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Manifestantes percorreram as ruas e terminaram o protesto em frente ao Palacio Iguacu, em 20 de junho de 2013.
Manifestantes percorreram as ruas e terminaram o protesto em frente ao Palacio Iguacu, em 20 de junho de 2013.| Foto: Henry Milleo/Agência de Notícias Gazeta do Povo

Um dos temas que me mais fascinam é a relação entre direito administrativo e democracia, tanto em termos estáticos (o princípio da legalidade) quanto dinâmicos (o processo administrativo). Contudo, esse fascínio é tormentoso. Muito bonito nesses dois aspectos, tem sido posto à prova pela inquietude que compartilho ao final. Antes, apreciemos a beleza.

No primeiro ponto de vista está a visão romântica de que a lei advém dos representantes do povo, unidos pela cidadania e pautados pelo civismo, que positivam relações entre a administração pública (o Estado-Administração) e os cidadãos (os habitantes daquele Estado). Ideias que subjazem ao “governo de leis”, distinto do  “de homens”.

O segundo ângulo descreve a dinâmica dessas relações. Traz luz à vida entre pessoas privadas e administração pública. Revela a efetividade da primeira (o indivíduo a impedir o Estado de imiscuir-se em seus direitos), segunda (o sujeito de direitos sociais a exigir sua prestação) e terceira dimensão de direitos fundamentais (as pessoas a construir normas gerais e abstratas, nas consultas e audiências públicas). O governo das leis a realizar direitos.

Quanto de tributação precisamos para as instituições? Ainda podemos cerzir cidadania futura, democracia e impostos? Ou isso já não mais existe?

“A administração posta em movimento pela lei”, na célebre definição de Fritz Fleiner, conjugada com a visão rousseauniana de que a lei exprime a “vontade geral”, justificam o bem-estar com a legalidade e seus laços com a democracia. Todavia, ao menos nos meus sapatos, hoje a sensação é a de um conforto bastante desconfortável. A estranheza se deu em três momentos, o terceiro agravado por um bom amigo (afinal, para que servem os amigos?).

Apesar de difíceis, os dois primeiros desconfortos são mais fáceis. Inicialmente, as jornadas de 2013. Movimentos inéditos e difusos, sem temática precisa, que se parecem e são diferentes daqueles do resto do mundo. Apartidários e antipartidários, são manifestações colossais desvinculadas de políticos e mesmo contrárias a eles (quaisquer que sejam). Ninguém nos representa nem pode representar, portanto. O que está nas ruas não está nas leis, impostas por estranhos que nos desconhecem e não entendem a(s) vontade(s) geral(is).

O segundo incômodo nasceu com a leitura de textos que erodem a ideia de cidadania, ao dissociar os tributos da solidariedade social. Aqueles se tornaram custos sem razão de ser, deveres injustificáveis. Foi Michel Bouvier quem mais li. O seu “Impostos sem cidadãos?" sintetiza tais preocupações, ao descrever o  enorme mal-estar oriundo da tributação, combinado com exigências de cidadania-consumista (quais serviços recebo em contrapartida?). Nesse cenário, como pensar em consentimento e justiça tributária? Quanto de tributação precisamos para as instituições? Ainda podemos cerzir cidadania futura, democracia e impostos? Ou isso já não mais existe?

O terceiro desalento – mais impactante, sublinhe-se – veio do verdadeiro Lauro Antonio Soares Nogueira Junior. Ele me presenteou com o ensaio “Democracia de rejeição”, de Ivan Krastev. Luminoso ao explicar os movimentos ativistas de rua, dá um passo avante e atinge em cheio os dois desconfortos acima. Afinal, hoje a soberania popular afirma-se “como o poder de recusar” e “organizar a suspeita dentro de um mar de desconfiança” (Rosanvallon).

As eleições na democracia de rejeição revelam julgamentos sobre o passado, não apostas no futuro. As urnas demonstram o repúdio. Os votos deixam de acolher, pois só 20% ou 30% dos eleitores “de verdade” bastam para decidir o Executivo, que deixa de fazer maioria no Legislativo. A representação política não dá conta das clivagens sociais que, de tão difusas, não são espelhadas nos modelos vigentes (leis, instituições etc.). Daí governos com pautas legislativas montanha-russa, que não podem parar de correr e girar (no caso brasileiro, incessantes emendas constitucionais, medidas provisórias e decretos, para todos os gostos).

Vivemos num mundo político onde a ideia de futuro perdeu consistência. Em decorrência, as leis são precárias. Dirigem-se ao vazio

Logo, não há mais eleições que cogitem de políticas públicas de longo prazo – nas quais eu incluo a lei e o funcionamento da administração pública –, mas apenas a seleção, contínua e randômica, de “gestores do presente”. Caso deles não gostemos, são processados (inclusive, por meio do impeachment). As demandas políticas escoam em organizações não governamentais, grupos de WhatsApp e protestos de rua. “Na nova era democrática, a política eleitoral não vai mais ocupar o lugar de honra”, sentenciou Krastev.

Vivemos num mundo político onde a ideia de futuro perdeu consistência. Em decorrência, as leis são precárias. Dirigem-se ao vazio. O governo das leis deixou de se entender com as demandas populares. O princípio da legalidade não expressa a nobreza de espírito justificadora e a administração movimenta-se dissociada da “vontade geral”. Daí a pergunta que me angustia: faz algum sentido permanecermos a associar o direito administrativo à democracia?

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