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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Uma guerra é a falência completa da diplomacia entre nações. Aliás, como a violência é a negação do diálogo entre cidadãos. Por isso é oportuno analisar não apenas as consequências dos conflitos bélicos, mas principalmente os motivos que levam os países a pegar em armas. Ali estão erros que eventualmente podem se repetir. Não apenas na relação entre países, mas também dentro de uma sociedade. Nas guerras reside ainda, por mais paradoxal que possa parecer, uma chama de humanidade. E talvez poucos eventos históricos sejam tão contundentes para exemplificar tudo isso como a Primeira Guerra Mundial – encerrada há 100 anos, em 11 de novembro de 1918. Quatro pequenas histórias ajudam a refletir sobre o que é possível aprender com aquele conflito.

O antecedente: o delírio do “capitão” e o risco da obediência cega à autoridade

Historiadores afirmam que uma das causas culturais da Primeira Guerra foi o culto que a Alemanha dedicava ao militarismo e a seu irmão, a autoridade. O povo alemão aplaudiu o exército germânico quando ele levou a Europa inteira a mergulhar na guerra, em 1914. As autoridades, afinal, deviam saber o que estavam fazendo; e isso era o melhor para o país. Não era.

Os alemães podiam ter aprendido a lição com um episódio bizarro que ocorreu oito anos antes, em 1906. Quatro soldados andavam pelas ruas de Berlim quando se depararam com um capitão do Exército. Wilhelm Voigt – este era o nome do capitão – deu ordem para que a pequena tropa entrasse em forma e o seguisse. Os quatro não conheciam Voigt. Mas não se questiona a hierarquia militar. O capitão devia saber o que estava fazendo. E foram atrás do oficial, que rumou a Köpenick, pequena cidade nos arredores de Berlim.

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Em Köpenick, Voigt arregimentou mais três policiais para segui-lo na “missão”. Policial, em tese, não se reporta a um militar. Mas não custa lembrar: os alemães admiravam as Forças Armadas. O capitão devia saber o que estava fazendo. Então, todos obedeceram ao chefe e se dirigiram à prefeitura. Lá, Voigt exigiu dos servidores municipais que lhe pagassem 4 mil marcos. O pedido era estranho. Mas autoridade é autoridade. O capitão recebeu o dinheiro e passou recibo. E, antes de ir embora, ainda mandou prender o prefeito. Sem motivo algum.

O aventura farsesca do “capitão” durou seis horas. “Capitão” assim mesmo, entre aspas, porque Wilhelm Voigt não era militar, mas um sapateiro. Ele apenas havia comprado uma roupa de capitão para se exibir na rua. Quando percebeu a autoridade que aquele simples pedaço de pano lhe conferia, delirou. E abusou de sua autoridade fantasiosa. O caso ganhou as manchetes dos jornais da época. Virou uma peça teatral cômica. E mostrou como a obediência cega às autoridades pode ser perigosa.

O começo: não exiba força se você não quer usá-la

A Primeira Guerra começou em 1914 com uma sequência de blefes que deram errado. As potências europeias queriam demonstrar força, sem necessariamente terem a pretensão de usá-la. Mas o “exibicionismo” teve o efeito inverso: a cada demonstração de grandeza, o vizinho erguia a voz mais ainda. Deu no que deu. O medo de que o outro usasse a força levou todos a partirem para a violência.

O conflito se iniciou na periferia da Europa. Não era para ter se espalhado. Mas… Aos fatos: o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia para vingar o assassinato do herdeiro imperial, o arquiduque Francisco Ferdinando, morto por um grupo terrorista que estaria ligado a autoridades sérvias. A expectativa dos austro-húngaros era de que, mais do que uma guerra aberta, a declaração forçasse uma negociação diplomática mais vantajosa a eles.

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Mas a Rússia, aliada da Sérvia, quis demonstrar força. Moveu suas tropas para as fronteiras com a Áustria-Hungria e com a Alemanha – esta, aliada dos austro-húngaros. O governo alemão não podia deixar passar em branco, e reagiu. Ordenou que o Exército enviasse tropas na direção da Rússia. E também para a fronteira com a França – que era aliada dos russos.

Quando a Inglaterra comunicou Berlim que não entraria na guerra se a França não fosse invadida, a Alemanha decidiu desmobilizar as tropas a oeste. Mas isso já não era mais possível. Os militares não haviam entendido que os políticos só estavam blefando. Não dava mais tempo para evitar a invasão: não se paralisa de uma hora para outra 11 mil trens, em linha, carregados de soldados. Os ingleses até reduziram a oferta para evitar o pior: prometeram ficar neutros se sua aliada Bélgica não fosse invadida. Também não dava mais. Àquela altura os trens alemães já estavam cruzando o território belga para invadir a França.

As demonstrações de força e os blefes tragaram a Europa e parte do mundo para quatro anos de guerra.

A consequência: crises põem a política em xeque e alimentam a tentação autoritária

As sementes dos dois totalitarismos do século 20 – o comunismo e o nazifascismo – foram plantadas nos campos de batalha da Primeira Guerra. Conflitos bélicos consomem muitos recursos econômicos durante e depois de encerrados (para reerguer o que foi destruído). Não raramente conduzem a crises econômicas profundas. E recessões – que não necessariamente são causadas por guerras – costumam pôr a política tradicional contra a parede: sempre tem quem ache que é preciso mudar tudo, pôr no lugar um líder forte, autoritário, para consertar o que está errado.

A Rússia czarista, empobrecida pela guerra e faminta, sucumbiu ao comunismo ainda durante o conflito, em 1917. Pouco tempo depois, o nazifascismo seduziu as frágeis democracias da Alemanha e Itália, na esteira de uma grande crise econômica.

A esperança: o pequeno milagre na “terra de ninguém”

O primeiro Natal da Primeira Guerra, em dezembro de 1914, foi marcado por um pequeno milagre. No front ocidental, soldados alemães decoraram suas trincheiras com velas e árvores natalinas, e entoaram canções. Britânicos, do outro lado, reagiram com seus próprios cânticos.

Em pouco tempo, alemães e britânicos começaram a saudar uns aos outros de dentro das trincheiras. Um soldado mais ousado resolveu desbravar a “terra de ninguém” – o espaço que separava os dois lados. Foi seguido de outros. Tanto alemães quanto britânicos. Eles trocaram presentes: cigarros, bebida, comida, chapéus, meros botões de roupa. Alguém tinha levado uma bola de futebol. Pronto: os militares disputaram uma partida entre Alemanha e Inglaterra. Vitória dos alemães.

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Os comandos militares dos dois lados, quando ficaram sabendo da confraternização, tentaram acabar com ela. Em vão.

Estima-se que 100 mil soldados participaram do pequeno milagre de Natal. Quando pisaram na terra de ninguém, tinham muito a perder. A vida, inclusive. Mas escolheram estender a mão ao inimigo. Deu certo. Ao menos por um dia.

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