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O presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e a cúpula das Forças Armadas se reuniram na quarta (20) antes da apresentação da reforma ao Congresso. (Foto: Marcos Corrêa/PR)
O presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e a cúpula das Forças Armadas se reuniram na quarta (20) antes da apresentação da reforma ao Congresso. (Foto: Marcos Corrêa/PR)| Foto:

Jair Bolsonaro deixou cedo o Exército, aos 33 anos, para entrar na política. Pelas três décadas seguintes, exerceu com afinco o papel em que se sente mais à vontade, de representante dos interesses das Forças Armadas. Presidente da República há quase três meses, não consegue se desvencilhar do sindicalista militar que sempre foi.

A proposta que ele entregou na quarta-feira (20) ao Congresso é a realização de um sonho e o cumprimento de uma promessa do sindicalista Bolsonaro: de restituir aos militares tudo o que alegadamente perderam no início do século, na reestruturação promovida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.

Por outro lado, o projeto deve complicar a vida do presidente Bolsonaro. Ao menos se ele realmente espera aprovar uma reforma robusta da Previdência, capaz de, em algum momento, tirar a economia da letargia.

Reforma e contrarreforma

O pacote encaminhado à Câmara tem duas partes. A primeira é a reforma do que os militares chamam de sistema de proteção social. Veio mais ou menos como o esperado, com aumento na contribuição e no tempo mínimo de serviço. Vai gerar, segundo o governo, uma economia de R$ 97,3 bilhões em dez anos, ligeiramente maior que a estimada um mês atrás.

A segunda parte é a reestruturação das carreiras das Forças Armadas, que tem a ambição de restabelecer – ao menos em termos financeiros – um conjunto de benefícios que os militares tinham até 2000. Essa contrarreforma foi a contrapartida exigida pela categoria para se submeter a regras mais duras de previdência. Vai aumentar salários, gratificações e adicionais e custará R$ 86,9 bilhões em uma década, consumindo quase toda a economia gerada pelo capítulo previdenciário do pacote.

Quem toma conhecimento das atuais regras de aposentadoria dos membros das Forças Armadas – e as compara com o tratamento dispensado aos demais trabalhadores – talvez se espante quando vê o presidente afirmar dia sim, dia também que em 2001 “foram retirados todos os direitos dos militares”. Tendo dividido sua vida adulta entre o Exército e a Câmara, talvez ele não tenha mesmo ideia muito precisa de como é a vida de quem não é militar nem político.

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O tema é uma obsessão do capitão reformado e expõe sua dificuldade em se comportar como presidente de todos os brasileiros. Na segunda-feira (18), em transmissão ao vivo de Washington, Bolsonaro dedicou 51 segundos para falar da necessidade de reformar a Previdência dos comuns. E cinco minutos para falar da reforma e das condições dos militares.

(Para se ter uma ideia de proporção: hoje mais de 50 milhões de brasileiros contribuem para o INSS, que paga cerca de 28 milhões de aposentadorias e pensões. Nas Forças Armadas, há 369 mil pessoas na ativa – das quais 156 mil de carreira – e 381 mil inativos e pensionistas.)

Na “live”, pedindo desculpas pelo “sacrifício” imposto à caserna, o presidente ainda estimulou praças e oficiais a apontar eventuais equívocos e apresentar sugestões para a reestruturação da carreira, convite que obviamente não estendeu a segurados do INSS e servidores públicos civis, que também terão benefícios adiados e reduzidos na reforma da Previdência.

No mesmo vídeo, comentou o orgulho que sente do povo e das forças armadas norte-americanas. “O tratamento dispensado aos militares aqui [nos Estados Unidos] nem se compara a outros países”, disse o presidente. Comparemos mesmo assim: nos EUA, que estão sempre envolvidos em conflitos armados, um militar precisa de 50 anos de serviço para receber aposentadoria integral; no Brasil, 30.

Nesta quarta, na Câmara, Bolsonaro admitiu que “tinha um comportamento bem corporativista”, mas que a reforma dos militares “é muito mais profunda que a do regime geral”. Pediu aos parlamentares que levassem em conta “o que está lá atrás”, provavelmente se referindo à reestruturação de FHC, e talvez supondo que ninguém além dos militares tenha perdido direitos e benefícios nas últimas duas décadas.

(Cada um tem lá sua noção do que é sacrifício. Fizemos no fim deste texto uma simulação sobre a situação de dois homens – um militar das Forças Armadas e um trabalhador do setor privado, vinculado ao INSS – para ilustrar o tempo de trabalho, a idade de aposentadoria, o tamanho da contribuição e o valor que cada um receberá, ou receberia, como aposentado conforme as regras atuais e as propostas pelo governo.)

Paulo Guedes, ministro da Economia e mentor da reforma da Previdência, elogiou a participação dos militares na discussão. Deixou claro que com eles só negociou a contribuição para o regime previdenciário, e que toda a reestruturação de carreira ficou a cargo do próprio Ministério da Defesa.

É de se pensar que tipo de reestruturação os servidores públicos civis e os segurados do INSS desenhariam para si mesmos, caso recebessem a incumbência, como contrapartida às regras mais duras de aposentadoria e pensão.

