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O papa João Paulo II, em foto de 1979.
O papa João Paulo II, em foto de 1979.| Foto: Thomas J. O'Halloran/Domínio público

Um dos temas mais característicos do longo pontificado de João Paulo II – cujo centenário será celebrado no próximo dia 18 – foi o da cultura da vida. Ele definiu a sua edificação como “uma das finalidades” de seu papado. Este tema ficou bastante associado à expressão que define a defesa da vida, segundo a doutrina católica, “da concepção até a morte natural”, o que evoca duas questões que atentam contra a dignidade da vida humana: o aborto e a eutanásia. De fato, em muitas das vezes em que João Paulo II usou a expressão “cultura da vida”, ele destacou exatamente essas duas questões. Seria, no entanto, extremamente limitado reduzir a concepção de cultura da vida, no magistério de João Paulo II, apenas a um ordenamento jurídico em que o aborto e a eutanásia sejam ilegais.

Uma cultura da vida: será que colhemos seriamente a profundidade dessa expressão? Entendemos que se trata de uma sociedade em que estar atento à dignidade da vida humana seria algo que permeasse, organicamente, a política, o mercado, as religiões, a arte, a academia, o direito, o nosso dia a dia, enfim, todas as esferas de nossa existência? Vislumbramos que, segundo essa visão, pisar na dignidade humana, em qualquer situação e em qualquer medida, seria algo realmente escandaloso, intolerável e raro – que se trata de viver em uma sociedade em que nos surpreenderíamos se soubéssemos que um detento está sofrendo maus tratos ou que uma mulher tem sido violentada pelo marido?

Na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America, João Paulo II elencou como quem sofre devido a uma cultura da morte, ao lado dos nascituros e dos idosos, “os inumeráveis seres humanos postos à margem pelo consumismo e pelo materialismo”. Disse ainda que um modelo de sociedade em que haja espaço para a pena de morte “está baseado na cultura da morte”. Em outra ocasião, o papa polonês classificou como “uma vitória da cultura da vida sobre a cultura da morte” o Tratado de Ottawa, de 1999, que baniu o uso e a produção de minas terrestres antipessoais.

Na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1999, ele foi igualmente claro: ao falar de uma cultura da vida, explicitou que “optar pela vida comporta a rejeição de todas as formas de violência: a violência da pobreza e da fome, que atinge tantos seres humanos; a dos conflitos armados; a violência da criminosa difusão das drogas e do tráfico de armas; a dos danos imprudentemente causados ao ambiente natural”. “Em todas as circunstâncias, o direito à vida deve ser promovido e tutelado com as garantias legais e políticas adequadas, uma vez que nenhuma das ofensas contra o direito à vida, contra a dignidade de qualquer pessoa, é irrelevante”, escreveu João Paulo II, relacionando ainda a cultura da vida a uma necessária “cultura dos direitos humanos”.

A sua encíclica Evangelium vitae trata largamente do aborto e da eutanásia por opção, mas não por desconsiderar outras dimensões de uma autêntica cultura da vida – que João Paulo II cita no início do texto. Se o papa se decide por focar nesses dois assuntos, é sobretudo pelos aspectos novos que parecem envolvê-los (n. 10). Com a sua publicação em 1995, a Evangelium vitae se inscreveu assim em uma constelação de textos de igual importância que expressam outros pontos da doutrina social católica, como a Pacem in terris, de João XXIII, a Populorum progressio, de Paulo VI, e a Laborem exercens e a Centesimus annus, do próprio João Paulo II. Mais tarde se somariam a esses documentos as encíclicas Caritas in veritate, de Bento XVI, e Laudato si’, de Francisco.

