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Coleção de vídeos faz repensar a obra de Shostakovich
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Sempre tive algum tipo de reserva frente à obra do compositor russo Dimitri Shostakovich (1906-1975) por diversas razões, algumas políticas (seu eterno bate-assopra com o governo soviético) e algumas de ordem musical (muito ligado a idiomas harmônicos e formais clássicos). Resolvi fazer uma imersão em sua obra através de uma coleção de vídeos lançada em Bluray e DVD (Selo Arthaus) com todas as sinfonias e todos os concertos do compositor russo, e fiquei impressionado com a consistência e qualidade de muitas obras, e percebi que, talvez, por culpa de sua Sinfonia mais tocada e mais óbvia, a de número 5, a maior parte do público deixa de conhecer obras imbuídas de uma verdadeira originalidade e genialidade. Ler e acompanhar as gravações munido das partituras das obras possibilitou uma nova visão da obra do autor, e alternando vídeo com partituras, confesso que repensei muita coisa a respeito deste compositor.

Um respeitável ciclo sinfônico: retrato de uma época 

O compositor Dimitri Shostakovich na época da composição da genial Quarta Sinfonia

O extenso ciclo de 15 Sinfonias de Shostakovich se inicia de uma forma surpreendente: sua Sinfonia Nº 1, composta quando o autor tinha apenas 19 anos em 1926, é surpreendente pela maturidade e pela qualidade de sua orquestração, marca que aliás estará presente em todo o ciclo. Depois desta notável obra, aparecem duas sinfonias que são breves, usam um coro junto à orquestra, e que se relacionam às “efemérides” da recente revolução comunista: “Outubro” (Sinfonia Nº 2, de 1927) e “Primeiro de maio” (Sinfonia Nº 3, de 1929). Obras datadas, com os incômodos gritos de “Viva Lênin, salvador da humanidade”, e ruídos imitando fábricas, fazem “muito barulho por nada”, como diria Shakespeare.

É em 1936 que o compositor escreverá sua mais importante sinfonia, a de Nº 4, obra que será proibida e que só será estreada em 1961. Assim como o poeta Maiakovsky, o compositor se achava parte integrante do pensamento revolucionário, mas as guinadas políticas da União Soviética tornaram Shostakovich um compositor proscrito. Assim como sua genial ópera “Lady Macbeth de Mtzensky” a Sinfonia Nº 4 quase lhe custou a própria vida.

O que se segue é o autor cedendo às pressões do regime: a Sinfonia Nº 5, de 1937, é de longe a mais óbvia, e talvez por causa disso a mais popular. As Sinfonias escritas durante a segunda guerra mundial vão da soturna Nº6 (1939), à de ocasião, escrita no cerco de Leningrado (a de Nº 7, de 1941) até à longa e desmedida Nº 8 (de 1943). Para surpresa e consternação geral o final da Grande Guerra, onde mais de 20 milhões de russos morreram, foi comemorada com a sarcástica e irônica Sinfonia Nº 9 (de 1945).

No meu ver a qualidade atingida na Sinfonia Nº 4 só será retomada depois da morte de Stálin na Sinfonia de Nº 10, de 1953, que é uma das obras primas do compositor. Imensa originalidade, muito bem exemplificada no solo de dois picollos no final do sombrio primeiro movimento, no solo de trompa do enigmático terceiro movimento, na assinatura cifrada do próprio compositor em toda a obra. Depois de muita dor, muita opressão, a morte do ditador é comemorada com uma esfuziante alegria no último movimento da obra. Infelizmente a morte de Stálin não arrefeceu a perseguição aos opositores. Talvez por causa disso, glorificando o regime, as Sinfonias de Nº 11 (de 1957) louva o levante de 1905 e a de Nº 12 (de 1961) louva o “glorioso” ano de 1917. Decididamente não são as melhores obras do ciclo.