Pacote cobre só 2,4% do déficit da Previdência dos militares

No balanço entre reforma e contrarreforma dos militares, o efeito líquido para as contas federais será de apenas R$ 10,5 bilhões em dez anos, o equivalente a pouco mais de R$ 1 bilhão por ano, em média. Economia equivalente a 2,3% da despesa atual com a inatividade e as pensões das Forças Armadas (que foi de R$ 46,2 bilhões em 2018), ou 2,4% do déficit desse sistema (R$ 43,9 bilhões).

No caso dos servidores federais e do INSS, a economia prevista pelo governo com a reforma soma R$ 1,072 trilhão em uma década, ou R$ 107,2 bilhões por ano, em média. Dinheiro que cobriria 16,1% da despesa atual desses dois regimes (R$ 667,6 bilhões em 2018) ou 44,9% do déficit (R$ 239 bilhões).

É o tipo de conta que farão os deputados e senadores que vão apreciar a PEC da Previdência e o projeto de lei dos militares. Pode ser que eles optem por cortar os benefícios que os militares pretendem se conceder. Mas parece mais provável que os parlamentares prefiram suavizar a reforma para os demais trabalhadores, ainda que o presidente Bolsonaro a considere mais leve que a dos militares. Para engrossar esse caldo, categorias do funcionalismo civil têm lá suas propostas de reestruturação de carreira, a serem bancadas pelos cofres públicos, que certamente levarão aos congressistas.

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Até líderes governistas admitem, eufemisticamente, que a contrarreforma dos militares abriu brechas para todo tipo de demanda. Na verdade, ficou escancarada a porta para a ruína da reforma da Previdência. Se ela fracassar, vai-se embora o ânimo dos investidores e empresários que confiam no governo. E, com ele, as expectativas de retomada da economia. O resto você pode imaginar.

Antes e depois da reforma – Um militar e um segurado do INSS

Imaginemos dois homens nascidos em 1984. Ambos começaram a trabalhar aos 20 anos de idade, em 2004, um ingressando em carreira das Forças Armadas e outro conseguindo um emprego formal numa empresa privada. Em 2019, aos 35 anos de idade, já somam 15 anos de serviço militar e contribuição ao INSS, respectivamente. O primeiro contribui com 7,5% da remuneração a seu sistema de proteção social. O segundo, dá 11% para a Previdência.

Pelas regras atuais, o militar poderá passar à reserva em 2034, com 50 anos de idade e 30 de serviço. Receberá uma ajuda de custo, paga em parcela única, equivalente a quatro remunerações do maior posto de seu círculo hierárquico.

O trabalhador do setor privado, por sua vez, precisará de 35 anos de contribuição para requerer aposentadoria. Se ficar sempre empregado e contribuindo à Previdência, alcançará essa marca em 2039, aos 55 anos de idade. Ao se aposentar, poderá sacar o saldo no FGTS. Se continuar trabalhando após a aposentadoria e for demitido sem justa causa, receberá o equivalente a 40% dos depósitos feitos pelo empregador a título de multa por rescisão.

Caso a reforma da Previdência seja aprovada da forma como propõe o governo, o desconto no salário do militar subirá para 8,5% em 2020, 9,5% em 2021 e 10,5% de 2022 em diante. Ele terá de cumprir um “pedágio” de 17% sobre o tempo que, pelas regras atuais, falta para ele passar à reserva. Em vez de trabalhar mais 15 anos, trabalhará por aproximadamente 17 anos e meio. Completará 32 anos e meio de serviço militar, deixando a ativa lá por 2036 ou 2037, com 52 anos e meio de idade. Na passagem para a inatividade, receberá uma ajuda de custo equivalente a oito remunerações do maior posto de seu círculo hierárquico.

O profissional do setor privado do nosso exemplo, por sua vez, passará a descontar 11,68% para a Previdência após a reforma. Poderá se aposentar somente aos 65 anos de idade, que completará em 2049. Se passar o tempo todo empregado até lá, terá contribuído por 45 anos à Previdência. Poderá sacar o FGTS no momento da aposentadoria. Mas, se continuar trabalhando depois dela e for demitido sem justa causa, não receberá os 40% relativos à multa de rescisão.

E o tamanho da aposentadoria? Vamos supor que os dois homens começaram a carreira ganhando R$ 1,2 mil e tiveram 4% de aumento a cada 12 meses. E, para simplificar a conta, vamos ignorar efeitos de inflação, gratificações, adicionais e penduricalhos.

Nessa simulação, o último salário do militar na ativa, com 32 anos e meio de serviço, será de R$ 4.210. É isso o que ganhará na reserva, pois o benefício é integral. Ao longo da carreira, ele terá contribuído com R$ 87,6 mil ao sistema de proteção social das Forças Armadas.

Como continuou trabalhando e recebendo 4% de reajuste por ano, o trabalhador do setor privado terminará a carreira com salário de R$ 6.740. Sua média salarial, ao longo da vida, será de R$ 3.227. Como terá contribuído por 45 anos, receberá 110% de sua média salarial na aposentadoria. O equivalente a R$ 3.550, nesta simulação. Sua contribuição ao INSS, nesses 45 anos, terá somado R$ 201,6 mil.

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