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Ilustração: Felipe Lima
Ilustração: Felipe Lima| Foto:

O grande poeta Fernando Pessoa certa vez escreveu que a verdadeira pátria não é um país, uma bandeira, um hino a se cantar. Mas sim – alô, patriotas de plantão! – a língua que falamos. Tem povo que não dispõe de um chão para chamar de seu e ainda assim se sente uma gente só. O que os une? A língua acima de tudo. O resto vem depois. Como não existe pensamento sem uma língua, a arquitetura da linguagem exerce forte influência no jeito como raciocinamos e vemos o mundo. E, se pensamos e agimos parecido, formamos uma comunidade. Mas é como na história do ovo e da galinha: difícil saber o que veio antes. O ambiente ao redor, que compartilhamos com o vizinho, também ajuda a moldar a língua.

Seja na direção que for, faz sentido afirmar que a língua não apenas diz, mas mostra quem somos. Aos exemplos. A palavra “saudade” – essa joia que herdamos de nossos pais portugueses – de certa forma nos explica. Não somos afinal apegados à família como poucos povos? Tão apegados que não conseguimos nem mesmo nos esquecer daqueles que se foram há tempos? Só mesmo uma gente assim poderia forjar uma palavra tão única para exprimir um sentimento absolutamente contraditório como a saudade: a memória suavemente alegre e intensamente melancólica da perda e separação.

E os britânicos e americanos? Povos profundamente pragmáticos. Não por acaso a gramática do inglês é uma das mais simples que temos por aí. E tem ainda o “eu” do inglês expresso com um maiúsculo “I”? Uma marca da centralidade do indivíduo. Visto dessa forma, a mentalidade do self-made man não poderia ter nascido noutro lugar a não ser numa nação que fala inglês – os Estados Unidos, no caso.

Feita essa longa introdução, chego ao ponto: o sotaque leite quente dos curitibanos diz muito sobre nós. E isso tem a ver com a origem desse jeitão de falar. Bem, aí temos duas explicações possíveis, com implicações variadas.

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A teoria mais famosa é de que, com a chegada dos imigrantes europeus à cidade, no século 19, os curitibanos precisavam se fazer entender pelos estrangeiros – que não entendiam muito bem o português. E então adotaram uma postura professoral: começaram a articular bem as sílabas e a falar como se escreve, reforçando o “e” ao fim das palavras. Esse modo de falar, então, “pegou”.

Por essa interpretação, os curitibanos seriam acolhedores e abertos. A cidade, aliás, gosta de cultuar a imagem de ser a “terra de todas as gentes”.

Contudo, há um problema na explicação que atribui o nosso sotaque à imigração. Os estrangeiros que chegavam àquela Curitiba provinciana eram trabalhadores sem status social. Seria improvável que os antigos moradores mudassem seu jeito de falar, inclusive com outros curitibanos natos, apenas para acolher os forasteiros. O mais lógico é que os estrangeiros é que tiveram de se adaptar à prosa curitibana tradicional.

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E aí, derrubada a primeira teoria, entra a segunda tese sobre a origem do sotaque leite quente. O curitibanês seria um português antigo congelado no tempo. Os primeiros colonizadores que subiram a serra em direção ao planalto paranaense, lá pela metade do século 17, teriam trazido na bagagem o nosso jeito de falar. Que, por sua vez, eles haviam carregado de Portugal para o Brasil.

A maior proximidade do português escrito com o jeito curitibano de falar é uma forte evidência disso. Palavras como “leite” são redigidas com “e” no final e não com “i” porque era assim que se falava nos tempos de antigamente. A ortografia – sempre mais tradicionalista – ficou inalterada. Mas, com o tempo, a fala foi mudando. Ao menos para a maioria dos luso-falantes. Não para os curitibanos.

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Há também uma explicação para que o antigo sotaque de Portugal tenha se conservado quase intocado na terra das araucárias. Curitiba foi um povoado relativamente isolado por muito tempo. E comunidades sem muito contato externo tendem a preservar mais fortemente seus costumes. Inclusive o modo de falar.

Nem mesmo o longo ciclo do tropeirismo – que fez de Curitiba rota de passagem do comércio do Sul com São Paulo e colocou moradores da cidade em contato com gente de outras paragens – foi suficiente para mudar o sotaque leite quente em sua essência. Os forasteiros só passavam por aqui. Isso é pouco para influenciar todo um jeito de falar. Na verdade, ocorreu o inverso. Sabe-se que uma parcela expressiva dos tropeiros era de Curitiba. Foram eles que acabaram fundando vilarejos e espalhando um pouco desse peculiar sotaque pelos planaltos sulistas.

E tudo isso diz muito sobre nós. A tese de que somos herdeiros de um português congelado no tempo – que não existe mais nem mesmo em Portugal – mostra que o curitibano típico tem inclinação ao conservadorismo e à tradição. A “ilha” que Curitiba foi durante a maior parte de sua história teria ajudado a preservar os costumes e a fala. Também explica o jeitão meio fechado de nossa gente em relação a quem vem de fora. É natural que não se dê muita confiança àqueles que só estão de passagem. Se a pessoa decide ficar, aí a coisa muda. E, dizem, assim é o curitibano: dá intimidade aos poucos.

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A correspondência mais precisa entre o escrito e o falado, no caso específico do “e” ao fim das palavras, talvez também explique um pouco mais de nossa gente. O “leite quente” criou um orgulho em muito curitibano, que diz falar o “português correto”. Os linguistas asseguram: não existe uma língua falada “certa”. Apenas a escrita é que pode ser considerada correta de acordo com a gramática – que nada mais é do que o conjunto de regras de organização da comunicação escrita. A questão é que o curitibano que demonstra apreço pela norma gramatical tem certa propensão a seguir regras e a ser organizado na vida cotidiana. Não joga tanto lixo na rua. Faz fila no ponto de ônibus. Foi pioneiro na separação do lixo. Mas também fura o sinal vermelho, do mesmo modo que diz “tá bem” e não “está bem”. Enfim, nada é perfeito.

Seja como for, somos assim. No entanto, estamos mudando. Para o bem e para o mal, a cidade não é mais a mesma de algumas décadas atrás. Cresceu muito. Abriu-se. Recebeu levas de forasteiros que vieram para ficar – não mais tantos imigrantes, mas principalmente brasileiros que trouxeram para cá outros modos de ser e se expressar. E o jeitão curitibano de falar não passou ileso. O leite quente curitibano está ficando meio morno: aos poucos, o “i” vem substituindo o “e” fortemente marcado no fim das palavras.

O que vem por aí – que Curitiba e curitibanos seremos daqui para frente – o tempo e o sotaque dirão.

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