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(Imagem: Antonio More/Gazeta do Povo)
(Imagem: Antonio More/Gazeta do Povo)| Foto:
(Imagem: Antonio More/Gazeta do Povo)

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Que fique aqui lavrado – prefiro uma aula mais ou menos ao improviso, essa arte dos sortudos e malabaristas. Lecionar “na louca”, como se dizia, provoca uma sensação estranha na espinha, se é para sentir calafrios, que seja na montanha russa. Mas convenhamos – nem uma, nem duas vezes aquele encontro educacional que tinha tudo para dar errado vira um dos melhores momentos. Vá entender.

Certa vez comentei aqui uma matéria publicada na revista Superinteressante – chamava-se “O maldito powerpoint”, ou algo assim. Se bem me lembro, entre outras, falava da dependência que os professores sentem dos slides e seus truques. Esquecer o pendrive em casa ou não preparar a apresentação pode equivaler a sentir vertigens na escada rolante. Maldito powerpoint, sem ele, sem chão.

Mas seria injusto culpá-lo das aulas enfadonhas e previsíveis – como um dia fizemos ao nos referirmos às aulas expositivas, calçadas no uso da lousa, giz e de uma ameaçadora varinha. Até porque uma aula expositiva – com giz ou com projeção, não importa – podem ser o melhor remédio. Meses atrás, uma assistente social – ex-moradora de uma ocupação irregular e hoje pesquisadora na Alemanha – confidenciou que a dobra de sua vida se deu numa aula bem convencional, assistida na PUCPR, debaixo da batuta do professor Bortolo Valle. Em resumo, é relativo.

Daí a tese de que certas aulas “acontecem”, para além dos nossos planejamentos, embora seja desaconselhável descartá-los. Ouvi isso de uma pedagoga. Dizia que se ao longo da profissão déssemos uma aula boa que fosse, nossa carreira teria valido a pena. Confesso que achei um pouco exagerado, mas é fato é que podemos contar nos dedos as vezes em que saímos da classe com a alegria plena de quem viajou de balão na Capadócia.

É uma experiência boa que a pedagogia não basta para explicar. Melhor recorrer a todas as ciências humanas e às ciências humanas aplicadas, somando também a astrologia, de modo a entender a conjunção astral que fazem com que discurso, vontade, conteúdo, bem estar, estado de espírito e tudo mais, às vezes, corram sobre trilhos, levando-nos ao melhor dos mundos, o aprendizado azeitado de prazer. Algumas hipóteses.

Na minha mocidade cursei faculdade de Belas Artes. Brincávamos dizendo que na “Belas” sempre faltava alguma coisa. Se tinha luz não tinha água. Se tinha professor, não tinha aula naquele dia – por causa de um recesso maluco qualquer. Aberto um ateliê novo, faltava modelo e barro. Mas quando dava tudo certo, uau, aquelas aulas em círculo, com todos falando sobre arte, compensava cada minuto de penúria. Acontecia.

De outra feita, noutro curso, tive um professor brilhante, expert na obra de Antonio Candido, que desossava com perícia. Colocava os alunos em roda e seguia filosofando sobre o texto, sem metas, métodos ou qualquer outra recomendação do mundo corporativo. Ia até onde dava. No dia seguinte, atirava-se de novo do precipício, num exercício de eterno retorno. Nunca se levantava para ir ao quadro – e todos supúnhamos que sua perna dobrada embaixo do quadril devia ficar formigando. Fazia longas pausas, uma agonia, como se esperasse um dowload que custava a concluir. Raramente era simpático. Mesmo assim, acontecia. Penso que seu segredo – ou a ausência dele – é que construía um raciocínio elaborado de forma lenta, tornando-nos parte daquilo que pensava. Ao final, quando chegava a amarrações brilhantes, era como se fôssemos parte daquela criação. Podemos chamá-lo de mestre paradidático.

De modo que toda aula boa e “acontecida”, por mais que pareça uma predestinada, um fruto do acaso, não é uma ilha, mas o ápice de uma série das tais aulas mais ou menos, nas quais carregamos pedras, quais penitentes de missões. Algo é grande porque uma série de pequenezas assim o fizeram. O desejo alimentado por uma aula inesquecível numa escola de Belas Artes nascia da centena de vezes com que a ensaiávamos, em ocasiões menos felizes.

Do contrário, estaríamos falando em mágica e milagre, questiúnculas sujeitas a lupa quando se trata da educação. Melhor falar em epifania, que exige mais pé no chão e é tão encantadora quanto. Aquela aula que acontece tem de ser mesmo de vez em quando, de modo a iluminar todas as outras. Do contrário, estaríamos num circo, e não numa escola. Além do mais, iria nos faltar memória para guardar tantas aulas incríveis, lecionadas por professoras maravilhosas e seus alunos extraordinários. Overdose, não é recomendado.

>> José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná – UFPR. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.

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