Jair Bolsonaro deixou cedo o Exército, aos 33 anos, para entrar na política. Pelas três décadas seguintes, exerceu com afinco o papel em que se sente mais à vontade, de representante dos interesses das Forças Armadas. Presidente da República há quase três meses, não consegue se desvencilhar do sindicalista militar que sempre foi.
A proposta que ele entregou na quarta-feira (20) ao Congresso é a realização de um sonho e o cumprimento de uma promessa do sindicalista Bolsonaro: de restituir aos militares tudo o que alegadamente perderam no início do século, na reestruturação promovida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.
Por outro lado, o projeto deve complicar a vida do presidente Bolsonaro. Ao menos se ele realmente espera aprovar uma reforma robusta da Previdência, capaz de, em algum momento, tirar a economia da letargia.
Reforma e contrarreforma
O pacote encaminhado à Câmara tem duas partes. A primeira é a reforma do que os militares chamam de sistema de proteção social. Veio mais ou menos como o esperado, com aumento na contribuição e no tempo mínimo de serviço. Vai gerar, segundo o governo, uma economia de R$ 97,3 bilhões em dez anos, ligeiramente maior que a estimada um mês atrás.
A segunda parte é a reestruturação das carreiras das Forças Armadas, que tem a ambição de restabelecer – ao menos em termos financeiros – um conjunto de benefícios que os militares tinham até 2000. Essa contrarreforma foi a contrapartida exigida pela categoria para se submeter a regras mais duras de previdência. Vai aumentar salários, gratificações e adicionais e custará R$ 86,9 bilhões em uma década, consumindo quase toda a economia gerada pelo capítulo previdenciário do pacote.
Quem toma conhecimento das atuais regras de aposentadoria dos membros das Forças Armadas – e as compara com o tratamento dispensado aos demais trabalhadores – talvez se espante quando vê o presidente afirmar dia sim, dia também que em 2001 “foram retirados todos os direitos dos militares”. Tendo dividido sua vida adulta entre o Exército e a Câmara, talvez ele não tenha mesmo ideia muito precisa de como é a vida de quem não é militar nem político.
SAIBA MAIS: Direito ou privilégio? Sete pontos para entender a aposentadoria e as pensões dos militares
O tema é uma obsessão do capitão reformado e expõe sua dificuldade em se comportar como presidente de todos os brasileiros. Na segunda-feira (18), em transmissão ao vivo de Washington, Bolsonaro dedicou 51 segundos para falar da necessidade de reformar a Previdência dos comuns. E cinco minutos para falar da reforma e das condições dos militares.
(Para se ter uma ideia de proporção: hoje mais de 50 milhões de brasileiros contribuem para o INSS, que paga cerca de 28 milhões de aposentadorias e pensões. Nas Forças Armadas, há 369 mil pessoas na ativa – das quais 156 mil de carreira – e 381 mil inativos e pensionistas.)
Na “live”, pedindo desculpas pelo “sacrifício” imposto à caserna, o presidente ainda estimulou praças e oficiais a apontar eventuais equívocos e apresentar sugestões para a reestruturação da carreira, convite que obviamente não estendeu a segurados do INSS e servidores públicos civis, que também terão benefícios adiados e reduzidos na reforma da Previdência.
No mesmo vídeo, comentou o orgulho que sente do povo e das forças armadas norte-americanas. “O tratamento dispensado aos militares aqui [nos Estados Unidos] nem se compara a outros países”, disse o presidente. Comparemos mesmo assim: nos EUA, que estão sempre envolvidos em conflitos armados, um militar precisa de 50 anos de serviço para receber aposentadoria integral; no Brasil, 30.
Nesta quarta, na Câmara, Bolsonaro admitiu que “tinha um comportamento bem corporativista”, mas que a reforma dos militares “é muito mais profunda que a do regime geral”. Pediu aos parlamentares que levassem em conta “o que está lá atrás”, provavelmente se referindo à reestruturação de FHC, e talvez supondo que ninguém além dos militares tenha perdido direitos e benefícios nas últimas duas décadas.
(Cada um tem lá sua noção do que é sacrifício. Fizemos no fim deste texto uma simulação sobre a situação de dois homens – um militar das Forças Armadas e um trabalhador do setor privado, vinculado ao INSS – para ilustrar o tempo de trabalho, a idade de aposentadoria, o tamanho da contribuição e o valor que cada um receberá, ou receberia, como aposentado conforme as regras atuais e as propostas pelo governo.)
Paulo Guedes, ministro da Economia e mentor da reforma da Previdência, elogiou a participação dos militares na discussão. Deixou claro que com eles só negociou a contribuição para o regime previdenciário, e que toda a reestruturação de carreira ficou a cargo do próprio Ministério da Defesa.
É de se pensar que tipo de reestruturação os servidores públicos civis e os segurados do INSS desenhariam para si mesmos, caso recebessem a incumbência, como contrapartida às regras mais duras de aposentadoria e pensão.
Pacote cobre só 2,4% do déficit da Previdência dos militares
No balanço entre reforma e contrarreforma dos militares, o efeito líquido para as contas federais será de apenas R$ 10,5 bilhões em dez anos, o equivalente a pouco mais de R$ 1 bilhão por ano, em média. Economia equivalente a 2,3% da despesa atual com a inatividade e as pensões das Forças Armadas (que foi de R$ 46,2 bilhões em 2018), ou 2,4% do déficit desse sistema (R$ 43,9 bilhões).
