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Sergio Moro e Jair Bolsonaro, em reunião em fevereiro de 2020
Sergio Moro e Jair Bolsonaro, em reunião em fevereiro de 2020| Foto: Marcos Correa / PR

Comecemos pelo dever de revelação: fui colega de faculdade e sou amigo do advogado que defende o ex-ministro no caso. Não nos frequentamos, exceção feita a eventos acadêmicos ou OAB, nem temos clientes comuns. Tampouco me relaciono com o ex-ministro, que também conheci na faculdade. Mais: boa parte do que vocês vão ler eu escrevi há mais de dez anos, num livrinho sobre processo administrativo. Por fim, mas não menos importante: não sou filiado, nem sequer simpatizo, com qualquer partido político. Tenho por guia o alerta de Tony Judt: “Hoje, fora da Universidade de Nova York, sou visto como um comunista judeu esquerdista e louco que se odeia; dentro da universidade me vêem como um típico elitista branco liberal antiquado.” Meus amigos de esquerda brincam que sou neoliberal; os de direita, um comunista enrustido. Bem melhor assim, porque sigo em frente, bêbado e equilibrista.

Revelação cumprida, vamos ao que interessa: como o princípio da publicidade incidiria (ou não) no caso “vídeo da Presidência”. Afinal, existe imputação penal a um indivíduo que disse publicamente ter ouvido coisas que comprometeriam o exercício da função presidencial. Essas falas teriam sido lançadas numa reunião oficial de Ministros, na presença de terceiros, e estariam registradas em vídeo já entregue ao STF. Hoje, o que se discute é o quanto há de ser trazido à luz: se tudo ou se só o que a AGU escolheu.

O desafio que o caso nos traz é, portanto, o seguinte: mesmo diante do princípio constitucional da publicidade, pode haver atos e fatos praticados pelas autoridades públicas sujeitos a sigilo? A resposta é sim, ma non troppo.

Comecemos pela Constituição, cujo art. 76 estatui que “O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado” que compõem a Presidência (órgão público, estruturado na Lei 13844/2019). Logo, Presidente e Ministros integram a administração pública direta e devem respeito à Constituição.

A atividade administrativa que exercem é pautada pela publicidade, que “significa o dever estatal de divulgação dos atos públicos. Dever eminentemente republicano, porque a gestão da ‘coisa pública’ (República é isso) é de vir a lume com o máximo de transparência” (STF, AgR na SS 3.902, Min. Ayres Britto). Logo, não há restrições absolutas, nem discricionárias, ao dever de divulgação de documentos públicos, tampouco podem existir dados públicos cujo acesso seja exclusivo a determinadas pessoas. A regra é a da ampla transparência, clara e franca, de todos os aspectos da conduta administrativa estatal – inclusive a exercitada pela Presidência da República.

Note-se que a atual Constituição ampliou a positividade do princípio da publicidade. Prescreveu-o expressamente nos arts. 5º, XXXIII, XXXIV, LX e LXXII; 37, caput e § 3º, II; e 93, IX. Jamais a história constitucional brasileira outorgou tamanha magnitude à publicidade. Isso precisa ser levado em conta.

Por outro lado, o tema é também disciplinado na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e regulamentado no Decreto 7.724/2012. De igual modo, são relevantes a Lei 8.159/1991 (arquivos públicos), a Lei 9.051/1995 (certidões para a defesa de direitos) e Decreto 4.073/2002 (regulamenta a Lei 8.159/1991). Todos esses diplomas estatuem o seguinte: a regra é a publicidade; o sigilo é exceção.

O que permite afirmar que a qualidade de “sigilosa” da informação não decorre de livre escolha da autoridade que a produz. Não cabe ao agente público definir, aleatória ou com motivação falha, as informações que pretende divulgar e aquelas a respeito das quais manterá segredo. Nem a Constituição nem a legislação ordinária autorizam atos administrativos que pretendam conferir o atributo de “sigilo” a certas informações públicas com o escopo de evitar desconfortos – pessoais, funcionais e/ou políticos – às autoridades constituídas.

Mesmo porque a Lei de Acesso à Informação confere especial e irrestrita proteção a informações pertinentes à defesa de direitos fundamentais, que não são compartimento isolado dentro da Constituição, mas integram sua unidade. Formam um todo coerente com as outras componentes da “decisão constituinte”. Porque consagrados na Constituição, para sua defesa incide a prescrição do art. 21 da Lei 12.527/2011: “Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais”.

Apesar de a disciplina normativa infraconstitucional não definir a expressão “restrições de acesso” (Lei 12.527/2011, arts. 21 e ss.), vige o dever da informação. Em casos excepcionais poder-se-á rejeitar o pleito – desde que de maneira seriamente fundamentada (sempre passível de controle judicial). Mas essa negativa não pode implicar, jamais, o prejuízo ao exercício de direitos fundamentais (dentre eles, o devido processo legal e a ampla defesa).

Essas são as premissas jurídicas. Mas como elas incidem no caso “vídeo da Presidência”? Levando em conta o que foi divulgado, existiram manifestações impróprias de servidores públicos – tanto em termos de civilidade como no que respeita ao exercício da função pública. Não se tem notícia de segredos de Estado ou de estratégias de governo (que, se existissem, seriam estranhas a reuniões de coletivos de sujeitos e órgãos, gravadas em vídeo). Porém, ainda assim, tal documentação videográfica não esbarraria no direito à intimidade dos participantes da reunião?

O direito à intimidade – como a maioria dos direitos fundamentais – não é absoluto, sobretudo quando o indivíduo que pretende protegê-la é um sujeito público, detentor de cargo estatal. Vamos a outros casos (de homens públicos estranhos à atual Presidência, frise-se), em situações reveladoras de intensa intimidade.

Por exemplo, tenho que não é de interesse público a divulgação de aventuras extraconjugais de autoridades, exceção feita a situações que tenham especial sensibilidade na pessoa com quem a autoridade se relacionou ou onde a atividade ocorreu. Se a relação íntima dessacraliza e desrespeita o local onde deveriam ser exercitadas outras funções que não o adultério (como no caso de um senador brasileiro ou de um presidente estadunidense), a publicidade incide. Não pelas práticas sexuais em si, mas em razão do uso do espaço público para, digamos assim, personificações de sátiros e ninfas. Lembremo-nos de que o Presidente Clinton sofreu processo de impeachment não porque manteve relações íntimas na Casa Branca, mas acusado de perjúrio e obstrução de justiça. Todavia, suas aventuras sexuais foram, sim, tornadas públicas porque cometidas em espaço que não lhe pertencia, mas à República.

Ora, se um coletivo de agentes públicos se reúne em situação e ambiente oficiais, para o exercício de funções inerentes aos cargos, unido ao fato de que não se tem notícia de situações objetivas de sigilo qualificado, não há motivo justo para inibir a incidência plena do princípio da publicidade. O vídeo é público e sua divulgação não pode ser inibida pela vontade dos agentes que dele participam.

Pouco importa se os agentes públicos se expressaram com forma e conteúdo constrangedores, que porventura possam repercutir na relação entre os poderes constituídos ou mesmo com autoridades estrangeiras. A Constituição não acolhe tais situações desconfortáveis como exceção à publicidade. Assim funciona a República. Afinal, e como Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte estadunidense, proclamou no século passado, “diz-se que a luz do sol é o melhor dos desinfetantes; e a luz elétrica o policial mais eficiente”.

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