O governo Lula está driblando o arcabouço fiscal que ele mesmo inventou. Com a finta, poderá multiplicar os gastos com o Auxílio Gás sem descumprir a meta das contas públicas.
Semana passada, o presidente e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciaram que o auxílio chegará a muito mais gente. É o mesmo governo que dia e noite defende a necessidade de aumentar impostos para equilibrar suas contas.
Hoje 5,6 milhões de famílias têm direito ao vale. Esse número subirá para "mais de 20 milhões" até dezembro de 2025. Com isso, os recursos envolvidos "podem chegar" a R$ 13,6 bilhões "durante o ano de 2026". Em comparação, a verba para 2024 é de R$ 3,4 bilhões.
As expressões entre aspas no parágrafo acima constam de notícias veiculadas pelo Planalto e dão uma ideia da imprecisão da coisa, em termos de datas e valores. Mas, em suma, o que o governo quer é quadruplicar o Auxílio Gás até o ano das eleições presidenciais.
Se você consultar o Orçamento do ano que vem, no entanto, verá que estão reservados apenas R$ 600 milhões para o programa. Quer dizer que o Auxílio Gás será reduzido a menos de um quinto do valor atual, em vez de crescer?
Não. O que vai acontecer é que a maior parte do programa será paga por fora do Orçamento. E isso permitirá multiplicar os valores sem pressionar o limite de gastos do arcabouço fiscal.
Qual o truque?
Vamos por etapas. O projeto de lei assinado pelo ministro Silveira e seu colega Fernando Haddad, da Fazenda, cria uma nova modalidade de pagamento do Auxílio Gás. Em vez de ser entregue diretamente ao beneficiário, como ocorre hoje, o dinheiro será repassado a distribuidoras de gás cadastradas, que vão distribuir os botijões de GLP, com o devido desconto, às pessoas que tiverem direito.
(O governo explica que, assim, "há garantia de que os recursos sejam empregados diretamente na compra de GLP, combatendo a pobreza energética". Uma antiga queixa das distribuidoras é de que os brasileiros de baixa renda gastam o dinheiro do vale-gás no que bem entendem, e não em botijões; daí que continuam a queimar lenha, em prejuízo da própria saúde e do meio ambiente – e do caixa dessas empresas, claro.)
O programa será bancado com recursos do Fundo Social, ou seja, oriundos principalmente da produção do pré-sal. Mas o governo propõe um novo trajeto para a grana. Em vez de seguir o percurso normal (ser depositado no Fundo Social, depois repassado ao Tesouro e então usado no Orçamento), o dinheiro poderá ir direto das petroleiras para… a Caixa Econômica Federal, e dali para as distribuidoras de gás de cozinha. É que o banco estatal, dispensado de licitação, ficará encarregado de "operacionalizar" o Auxílio Gás.
Ao tomar esse atalho, o dinheiro não é contabilizado como gasto no Orçamento da União. E o governo fica à vontade para afirmar que cumprirá a meta de déficit zero em 2025.
A artimanha não passou despercebida. Observadores das contas federais tocaram o alerta e disseram que o drible fragiliza a credibilidade do ajuste fiscal.
Em entrevista coletiva na segunda-feira (2), o secretário-executivo da Fazenda, Dario Durigan, buscou ressaltar que a ideia não nasceu em seu ministério. "Nosso compromisso é corrigir o processo, se houver qualquer falha ou dúvida. Ouvir críticas, tratar, aprimorar e corrigir eventuais erros", afirmou.
Mesmo nascido em outras bandas, o novo Auxílio Gás leva a assinatura de Haddad, que se coloca como fiador dos compromissos fiscais do governo. O ministro participou da cerimônia em que a medida foi anunciada e lá disse que Lula tem "grandes chances" de fazer seu melhor mandato na Presidência.
Também é fato que o Orçamento de 2025 depende dessa e de outras perspicácias para que indique, ao menos no papel, o cumprimento da meta fiscal. A peça conta com novos aumentos de impostos e traz uma projeção aparentemente subestimada dos gastos com a Previdência.
Bolsonaro dobrou Auxílio Gás às vésperas das eleições e fora do teto de gastos
Não é a primeira vez que o Executivo recorre a malabarismos para ampliar o Auxílio Gás. O benefício foi criado no fim de 2021, na gestão de Jair Bolsonaro, e duplicado às vésperas das eleições de 2022, também às margens das regras fiscais.
Em meados daquele ano, Bolsonaro patrocinou uma emenda constitucional que dobrou o valor do vale, além de criar vouchers para taxistas e caminhoneiros e ampliar o Auxílio Brasil (hoje Bolsa Família) de R$ 400 para R$ 600.
O pacote custou R$ 41 bilhões, a serem pagos fora do teto de gastos e em período eleitoral, e só foi possível porque a mesma emenda declarou um certo "estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo".
Meses antes, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, havia classificado a proposta de "bomba fiscal". Sua equipe a apelidava de "PEC Kamikaze". Mais adiante, Guedes passou a chamá-la de "PEC das Bondades".
Há pouco mais de um mês, o Supremo Tribunal Federal (STF), julgando ação movida pelo partido Novo, declarou inconstitucionais a declaração de estado de emergência e os benefícios decorrentes da emenda.
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