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Esquerda ou direita: de quem será o futuro no mundo hipertecnológico
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Previsões sobre o que vai acontecer na política e na vida em sociedade não costumam ser precisas. O comportamento humano, afinal, não é uma ciência exata. Muito pelo contrário. Mas, ainda que fatos sociais específicos não possam ser antecipados sem uma enorme dose de incerteza, grandes tendências são mais fáceis de mapear com possibilidade de acerto. E podem ser analisadas como exercício de antecipação do que pode vir a acontecer. Nesse sentido, ao menos num dos cenários possíveis (o mundo hipertecnológico), dá para especular: o futuro nas democracias tende a ser da esquerda. Mas os regimes democráticos, como sempre, vão continuar a correr riscos. Grandes riscos.

O cenário em que a esquerda democrática tende a ser hegemônica será quando (e se) a tecnologia e a inteligência artificial tirarem empregos humanos sem criar novas atividades profissionais que venham a ser executadas por homens e mulheres.

Da Revolução Industrial até agora, as novas tecnologias não aumentaram o desemprego e a pobreza de forma global. Na verdade, deu-se o oposto. As máquinas aumentaram a produtividade e baixaram os preços de produtos e serviços, o que ampliou a riqueza de forma nunca antes vista. Embora os aparatos tecnológicos tenham acabado com algumas profissões, criaram outras – muitas delas mais qualificadas e bem-remuneradas. Alguém precisa ser contratado para operá-los, consertá-los e programá-los. O Uber, apenas para ficar num exemplo cotidiano, vem acabando com a profissão de taxista. Mas permitiu que muitas outras pessoas trabalhassem na atividade. E tornou o serviço mais barato para os usuários.

Mas analistas especulam que a crescente automação e a inteligência artificial têm potencial para reverter essa realidade em algumas décadas. Cada vez mais máquinas não irão ser operadas por humanos. Também vão consertar outras máquinas, construí-las e projetar novos modelos mais eficientes e inteligentes. Nesse cenário, haveria uma tendência ao aumento expressivo do desemprego e de concentração de renda nas mãos das empresas detentoras das novas tecnologias.

E não se trata de ficção científica. O Uber efetivamente planeja “dispensar” seus motoristas parceiros adotando carros autônomos. Os bancos serão cada vez mais digitais, sem agências físicas e com muito menos funcionários. O comércio eletrônico e os serviços de entrega em domicílio podem provocar a redução significativa do número de estabelecimentos comerciais como lojas, supermercados, restaurantes. E talvez nem mesmo haja entregadores para empregar; esse trabalho poderá vir a ser automatizado (a Amazon já testa um sistema de delivery com drones).

O campo tampouco vai escapar: há quem diga que fábricas de carnes, produzidas a partir do cultivo de células-tronco, serão realidade dentro de uma década. E nem mesmo uma das indústrias mais “criativas”, o cinema, passará ileso. O realismo de animações como a nova versão do Rei Leão mostra que é possível fazer filmes sem atores.

Tudo isso terá impacto na política. Se o cenário de um mundo com cada vez menos emprego se confirmar, haverá um fortalecimento do discurso clássico da esquerda: é preciso redistribuir a riqueza e garantir uma renda mínima a todos os cidadãos para que possam viver com dignidade. Nos regimes democráticos, haverá uma pressão popular por um modelo de Estado de bem-estar social provedor e generoso com os cidadãos – que seria financiado pelos ganhos de produtividade obtidos com as novas tecnologias.

Sob essas circunstâncias, a direita terá mais dificuldade para conquistar eleitores. A agenda da não intervenção estatal na economia e do mercado desregulamentado será antipática para uma ampla parcela da população.

Mas isso não é necessariamente a crônica da morte anunciada da direita. É possível construir uma argumentação que defenda o trabalhador nesse cenário a partir dos fundamentos conceituais do liberalismo, uma das principais correntes que representa esse espectro ideológico.

Filosoficamente, o liberalismo se assenta tanto na liberdade quanto na igualdade humana – embora esse último princípio esteja mais associado à esquerda. A base do pensamento liberal é que os homens nascem e devem ser igualmente livres. Há uma clara relação desse conceito com sua concepção de mercado: a livre competição tem de ocorrer segundo as mesmas regras (igualdade de largada) para todos. É isso que “autoriza” o Estado a quebrar monopólios e oligopólios. Ou seja, governos podem intervir na economia para garantir a livre concorrência.

Teoricamente, esses princípios podem ser aplicados num mercado em que as máquinas e a inteligência artificial substituam a mão de obra humana de forma ampla. Afinal, nesse futuro não haverá minimamente qualquer traço de igualdade de largada entre um robô e um trabalhador.

Mas o problema é que, até hoje, a direita segue na direção oposta. Um discurso que possa contrariar isso tem grande chance de soar falso, a não ser que seja construído com antecedência.

Há ainda outro cenário possível no futuro hipertecnológico: o de que a democracia vai correr sérios riscos. Desemprego em massa produz insatisfação. Quanto menos trabalho houver, maior será a revolta social. Esse é um dos ingredientes para a descrença nos regimes democráticos e, consequentemente, para que o autoritarismo se apresente como solução ou se imponha como reação.

Os regimes de força podem se instalar corroendo as democracias por dentro, através de governantes eleitos que, manipulando a insatisfação popular, se transformam em ditadores. Ou da forma mais tradicional, por golpes ou revoluções. No primeiro caso, a tendência é de que o autoritarismo seja de esquerda. No segundo, além da esquerda, também é possível que haja uma autocracia de direita. Nesse caso, como reação para manter o status quo.

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