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Muro na cabeça
Ilustração: Felipe Lima.| Foto:

O muro de Berlim caiu em 9 de novembro de 1989, mas não levou muito tempo para os alemães construírem outra barreira a separá-los. Desta vez não física, e sim psicológica e ideológica. O muro na cabeça foi a expressão com que eles batizaram a nostalgia de parte da população do país pela época da Guerra Fria, quando a Alemanha estava dividida em duas: a capitalista e a comunista.

Passada a festa daquele novembro e da efetiva reunificação das Alemanhas, em outubro de 1990, veio a ressaca. De ambos os lados havia quem preferisse a volta das duas nações separadas.

Uma parcela dos alemães do Oeste se ressentiu dos altos custos do plano governamental de equalizar as condições econômicas e sociais das duas partes do novo país – o antigo lado socialista exibia indicadores muito inferiores por causa da ineficiência da economia estatizada. Os alemães ocidentais acreditavam estar pagando impostos altos demais para beneficiar os vizinhos do Leste. De fato, a integração custou caro: 2 trilhões de euros até hoje (cerca de R$ 9 trilhões, mais que o PIB brasileiro em um ano).

Do outro lado da antiga Cortina de Ferro, alguns alemães não deixaram de defender o comunismo – apesar de todos os fatos que mostravam a falência absoluta desse regime e as atrocidades cometidas pelo totalitarismo comunista. Mantiveram-se marxistas por pura ideologia. Acreditavam cegamente na superioridade do socialismo.

Outros sonhavam com a volta da Alemanha Oriental por razões mais pragmáticas. Principalmente os trabalhadores que tinham entre 30 e 50 anos quando o muro caiu. Eles não conseguiram se adaptar ao mercado de trabalho capitalista, em que a competição e a eficiência fazem parte da regra do jogo. O muro na cabeça foi menos forte nos jovens, que tiveram acesso a uma educação melhor e à chance de conhecer o mundo. O desconforto também foi menor entre os mais velhos, que se beneficiaram das generosas aposentadorias pagas pela Alemanha capitalista, para a qual nunca haviam contribuído.

Mas as diferenças em relação ao Oeste mais rico ainda alimentam ressentimentos no Leste. A produtividade do alemão oriental é 25% menor do que a do trabalhador da ex-Alemanha Ocidental. Isso tem reflexos. O salário médio no antigo lado comunista só chega a 84% da remuneração do resto do país. E o desemprego também é maior: 6,9% contra 4,8%.

O fato é que a experiência alemã mostra como o isolamento de membros de uma mesma comunidade pode torná-los tão profundamente diferentes; e como essas diferenças alimentam preconceitos em relação a quem ficou do outro lado. Diferenças, aliás, que se mantém mesmo após a queda das barreiras que os separam.

E aqui chegamos aos tempos atuais, quando novas modalidades do muro na cabeça estão sendo construídas. Não com tijolos, mas com algoritmos. As redes sociais são construídas para aproximar pessoas com interesses, gostos e pensamentos parecidos. Estimulam a criação de comunidades virtuais. Tem o lado bom que praticamente todos que navegam na internet sabem. Mas a outra face dessa moeda é a construção de muros na cabeça como decorrência do isolamento das pessoas em comunidades virtuais semifechadas, as “bolhas” da web. Quem só tem contato com aqueles que pensam de modo semelhante tende a reforçar suas crenças e está mais propenso à intolerância com as opiniões diferentes. Importa-se cada vez menos com os fatos; o que conta é a narrativa que mais se adapta à sua visão de mundo.

A crescente polarização política, dentre várias outras causas, é resultado desse fenômeno do isolamento provocado pelas comunidades virtuais.

Do mesmo modo, as redes sociais aproximaram extremistas que antes estavam geograficamente afastados. Juntos, passaram a não ter mais medo da saudável coação social que os obrigava a não expor publicamente o seu radicalismo.

Por sua vez, a polarização e a radicalização têm colocado em xeque a democracia liberal. A interdição do diálogo, no extremo, pode levar à falência da política com P maiúsculo. E, quando isso ocorre, só resta o conflito, a guerra.

A ironia histórica é que a democracia liberal, que já tinha ajudado a varrer do mapa o nazismo nos anos 1940, havia sido justamente a grande vencedora da Guerra Fria contra o comunismo. A queda do Muro de Berlim permitiu, simbolicamente, que os ventos da liberdade se espalhassem pelo mundo autoritário.

O otimismo daquele tempo levou o filósofo e economista norte-americano Francis Fukuyama a decretar o “fim da história”: a economia de mercado e as democracias seriam o ápice da organização humana.

Três décadas depois, o liberalismo e as democracias não distribuíram o bem-estar social do modo que todos esperavam. E o ressentimento e a frustração começaram a assentar os tijolos de cidadelas virtuais do autoritarismo. Tanto à direita quanto à esquerda. Mas ainda dá tempo de derrubar mais esse muro na cabeça.

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