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O presidente Jair Bolsonaro segura uma caixa de hidroxicloroquina no Palácio do Alvorada, em julho de 2020| Foto: EVARISTO SA/AFP or licensors

Até hoje, quase um ano e meio depois, o Conselho Federal de Medicina (CFM) não suspendeu o parecer Nº 4/2020, de 23 de maio de 2020, que estabelece parâmetros e autoriza os médicos a receitarem cloroquina ou hidroxicloroquina para pacientes com covid-19 — apesar de a possibilidade de eficácia do medicamento para esse fim já ter sido descartada pelos melhores e mais sérios ensaios clínicos realizados desde então. Já passou da hora de o CFM atualizar ou anular o documento, que serviu de base, inclusive com trechos inteiramente copiados, para o protocolo do Ministério da Saúde que incentiva a prescrição da droga, publicado no mesmo mês.

A hidroxicloroquina já foi dispensada como alternativa no tratamento de covid-19, em qualquer estágio, por autoridades sanitárias dos Estados Unidos e da Europa e por entidades científicas como a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, a Sociedade Respiratória Europeia, a Força Tarefa Nacional para Evidências Clínicas para Covid-19 da Austrália, entre muitas outras.

No Brasil, a Associação Médica Brasileira (AMB) divulgou uma diretriz em junho deste ano contraindicando cloroquina ou hidroxicloroquina seja no chamado "tratamento preventivo", seja em pacientes leves, no "tratamento inicial" ou "precoce". O documento foi elaborado com base na revisão sistemática de estudos nacionais e internacionais que cumpriram os requisitos mínimos de qualidade científica.

Mesmo quando o parecer do CFM foi divulgado, em maio do ano passado, outras instituições eram mais cautelosas e não recomendavam uso desses medicamentos na prática médica de rotina, a não ser em estudos científicos. Essa era a orientação da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, por exemplo.

O CFM optou por não acompanhar o entendimento cauteloso dessas sociedades especializadas, mas ainda assim fez um parecer em cima do muro. O texto autorizava os médicos a prescrever cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes com covid-19, ao mesmo tempo em que admitia o risco de que os prejuízos poderiam ser maiores do que os benefícios.

Já o protocolo do Ministério da Saúde que recomendava o uso do medicamento ignorava solenemente o alerta para os riscos, apesar de replicar ipsis litteris diversos trechos do parecer do CFM.

O fato de manter válido um parecer há muito defasado do ponto de vista científico demonstra o quanto o CFM contribuiu para politizar a hidroxicloroquina.

A começar pelo fato de que o parecer 4/2020 foi divulgado por Mauro Luiz Britto Ribeiro, presidente do CFM, em reunião com o presidente Jair Bolsonaro. Em janeiro desde ano, Bolsonaro elogiou-o por publicar um artigo crítico aos especialistas que questionavam a insistência na promoção do medicamento sem eficácia e pelo fato de o conselho ter mantido a vigência do parecer.

Ribeiro usou o gasto argumento da "autonomia médica" para dar sobrevida o parecer. Mas o que se tem visto em episódios como o escândalo envolvendo o plano de saúde Prevent Senior, entre outros, é o contrário: uma violação da autonomia médica por meio da pressão para que remédios ineficazes ou sem comprovação sejam receitados.

Quanto mais o tempo passa, mais obsoleto fica o posicionamento do CFM em relação à hidroxicloroquina. Nem o Ministério da Saúde parece disposto a insistir nisso.

Sobrou apenas o temor de contrariar o presidente da República, tão apegado à bala mágica da hidroxicloroquina que recentemente insinuou que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que já disse publicamente que o medicamento não funciona, teria "afinado" e recorrido à droga.

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