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Mercados de Glendale, no Arizona, sofre com a falta de papel higiênico e papel toalha. Americanos estão estocando suprimentos por conta do coronavírus.
Mercados de Glendale, no Arizona, sofre com a falta de papel higiênico e papel toalha. Americanos estão estocando suprimentos por conta do coronavírus.| Foto: AFP

Boa parte de meus amigos (e mesmo alguns colegas da faculdade) não tem clareza de visão a propósito do que vem a ser o Direito Econômico. Muitos o associam ao Financeiro, alguns o submetem à economia, ao passo que outros tantos não o dissociam do Direito Administrativo. Há quem pense que é radicalmente liberal, em contrapartida à sua associação a um socialismo dissimulado.

Nada de estranho quanto a isso – e é natural que aconteça quando nossa formação não contou com a disciplina. Isso se passou comigo e com os que me antecederam, inclusive em outras matérias. Quando estudei Direito Administrativo e Tributário na graduação, as primeiras aulas serviam à defesa da autonomia dessas disciplinas, no esforço de emancipá-las. Ao cursar o mestrado, no fim da década de 1980, ouvi mais de uma vez que o Direito Ambiental não existiria, pois seria mero capítulo do Administrativo (haja megalomania!).

Mas fato é que os cães ladram e a caravana passa: a cegueira autoinfligida não impede a mutação das demandas sociais e a geração de disciplinas jurídicas que as compreendam e nos auxiliem a promover a paz e o desenvolvimento. Dispomos do Direito Econômico, está ao alcance das nossas mãos e pode nos ajudar a vencer a crise que se avizinha. Ele sabe se comportar à altura dessa ordem de fenômenos. Possui velocidade, dinamismo e intensa capacidade de adaptação. Logo, talvez seja a disciplina jurídica com maior aptidão para lidar com crises econômicas.

São exatamente as situações de crise que questionam o papel desempenhado pelo Estado na economia

Mas por que associar o Direito Econômico às crises? Em primeiro lugar, devido ao fato de que ele nasceu em ambientes de aguda instabilidade socioeconômica e lá foi posto à prova. Em termos mundiais, foram a Constituição mexicana de 1917 e a alemã de 1919 que deram início à positivação de direitos, deveres e competência até então excluídos da ordem jurídica: função social da propriedade; direitos dos trabalhadores; direitos sociais e correlatas competências públicas; uso e abuso do poder econômico; soberania econômica; garantia da livre concorrência etc.

No caso brasileiro, foi a Constituição de 1934 a inaugurar o capítulo concentrador de preocupações jurídico-econômicas, e, desde a década de 1990, elas vêm ganhando corpo em todos os níveis normativos. Basta pensarmos nas agências reguladoras e sua capacidade normativa de conjuntura, ou na mutabilidade dos contratos administrativos de longo prazo. O Direito a se sentar à mesa com a Economia, a fim de tentar compreendê-la e assim prescrever condutas que melhorem a convivência social.

Dispomos, portanto, de mais de 100 anos de história das Constituições Econômicas e de seu arsenal normativo para combater situações de crise que possam afetar o exercício (e mesmo a sobrevivência) de direitos fundamentais. Ao constituir o Estado com diretrizes econômicas, a Constituição estabelece como ele deve se comportar em momentos de abalos e desafios agudos. Define quais são os instrumentos normativos – constitucionais e legais; regulamentares e contratuais – que podem ser utilizados para garantir, por um lado, o exercício da liberdade econômica, e, por outro, a fruição dos direitos sociais (especialmente pelos menos favorecidos).

Se pensarmos bem, são exatamente as situações de crise que questionam o papel desempenhado pelo Estado – leia-se todos os poderes públicos – na economia. Essa é uma das mais importantes perguntas dos dias de hoje, como comprova recente matéria de destaque do jornal Folha de S.Paulo, que joga luzes na seguinte pergunta: qual papel deve o Estado desempenhar na economia? A resposta, qualquer que seja, depende de algo fundamental: o respeito à Ordem Econômica Constitucional e ao Estado de Direito.

Estamos, sem favor algum, diante de momento que colocará tais premissas à prova. A Constituição brasileira determina que o Estado se abstenha ou que aja economicamente? Precisa esperar o longo prazo, mesmo em situações extremas? Quais comportamentos econômicos podem os poderes públicos adotar? Que papel é reservado aos tributos e empréstimos públicos? Deve o Estado inibir ou estimular as atividades econômicas – inclusive quanto a preços e oferta de bens e serviços? Do que ele dispõe para garantir as liberdades econômicas? Como deve conviver com a administração de recursos escassos, custos de oportunidade e respectivos usos (e abusos) do poder econômico – sobretudo em momentos de crise global?

Afinal, situações de crise são campo fértil para condutas oportunistas de agentes econômicos – muitas das quais podem, em tese, concretizar abuso de poder econômico. Por exemplo, foi divulgada a notícia de que o álcool gel e as máscaras de proteção tiveram seu preço aumentado em 161% nos mercados brasileiros. É o caso de tabelar tais produtos, tal como fez a França, que experimentou aumento de 700% nos preços? Quando o poder econômico se torna abusivo e se o Estado deve agir – tais temas são próprios do Direito Econômico.

O momento é de solidariedade social, a revelar o que de melhor existe na cidadania

Mais: como ficam as licitações, os contratos administrativos de longo prazo (como as concessões e PPPs) e seu equilíbrio econômico-financeiro? Em Portugal, já existem medidas normativas a respeito, bem como cogitações acadêmicas de relevo. Bastam dois exemplos: os efeitos do coronavírus podem configurar caso fortuito ou força maior? Em todos os contratos? Autorizam contratações emergenciais, sob regime extraordinário? Caso positivo, limitadas a serviços de saúde? Algumas das respostas estão nos textos do professor Miguel Assis Raimundo (da Universidade de Lisboa) e da professora Raquel Carvalho (da Universidade Católica do Porto). Precisamos nos dedicar à compreensão do que se passa além-mar e nos esforçar para criar outras tantas soluções.

É necessário, se não imprescindível, que nos conscientizemos de que a economia brasileira sofrerá o impacto da pandemia do coronavírus. Ainda não sabemos o grau do abalo, mas ele virá. Não se trata de algo que justifique o pânico, mas ao contrário: demanda conscientização e responsabilidade. Exige antecipação de cenários e medidas proativas. Cruzar os braços e imaginar que se trata de uma bobagem, ignorando os protocolos de saúde pública, é o pior a se fazer. O Direito Econômico nos fornece a possibilidade de criarmos soluções. Afinal, o momento é de solidariedade social, a revelar o que de melhor existe na cidadania: a união dos indivíduos em busca do interesse público.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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