidemia não teve a transparência que sua gravidade exigia. Mais do que isso, a OMS elogiou a resposta da China à epidemia, apesar dos indícios de que a divulgação dos dados de contaminados e mortos pela covid-19 no país obedeceu a interesses políticos do Partido Comunista Chinês. Como mostrou uma análise feita pela revista britânica The Economist, o número de casos diários novos revela um padrão errático: os picos acontecem às vésperas ou antes de decisões políticas importantes, como a demissão de um alto funcionário regional, etc. Isso pode indicar que a censura ou determinações políticas influenciam nos dados oficiais de covid-19;
  • Um fato adicional contribui para a alegação, feita pelo governo americano, de que a OMS aceitou passivamente a omissão de informações por parte da China foi o relato de que um grupo de cientistas do governo americano visitou Wuhan em janeiro e os funcionários chineses não lhes contaram que profissionais de saúde haviam sido infectados: um dado revelador sobre a transmissibilidade do vírus;
  • Tedros, o diretor-geral da OMS, elogiou as medidas de isolamento social adotadas pelo governo chinês, mas criticou a suspensão de voos da China para os Estados Unidos por parte do governo americano, por considerá-lo discriminatório. No entanto, essa foi justamente uma das únicas tentativas efetivas que Trump procurou adotar precocemente para deter a entrada do vírus nos Estados Unidos — que não resolveu o problema, mas pode ter retardado em alguns dias o caos;
  • A OMS relutou em declarar emergência de saúde global, o que só aconteceu em 30 de janeiro, e de pandemia, no dia 11 de março. O então ministro da Saúde brasileiro, Luiz Henrique Mandetta, por exemplo, estava pedindo a declaração de pandemia muito antes de a OMS aceitar fazê-lo. Essa medida é importante pois serve de parâmetro para que os países adotem políticas públicas adequadas para conter o alastramento da doença. Atribui-se inclusive a essa demora o quadro crítico que a epidemia alcançou na Itália, um dos países mais afetados;
  • Trump acusou a OMS de ter ignorado alertas feitos por Taiwan (território chinês com governo autônomo, mas que não é reconhecido como nação independente pela comunidade internacional) a respeito da gravidade da epidemia em Wuhan. De fato, Taiwan suspendeu os voos vindos de Hubei, a província chinesa onde fica Wuhan, já no final de dezembro — muito antes, portanto, de o governo chinês e de a OMS reconhecerem que havia transmissão do vírus entre humanos. Em março, durante uma entrevista a um canal de TV, um funcionário canadense da OMS confirmou o desprezo da organização pelas preocupações de Taiwan ao se recusar a responder a uma pergunta sobre o excelente desempenho do território autônomo em conter o avanço da doença. A questão taiwanesa é um dos argumentos mais fortes para alegar que Tedros é cupincha da China. Afinal, quando ele foi eleito para o cargo, em 2017, contou com o apoio de Pequim depois de ter deixado claro que não aceitaria que Taiwan se tornasse membro da OMS sem a autorização do governo chinês.

Como nada no tabuleiro mundial é simples, eis algumas ponderações sobre a atuação da OMS e algumas contradições na postura do governo americano que tornam o assunto bem mais complexo do que Trump faz parecer em seus tuítes e discursos:

