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Direitos fundamentais para humanos digitais
| Foto: Pixabay

Muito se tem escrito a propósito de direitos humanos, direitos fundamentais e direitos humanos fundamentais na era digital. Todavia, normalmente são teses que retratam a colisão entre direitos, seu uso e abuso nos mundos digitais. Os mesmos direitos fundamentais, outrora analógicos, postos diante de desafios virtuais.

Ao que me parece, o que aqui se discute não são propriamente outras gerações, mas sim novas formas de tráfego de direitos fundamentais (igualdade, liberdade, intimidade, propriedade, informação, comunicação, etc.). Estes persistem os mesmos, submetidos a outros meios de exercício, agressão e proteção. Já existe uma minuta da Carta dos Direitos Digitais da União Europeia, que retrata algumas dessas preocupações e amplia o sentido dos direitos fundamentais para o mundo digital.

Mas o que pretendo tratar neste brevíssimo ensaio são direitos fundamentais de nossas personas digitais: aqueles que o ser humano experimenta em decorrência de sua mutação em pixels, métricas digitais, dados e perfis digitais. Não estou a enxergar, portanto, a pessoa como um ser de carne e osso (nem em sua dimensão espiritual ou de pensamento), mas sim quando ela se transforma (ou é transformada) em informações digitalizadas e, assim, assume nova dimensão existencial. Somos números que, submetidos a algoritmos, configuram a(s) nossa(s) presença(s) no universo digital e fazem com que sejamos (ou deixemos de ser) algo ou alguém. A persona digital, que transcende a natural.

Será que essa nova configuração da raça humana – um ser digital que desconhece a si próprio e, também em razão dessa ignorância existencial, precisa de proteção diferenciada – faz nascer correspondentes direitos fundamentais? Tornamo-nos o alter digital, que é mais do que nós mesmos? Ou estou a tratar de decorrências de informações conaturais, dos números que também somos? Seriam tais características fundamentais ao ser humano, tanto aos que surgiram quanto aos que se tornaram digitais? Enfim, a nossa persona digital merece consideração e proteção autônomas, na condição de direito fundamental do ser humano digitalizado?

Minha persona digital tem autonomia diferenciada e merece ser protegida de métricas que desconhece

Pensemos um pouco mais a fundo. Bem vistas as coisas, já existem duas formas de a pessoa ser, ter e exercitar direitos inerentes à condição humana. Por um lado, o modo analógico: a vida real em nossa interação conosco, com os demais sujeitos e o meio ambiente sensível. O sujeito a coabitar sociedades artificiais, por si criadas para tentar domar a natureza. Nós pensamos, conversamos e pretendemos nos fazer conhecer e reconhecer. Vemos, ouvimos e sentimos cheiros e sabores. Este é o mundo, digamos assim, newtoniano, onde maçãs caem nas nossas cabeças e geram reações físicas.

Por outro lado, existe o universo digital, onde ingressamos mesmo sem saber e nos submetemos a desconhecidas interações, avaliações e configurações. Tornamo-nos outros, por meio de programas que dizem o que somos e quem é nossa persona digital. Usufruímos e, subliminarmente, tornamo-nos seres/produtos virtuais. Basta um telefone celular ou um cartão de crédito, para que os dados sejam compartilhados.

Essa mutação envolve a constante e aberta disponibilização de nós mesmos, versão digital. Lá, nem sempre nos vemos, ouvimos ou sentimos. De seres humanos físicos, que procuram se entender intimamente em exercícios de auto-compreensão, alteramo-nos para um conjunto imponderável de dados que desconhece a si próprio. Integramo-nos no big data universal – a natureza indomada – e temos nossas individualidades reconstruídas. Deixamos de ser quem conseguimos imaginar e nos transformamos em quem os algoritmos dizem que somos.

A soberania do indivíduo e da autonomia da vontade não existem quando ele migra (ou é migrado) para o ambiente digital, eis que as liberdades são reconfiguradas. Lá – ou, melhor: aqui, neste exato instante em que você lê este texto – sofremos mutações e nos submetemos a métricas que definem nossa existência e o que desejamos. Nos é dada outra personalidade. Somos vistos por olhos digitais e examinados por algoritmos, que constroem nossa identidade à margem da consciência individual. A nossa persona digital é oferecida àqueles que pretendem nos transformar ainda mais, que definem o que queremos comprar, votar, como ser felizes e com quem conversar. Existe previsão, monitoramento e controle dos seres humanos digitais – que, sublinhe-se, são distintos dos reais.

A provocação que desejo fazer é a seguinte: tais conjuntos de dados e métricas merecem conhecimento e proteção pautada em si mesmos? Possuem dignidade existencial? Os dados em que nos transformamos instalam novos direitos fundamentais, a protegê-los e blindá-los? Enfim, eu defendo que minha persona digital tem autonomia diferenciada e merece ser protegida de métricas que desconhece. Ela não pode ser apresentada aos outros – mesmo sem nome – sem saber quem é e quais são seus interlocutores. Sua personalidade digital não pode ser construída por terceiros anônimos. A persona digital é a titular da nova dimensão de direitos fundamentais: o ser humano, quando se digitaliza, merece proteção nessa condição.

Em 1968, o genial Philip K. Dick escreveu seu Do androids dream of eletric sheeps, sobre robôs construídos com material orgânico semelhante ao nosso, destinados à migração e trabalhos para preservação da raça humana. Todavia, como fica claro em Blade Runner, que se passa no futuro distópico de 2019!, em determinado instante eles constatam que morrerão jovens. Voltam ilegalmente para a terra, a fim de conhecer o criador e fazer com que sua vida seja preservada. O enredo diz respeito a androides-replicantes clamando pelo mais humano dos direitos fundamentais: a preservação da vida. São robôs à busca de seus direitos fundamentais – inclusive a memória, como na última frase dita pelo replicante mais intenso do filme.

Hoje, o caminho é inverso. Os seres humanos foram transformados em personas digitais, com material orgânico semelhante ao contido na mente dos replicantes. Precisam clamar, nessa condição virtual, pelos correspondentes direitos fundamentais para humanos digitais.

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