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Humor e ironia são armadilhas para quem lê mal a mídia
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Em pleno setembro amarelo, que representa um alerta máximo na prevenção de suicídio, a BBC (British Broadcast Television), serviço público de comunicação britânico, surpreendeu o mundo com um achado que alavancou o humor a uma posição jamais imaginada: a de salvador de vidas durante a Segunda Guerra Mundial. Foram encontradas gravações de programastes de rádio datados de 1940, do serviço em alemão da emissora, destinadas a germanófonos que não apoiavam Hitler, mas viviam no Eixo ou exilados em outras países. O objetivo era debochar de Hitler e trazer esperança aos aliados.

A experiência ousada, de esquetes bem-humoradas, chamada Die Briefe des Gefreiten Adolf Hirnschal (algo como As cartas do soldado Adolf Hirnschal), chegou a toda a Europa, mas tinha que ser escutada clandestinamente. O que surpreendeu a emissora recentemente foi a enxurrada de mensagens de pessoas que disseram ter desistido do suicídio, ou retomado o fôlego perdido, depois de escutarem ao programa à época; eram tempos sombrios que pareciam não ter fim. Não havia pesquisa sobre o alcance dessa experiência até então; utilizar o humor contra Hitler não era uma ideia bem aceita por todos (até hoje, inclusive).

O fato é que identificar o humor na comunicação pode não ser dos processos mais simples. Uma sátira, pastiche ou paródia pode resultar em desastre se a interlocução se resumir a uma leitura meramente verbal ou superficial da mensagem. O caso da ironia, que é uma figura de linguagem que tem como ideia comunicar algo e, na verdade, significar exatamente o contrário do que foi dito, é ainda mais perigoso. Além disso, peças com humor ou ironia caminham mais delicadamente sobre a linha tênue do politicamente correto e da provocação.

Um exemplo simples de quando falhamos drasticamente é quando pretendemos ser engraçados ou irônicos no Whatsapp. Um texto curto, escrito às pressas, lido ainda mais rapidamente, não dá conta de cumprir essa função. Muitas vezes podemos desagradar a quem estamos escrevendo.

O domínio da língua e a educação midiática tornam-se fundamentais para que o humor não perca a graça e, por consequência, a função. Requer da audiência habilidades para uma análise mais completa e profunda, para compreender que está sendo provocada a rir, e não a concordar ou aceitar de pronto o que é comunicado. O papel da educação midiática em tempos de enxurrada de informação que vivemos – bem-humoradas, bem-intencionadas ou não - se faz ainda mais fundamental. Somente uma audiência bem preparada pode distinguir as nuances mais sofisticadas da linguagem.

Por isso o feito da BBC se torna inda mais notável - a batalha de informação foi central na Segunda Guerra Mundial, quando os lados mentiam e tornava-se muito difícil separar a realidade da mera invenção.

Mais recentemente, nos anos de 1980, o tabloide popularesco Notícias Populares era o jornal mais lido do Brasil. O conteúdo beirava a ficção: “Bebê-diabo nasce no ABC” foi uma das manchetes ostentadas na sua capa. Entretanto, o riso não era o que o jornal mais provocava a todos naquele tempo. O que poderia ser um produto de humor, ampliava ainda mais o abismo entre os bem-informados e os que permaneciam nas trevas.

Por custar muito barato, era mais consumido pela parcela da população menos escolarizada, que fazia do tabloide sua principal fonte de informação. O NP, como era chamado, foi tese de inúmeros estudos acadêmicos que o posicionou menos como um veículo de humor, e mais como uma ferramenta de desinformação. Quem tinha dinheiro preferia comprar um jornal ou revista de credibilidade e julgava o NP como um produto de categoria inferior.

Quase trinta anos depois, a educação pública brasileira tornou-se mais abrangente; da mesma forma, mesmo que involuntariamente, a expansão das mídias acabou por tornar experiências como as do NP mais claras para os consumidores. É difícil alguém acreditar, nos tempos atuais, que “O Sensacionalista” é um veículo sério, e não uma paródia sobre as notícias, por exemplo.

Entretanto, o risco ainda é grande quando esbarramos nas sutilezas; distinguir paródias e ironias de textos sérios pode ser um exercício complexo quando esbarramos em peças menos caricaturais e textos mais densos. O currículo de educação midiática da UNESCO e a proposta do Educamídia explicitam a necessidade de se desenvolver na escola as habilidades para se navegar com segurança por gêneros de comunicação que podem ter nuances sutis de humor e ironia. É importante reconhecê-los e deixar as características mais explícitas.

Numa propagação exponencial de opiniões como a que ocorre nas redes sociais, uma única má interpretação de mensagem pode se tornar uma bola de neve capaz de influenciar situações reais e denegrir pessoas ou instituições. Há pelo menos dez anos, uma fotomontagem explícita de um suposto turista fotografado no World Trade Center, com um dos aviões ao fundo prestes a se chocar contra o edifício, passou de um “meme” caricato e engraçadinho a manchete de alguns jornais que não souberam identificar a peça como uma brincadeira de gosto discutível. Quem acabou vítima e chacota foram os veículos que levaram a piada a sério.

*Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador. Atualmente é diretor da consultoria ZeitGeist e membro diretivo da aliança GAPMIL, de educação para a mídia da UNESCO/ Paris. É membro do Conselho Consultivo do Programa Educamídia (Instituto Palavra Aberta e Google) e do Conselho Científico da Revista Comunicar (Universidade de Huelva, Espanha). É autor de livros, dentre eles "Idade Mídia - A Comunicação Reinventada na Escola" (Editora Aleph). Mais informações:  alexandresayad.com. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.

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