Já mundialmente reconhecido Shostakovich volta a se rebelar: sua Sinfonia Nº 13 de 1962, que solicita a presença de um coro masculino e um baixo solista, utiliza como texto a poesia “Babi Yar” do poeta Evgeni Evtushenko (que curiosamente conheci em Salvador há uns 25 anos) que relata a perseguição aos judeus, e certos aspectos da revolta frente ao antissemitismo mostra os horrores que viviam todos os opositores. O “Gulag” não era um privilégio dos judeus. Mais uma obra proscrita nos tempos do comunismo. Mas a grande surpresa ainda estava por vir. A mais original e mais avançada das sinfonias de Shostakovich foi escrita em 1969, a de Nº 14. Composta para uma orquestra com poucos instrumentos (cordas, percussão e celesta) é na realidade um ciclo de canções, para soprano e baixo, que se utiliza de poemas de Lorca, Apollinaire, Küchelbecker e Rilke que tratam da inexorável presença da morte. Em muitos momentos da obra há uma ausência de tonalidade e até mesmo series dodecafônicas são usadas. É a mais ousada das partituras do autor. A última, a de Nº 15, soa meio como um anti-clímax, com sua ironia e citações de Rossini e Wagner. Sei que todo o ciclo é, de um jeito ou outro, muito interessante, mas realmente as Sinfonias de Nº 1,4,10,13 e 14 estão, a meu ver, entre as grandes sinfonias do século XX.

Concertos: escrita primorosa

Não vou me ater de forma tão detalhista quanto aos concertos, mas três deles me soam como obras extraordinárias. Em primeiro lugar o Concerto Nº 1 para piano, trompete e cordas, obra de 1933, e que é um retrato fiel da época em que o compositor, para ganhar a vida, atuava como pianista em filmes mudos. Humor com inúmeros desafios ao solista, que na estreia foi o próprio compositor. O Concerto Nº 1 para violino (dedicado a David Oistrakh) de 1948 e o Concerto Nº 1 para violoncelo (dedicado a Mstislav Rostropovitch) , de 1959, possuem qualidades que são indiscutíveis. Tornaram-se obras obrigatórias no repertório destes instrumentos.

O maestro Valery Gergiev

Suprema coleção de vídeos

Aproveito a ocasião e faço uma pequena resenha desta excelente coleção de vídeos, com a qual eu tanto aprendi. As Sinfonias e os Concertos são esmeradamente executados pela Orquestra e pelo coro do Teatro Mairinsky de São Petersburgo dirigidos pelo brilhante e incansável maestro Valery Gergiev (que ironicamente em alguns momentos rege com um palito de dentes), com solistas famosos e excelentes como Vadim Repin (Concerto Nº 1 para violino), Daniil Trifonov (concerto Nº 1 para piano) e Gautier Capuçon  (Concerto Nº 1 para violoncelo) mas também solistas jovens e pouco conhecidos que se revelam grandes surpresas como Alena Baeva (concerto Nº 2 para violino) e Mario Brunello (Concerto Nº 2 para violoncelo). Os solistas vocais nas sinfonias que utilizam voz humana são impressionantes, sobretudo o Baixo Mikhail Petrenko em marcantes leituras das Sinfonias 13 e 14. São execuções gravadas em diversos concertos realizados em Paris, na sala Pleyel, entre 2013 e 2014. Para nós, aqui no Brasil, é uma coleção cara (não sai por menos de 700 reais) mas é inegável a sua qualidade e sua importância.

Post scriptum  

O poeta espanhol Federico García Lorca

Para concluir algumas reflexões, alguns pensamentos. O maestro Gergiev é amigo e apoiador das políticas do presidente da Rússia Vladimir Putin. Ao ouvir as duas primeiras partes da Sinfonia Nº 14 com textos de García Lorca, pensei no que seria do poeta na Rússia de Putin: estaria preso ou perseguido por sua sexualidade. Outra constatação meio incômoda: junto com os concertos existem algumas entrevistas do próprio Shostakovich, feitas pouco antes de sua morte, em que afirma que quem criticava sua obra tinha toda a razão, ele, segundo suas próprias palavras, tinha “passado das medidas”. E dizer que a Sinfonia Nº 4, suprema obra prima, só foi executada 25 anos depois de ser proibida, meio a contragosto do próprio compositor. Vai entender…

 

Vídeo de divulgação do álbum 

 

 

 

 

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