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Trump no hospital
Sean Conley, chefe da equipe de médicos que atende o presidente Donald Trump, em entrevista coletiva sobre a saúde do presidente em 4 de outubro de 2020.| Foto: Brendan Smialowski/AFP

Aconteceu. Depois de meses negligenciando os perigos do novo coronavírus para a saúde pública nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump foi contaminado a poucas semanas do fim das eleições presidenciais no país. Com Trump no hospital com covid-19, resta esperar que ele se recupere logo e saia dessa com uma postura diferente em relação à pandemia. Infelizmente, a falta de transparência e as informações desencontradas sobre o seu estado de saúde não apontam para uma atitude diferente. Ao contrário, indicam que Trump quer fazer crer que a situação é menos preocupante do que a realidade.

Houve confusão em relação à data em que o diagnóstico foi feito e se Trump precisou ou não de oxigênio suplementar. Inicialmente, sua equipe não queria admitir que ele havia sido medicado com remdesivir, antiviral normalmente receitado para pacientes em estados graves da doença.

Em coletiva de imprensa neste domingo, o médico do presidente, Sean Conley, afinal admitiu que a saturação de oxigênio no sangue de Trump caiu em duas ocasiões — mas tentou omitir de quanto havia sido a queda. Perguntado se a saturação havia ficado abaixo de 90%, Conley primeiro evitou responder, para só depois de pressionado afirmar que não havia chegado próximo de 80%.

A tentativa do próprio Trump de provar que estava bem e trabalhando intensamente levou ao descrédito quando se percebeu que, em uma das fotos divulgadas pela Casa Branca, ele aparecia assinando o nome no meio de uma folha em branco, dando razão para acreditar que a cena não passava disso mesmo: uma encenação.

Qual motivação Trump e sua equipe teriam para esconder a realidade sobre seu estado de saúde? Ele não é o primeiro nem o único americano a enfrentar os efeitos agressivos da covid-19: 7,4 milhões já se contaminaram, dos quais mais de 209.000 morreram. Se a preocupação é o impacto eleitoral do doença, sua luta contra ela poderia, em tese, conectá-lo aos cidadãos por meio do sentimento de empatia.

O problema é que Trump passou toda a campanha tentando desviar do tema da pandemia. Se ele tivesse tido apenas sintomas leves, como ocorreu com o presidente Jair Bolsonaro, poderia usar a quarentena para evitar os próximos debates com o adversário democrata Joe Biden (cuja vantagem sobre Trump na pesquisa de intenção de voto do jornal The Wall Street Journal, que não pode ser acusado de ser pró-democrata, dobrou depois do último confronto entre os dois, na terça-feira passada) e para provar, com o exemplo pessoal, que o vírus não é tão perigoso assim, como sempre vinha dizendo.

Trump no hospital com covid-19, porém, é um fato que consolida a pandemia no centro do debate nacional e destrói a narrativa presidencial de negar sua gravidade.

O secretismo em relação ao verdadeiro estado de saúde de Trump apenas agrava o quadro de incerteza que se impõe às eleições americanas, a se realizarem no dia 3 de novembro. Há dois cenários possíveis, e mesmo o mais otimista dele é marcado pela confusão.

O cenário otimista é o da pronta recuperação de Trump. Nesse cenário, apesar dos contratempos que levaram à internação de Trump no hospital com covid-19, o presidente volta à campanha em condições de desfrutar as últimas duas semanas de atividades antes da votação.

Depois de tudo o que ocorreu nos últimos dias, porém, será difícil convencer o eleitorado de que ele estava certo na sua abordagem para a pandemia nos últimos meses. Trump teria que ser favorecido por um fato inteiramente novo para conseguir mudar o foco da campanha.

Há quem tema que ele possa tentar alguma manobra para adiar as eleições, usando a doença como argumento, mas a possibilidade é remota pois uma mudança de data teria de ser aprovada pelo congresso americano, onde os democratas têm a maioria dos deputados.

No segundo cenário, se a doença se agravar ou se Trump tiver de enfrentar as sequelas da covid-19 até o dia das eleições, a complicação será ainda maior. A maioria das cédulas já foi impressa e 2,6 milhões de eleitores já votaram por antecipação e muitos outros o farão nas próximas semanas, enviando seus votos por correio — um processo cuja credibilidade é contestada por Trump.

Nesse cenário, se Trump, mesmo doente, continuar na disputa, seus eleitores enfrentarão a incerteza de escolher um candidato que eles não sabem se poderá exercer o cargo. Se, por outro lado, ele tiver de se retirar da corrida presidencial por motivos de saúde, o Partido Republicano precisará escolher rapidamente um substituto — provavelmente o atual candidato a vice, Mike Pence.

Nunca, na história americana, aconteceu algo parecido. O impacto para os ritos democráticos americanos não seria desprezível: primeiro, porque Pence não foi escolhido candidato pelo processo normal das prévias republicanas; segundo, porque ele não teve o mesmo tempo que Biden para ser submetido aos escrutínio dos eleitores como candidato oficial; e, terceiro, porque em muitos estados não haveria tempo hábil para trocar o nome nas cédulas (os eleitores teriam de marcar o de Trump para votar em Pence ou escrever o nome do novo candidato por cima do antigo).

Um pouco, só um pouco, menos confusa resultaria a possibilidade de Trump sofrer depois de 3 de novembro complicações da covid-19 que impeçam a confirmação da sua vitória. Pelo sistema de voto indireto dos Estados Unidos, caso isso ocorra, o mais provável é que o Colégio Eleitoral escolha o candidato substituto indicado pelo Partido Republicano. Se Trump já tiver sido declarado vencedor, porém, seu vice teria de assumir — mas não se deve descartar a possibilidade de que o congresso precise intervir para referendar a decisão de quem assumirá o cargo político mais poderoso do mundo.

Trump no hospital com covid-19 não é uma situação trivial. Está em jogo sua saúde, mas também os rumos do poder nos Estados Unidos.

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