Destaco aqui dois pontos da Evangelium vitae que lançam luzes sobre o que significa uma cultura da vida. O papa especifica: “O primeiro e fundamental passo para realizar essa virada cultural consiste na formação da consciência moral acerca do valor incomensurável e inviolável de cada vida humana” (n. 96). Essa virada cultural exigiria ainda “a coragem de assumir um novo estilo de vida que se exprime colocando, no fundamento das decisões concretas – a nível pessoal, familiar, social e internacional –, uma justa escala dos valores: o primado do ser sobre o ter, da pessoa sobre as coisas. Esse novo estilo de vida implica também a passagem da indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa ao seu acolhimento: os outros não são concorrentes de quem temos de nos defender, mas irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; devem ser amados por si mesmos; enriquecem-nos pela sua própria presença” (n. 98).

Acho que o ponto está claro: o combate ao aborto e à eutanásia, por si mesmo, não caracteriza uma cultura da vida. Uma cultura da vida implica uma atmosfera em que se afirme e se promova a dignidade de toda a vida humana – do nascituro, da criança, da mulher, do pobre, do policial, do sem-teto, do negro, do idoso, do político, do deficiente, do detento, do LGBTI, do indígena, do migrante, do umbandista, do evangélico, do desempregado, do professor, do doente terminal e de toda e qualquer pessoa. Quanto mais inspirada no reconhecimento do outro, mais voltada à vida. Quanto mais fundamentada na autoafirmação de mim mesmo, do meu grupo ou da ideologia que prego, mais voltada à morte. Ou, nas palavras de João Paulo II, “o amor inspira a cultura da vida, e o egoísmo, a cultura da morte”.

Uma cultura da vida: será que colhemos seriamente a profundidade dessa expressão?

Em algum momento de 2018, muitas pessoas preocupadas com a dignidade do nascituro acharam que a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República representaria um avanço para a cultura da vida. Um conhecido líder do movimento pró-vida espalhou e-mails dizendo que o voto em Bolsonaro no segundo turno seria “a única opção moralmente boa”. Tudo isso porque, apenas durante a sua campanha – e nunca antes, pelo contrário –, o então deputado federal se declarou contra o aborto. Nada mais na biografia do candidato apontava para isso.

Pelo contrário, ele havia dito que “o crime de extermínio” é “muito bem-vindo”, no contexto de um debate sobre a atuação na Bahia de grupos de policiais e ex-policiais que executavam quem eles consideravam “criminosos”. Sobre o massacre do Carandiru, afirmou que “perdeu-se a oportunidade de matar mil lá dentro”. Disse ainda que o Brasil só chega a uma solução quando houver uma “guerra civil”, “matando uns 30 mil” – “se morrer uns inocentes tudo bem”. Defendeu a tortura e a pena de morte “para qualquer crime premeditado”. Um filho que aparente ser homossexual, segundo ele, precisa “levar um couro” – e é melhor que “morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”.

Bolsonaro nunca se retratou a respeito de nenhuma dessas falas – sem contar as outras centenas de agressividades que ele proferiu em sua infelizmente longa vida pública. E mesmo assim, de alguma forma, viu-se nele um defensor da cultura da vida. Um ano e meio depois de sua eleição à presidência da República, chegamos ao pronunciamento que sintetiza o seu posicionamento: “E daí?” – quando questionado, na terça (28), sobre as mais de 5 mil mortes que o novo coronavírus já causou no país.

Nenhuma surpresa. A postura de Bolsonaro em sua vida pública sempre foi a de desprezar tudo aquilo que ele não pudesse instrumentalizar a seu próprio favor. Em relação à dignidade da vida humana, seu posicionamento sempre foi um imenso “e daí?”, escrito em letras garrafais, piscando em neon. Retomando João Paulo II: “O primeiro e fundamental passo para realizar essa virada cultural consiste na formação da consciência moral acerca do valor incomensurável e inviolável de cada vida humana”.

O projeto político de Bolsonaro nunca teve nada a ensinar sobre essa sensibilidade à preciosidade de cada vida humana, que é a pedra fundamental de uma cultura da vida. Pelo contrário: recorrentemente, de diversas maneiras, a sua postura alimenta uma cultura da morte – uma concepção de desprezo pela vida do outro. Cada vez que Bolsonaro – com a responsabilidade do cargo que tem – abre a boca, um Brasil permeado por uma cultura da vida fica mais distante.

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