No caso dos servidores federais e do INSS, a economia prevista pelo governo com a reforma soma R$ 1,072 trilhão em uma década, ou R$ 107,2 bilhões por ano, em média. Dinheiro que cobriria 16,1% da despesa atual desses dois regimes (R$ 667,6 bilhões em 2018) ou 44,9% do déficit (R$ 239 bilhões).
É o tipo de conta que farão os deputados e senadores que vão apreciar a PEC da Previdência e o projeto de lei dos militares. Pode ser que eles optem por cortar os benefícios que os militares pretendem se conceder. Mas parece mais provável que os parlamentares prefiram suavizar a reforma para os demais trabalhadores, ainda que o presidente Bolsonaro a considere mais leve que a dos militares. Para engrossar esse caldo, categorias do funcionalismo civil têm lá suas propostas de reestruturação de carreira, a serem bancadas pelos cofres públicos, que certamente levarão aos congressistas.
LEIA TAMBÉM: Militares vencem queda de braço com equipe econômica, mas desagradam o Congresso
Até líderes governistas admitem, eufemisticamente, que a contrarreforma dos militares abriu brechas para todo tipo de demanda. Na verdade, ficou escancarada a porta para a ruína da reforma da Previdência. Se ela fracassar, vai-se embora o ânimo dos investidores e empresários que confiam no governo. E, com ele, as expectativas de retomada da economia. O resto você pode imaginar.
Antes e depois da reforma – Um militar e um segurado do INSS
Imaginemos dois homens nascidos em 1984. Ambos começaram a trabalhar aos 20 anos de idade, em 2004, um ingressando em carreira das Forças Armadas e outro conseguindo um emprego formal numa empresa privada. Em 2019, aos 35 anos de idade, já somam 15 anos de serviço militar e contribuição ao INSS, respectivamente. O primeiro contribui com 7,5% da remuneração a seu sistema de proteção social. O segundo, dá 11% para a Previdência.
Pelas regras atuais, o militar poderá passar à reserva em 2034, com 50 anos de idade e 30 de serviço. Receberá uma ajuda de custo, paga em parcela única, equivalente a quatro remunerações do maior posto de seu círculo hierárquico.
O trabalhador do setor privado, por sua vez, precisará de 35 anos de contribuição para requerer aposentadoria. Se ficar sempre empregado e contribuindo à Previdência, alcançará essa marca em 2039, aos 55 anos de idade. Ao se aposentar, poderá sacar o saldo no FGTS. Se continuar trabalhando após a aposentadoria e for demitido sem justa causa, receberá o equivalente a 40% dos depósitos feitos pelo empregador a título de multa por rescisão.
Caso a reforma da Previdência seja aprovada da forma como propõe o governo, o desconto no salário do militar subirá para 8,5% em 2020, 9,5% em 2021 e 10,5% de 2022 em diante. Ele terá de cumprir um “pedágio” de 17% sobre o tempo que, pelas regras atuais, falta para ele passar à reserva. Em vez de trabalhar mais 15 anos, trabalhará por aproximadamente 17 anos e meio. Completará 32 anos e meio de serviço militar, deixando a ativa lá por 2036 ou 2037, com 52 anos e meio de idade. Na passagem para a inatividade, receberá uma ajuda de custo equivalente a oito remunerações do maior posto de seu círculo hierárquico.
O profissional do setor privado do nosso exemplo, por sua vez, passará a descontar 11,68% para a Previdência após a reforma. Poderá se aposentar somente aos 65 anos de idade, que completará em 2049. Se passar o tempo todo empregado até lá, terá contribuído por 45 anos à Previdência. Poderá sacar o FGTS no momento da aposentadoria. Mas, se continuar trabalhando depois dela e for demitido sem justa causa, não receberá os 40% relativos à multa de rescisão.
E o tamanho da aposentadoria? Vamos supor que os dois homens começaram a carreira ganhando R$ 1,2 mil e tiveram 4% de aumento a cada 12 meses. E, para simplificar a conta, vamos ignorar efeitos de inflação, gratificações, adicionais e penduricalhos.
Nessa simulação, o último salário do militar na ativa, com 32 anos e meio de serviço, será de R$ 4.210. É isso o que ganhará na reserva, pois o benefício é integral. Ao longo da carreira, ele terá contribuído com R$ 87,6 mil ao sistema de proteção social das Forças Armadas.
Como continuou trabalhando e recebendo 4% de reajuste por ano, o trabalhador do setor privado terminará a carreira com salário de R$ 6.740. Sua média salarial, ao longo da vida, será de R$ 3.227. Como terá contribuído por 45 anos, receberá 110% de sua média salarial na aposentadoria. O equivalente a R$ 3.550, nesta simulação. Sua contribuição ao INSS, nesses 45 anos, terá somado R$ 201,6 mil.
Lula subestima conflito na Ucrânia e diz que enfrenta guerra interna contra “extrema-direita”
Lula critica Maduro por impedir que Yoris concorra, mas minimiza inabilitação de Corina Machado
PL cobra mais participação nas secretarias de Tarcísio em São Paulo
Trunfo para equacionar dívida de Minas com a União, Cemig tem quedas sucessivas em ranking da Aneel
Deixe sua opinião