  • As acusações de Trump, ainda que com um pé na realidade, são hipócritas. Ele reclamou dos elogios da OMS à resposta da China no começo da epidemia, mas ele próprio, em janeiro, a enalteceu. Em um tuíte, escreveu: "A China está trabalhando duro para conter o coronavírus. Os Estados Unidos apreciam seus esforços e transparência." Além disso, Trump está entre os líderes que mais tempo levaram para reconhecer a gravidade da crise, mesmo depois que a OMS fez a declaração de pandemia;
  • Apesar de ter grande influência na formulação de políticas de saúde em todo o mundo, a OMS não tem poder ou autoridade para executá-las em nível nacional e é passível de pressão política por parte dos países-membros. Isso significa que sua atuação é em grande medida restrita pela necessidade de manter boas relações diplomáticas com todos os países, pela incapacidade de impor suas recomendações e por não ter outra opção a não ser confiar nos dados oficiais que recebe. A atitude diplomática em relação à China também serve ao propósito de incentivar o país a ser o mais aberto possível no seu compartilhamento de informações vitais sobre a epidemia. E, de fato, para dar apenas um entre muitos outros exemplos de interesse científico, os chineses fizeram o sequenciamento genético do novo coronavírus em tempo recorde e compartilharam os resultados com pesquisadores do resto do mundo;
  • O governo chinês alega que a inconstância nos números da epidemia no país deve-se à necessidade de atualizá-los, de tempos em tempos, com informações que chegam atrasadas — por exemplo, aquelas que se referem a pessoas que morreram de covid-19 em casa ou em prisões. Na sexta-feira (17), o número oficial de mortos na cidade de Wuhan aumentou em 50% de uma só vez, chegando a 1290, por causa desse tipo de atualização. Se isso for verdade, serve de alerta para outros países, inclusive para o Brasil, que podem estar deixando de ver os dados de infecção e mortalidade fora dos hospitais;
  • Historicamente, os chefes da OMS costumam evitar se indispor com os Estados-membros porque a organização depende de suas doações. A própria decisão dos Estados Unidos de suspender seu financiamento demonstra isso. O orçamento da OMS não é exorbitante, considerando-se sua relevância internacional: são 5 bilhões de dólares por ano, apenas o dobro do que a Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, dispõe em verbas de pesquisa. Os Estados Unidos são os maiores doadores, com 15%, seguidos pelo Reino Unido e pela fundação filantrópica do empresário americano Bill Gates, que banca quase 10% dos gastos da organização. Boa parte das doações, inclusive daquelas que são feitas por países, já tem destino certo. É o que acontece com 70% do dinheiro vindo dos cofres do governo americano, destinados principalmente a pesquisas e campanhas para prevenção de Aids, câncer e doenças cardíacas, entre outras. Apenas uma pequena parte vai para prevenção de epidemias;
  • É um contrassenso suspender o financiamento da OMS em um momento de crise, mesmo que tenham ocorrido erros iniciais. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, alertou que "não é hora de reduzir os recursos destinados à operação da Organização Mundial de Saúde ou qualquer outra organização humanitária dedicada à luta contra o vírus.” Bill Gates, o terceiro maior financiador da OMS, também classificou a decisão de Trump como perigosa. Os governos do Reino Unido e da Alemanha também deixaram claro que consideram importante manter as doações à organização e seguir suas recomendações;
  • Não é de hoje que o governo dos Estados Unidos vem se opondo à atuação da OMS. Isso já aconteceu antes em questões de royalties farmacêuticos e em programas de saúde relacionados a políticas de migração. A implicância de Trump com a gestão Tedros, que era o candidato preferido do democrata Barack Obama, também não é nova: a abordagem do diretor-geral da OMS para a saúde pública é a da cobertura universal, uma política que não agrada ao presidente americano;
  • Suspender o financiamento à OMS vai reduzir ainda mais a influência dos Estados Unidos em questões globais de saúde.

O que fica claro nessa mais nova disputa internacional é que Trump está desperdiçando a chance de liderar o mundo no combate à pandemia. Suas ações levam a um progressivo isolamento dos Estados Unidos na arena internacional e abrem o flanco para o crescimento da influência da China.

E a China está preenchendo esse espaço, começando por uma campanha sem precedentes para provar que seu modelo político autocrático tem se provado o mais eficaz na contenção do vírus.

Trata-se de uma falácia, claro. Outros países, com sistemas democráticos sólidos, estão sendo bem sucedidos, como a Alemanha, a Coreia do Sul e a Dinamarca.

Seria mais honesto dizer que a OMS cometeu, sim, falhas políticas e de gestão na condução da pandemia, principalmente no início, mas que isso não a torna descartável. E que é verdade que a China poderia ter sido mais transparente, da mesma forma que os Estados Unidos demoraram a agir mesmo quando estava claro que o caos se avizinhava. Uma ação coordenada entre as nações teria sido, e continua sendo, a melhor forma de barrar a pandemia e mitigar os seus efeitos.

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