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O que o "brasileiro" Rosinson Crusoé tem a nos dizer sobre isolamento
Ilustração: Felipe Lima.| Foto:

Milhões de pessoas ao redor do mundo vivem hoje em isolamento social. São os tempos do coronavírus. E já parece uma eternidade. Mas, se serve de consolo, teve gente que viveu 23 anos completamente sozinho e sobreviveu para contar. E essa fabulosa história, que tem uma relação pouco conhecida com o Brasil, nos dá ensinamentos nesses dias em que parece que nossas casas são ilhas desertas das quais não podemos sair. Mas chega de mais delongas. Estou falando de Robinson Crusoé, o mais famoso náufrago de todos os tempos – Tom Hanks e seu companheiro Wilson bem que tentaram, mas eles ainda vão ter de ser lembrados daqui a alguns séculos para roubar esse posto.

Ok, vocês estão certos... Crusoé não foi uma pessoa de carne e osso. Mas sim das letras; é o protagonista do mais célebre livro do inglês Daniel Defoe, lançado originalmente em abril de 1719. Mas o romance foi inspirado em náufragos reais que viveram anos em locais isolados. E, como toda boa literatura, sempre há muita verdade na ficção. Ah... e Crusoé realmente é um pouco brasileiro – o que os filmes que têm por aí não costumam mostrar.

Então vamos lá. O pequeno Robinson nasce em 1632 numa bem estabelecida família de York, na Inglaterra. Cresce como um jovem insatisfeito e inquieto. Os pais queriam que seguisse uma segura carreira na área de Direito. Mas Robinson queria ver o mundo; não desejava uma vida que considerava tediosa. Então, aos 19 anos, na inconsequência da juventude e contra a vontade da família, sai de casa. Toma um barco e zarpa para uma aventura pelos sete mares.

Só que deu ruim. Na altura da costa norte da África, o navio enfrenta uma fortíssima tormenta. Crusoé, que não era lá muito religioso, volta-se para Deus. Promete em sua oração que, se conseguir se livrar dessa, se tornará um bom cristão e voltará para seus pais. O barco naufraga. Ele sobrevive. Mas é aprisionado por piratas mouros.

Tempos depois – bastante tempo –, ele consegue fugir. E é resgatado por um capitão português que estava a caminho de Pindorama. Sim, o nosso amado Brasil. Nisso, já estávamos em 1657, seis anos após a partida de Crusoé da Inglaterra.

Por aqui, em terras tupiniquins, Crusoé bem que poderia ter tomado outra embarcação e voltar para casa – como havia prometido em suas preces anos antes. Só que não. Se primeiro havia sido o tédio que o fez sair de casa, agora ele tinha outro motivo para não voltar à segurança do lar: dinheiro, ambição. O Nordeste do Brasil era uma terra promissora para quem queria enriquecer. E Robinson Crusoé vira senhor de engenho, dono de uma grande fazenda de cana de açúcar.

Mas ele precisava de mão de obra. Escravos. Comprá-los por aqui custava caro. Então pensa: por que não buscar a “mercadoria” diretamente na África, sem intermediários? Depois de escapar dos mouros, Crusoé havia feito alguns contatos por lá e sabia como obter o que queria. Então ele organiza uma expedição para trazer os escravos de que precisava e ainda fazer um lucro vendendo o excedente para outros senhores de engenho. Pois é, o famoso Robinson Crusoé foi um traficante de escravos no Brasil.

Mas, de novo, dá tudo errado. O navio negreiro naufraga no Caribe, perto da ilha de Trinidad, nas proximidades da costa venezuelana. Com a única exceção de Crusoé, ninguém sobrevive. E ele se vê sozinho numa ilha perdida na imensidão do Atlântico. O que você faria numa situação dessas? Entraria em desespero? Pois foi exatamente isso que acontece a ele. Tanto que batiza “seu” novo endereço de Ilha do Desespero.

Crusoé saiu de casa para fugir do tédio da vida cotidiana. Também não voltou para a segurança do lar porque sentiu a tentação do dinheiro. E agora estava rodeado de um mar de desesperança e solidão. E mal sabia que ficaria sozinho naquela ilha por longos 23 anos.

Mas o desespero não é a melhor estratégia para quem está isolado do mundo. E o ponto de virada foi quando Crusoé reconhece sua situação e passa a edificar em sua ilha, com o que tinha à mão na ilha e com o que conseguiu retirar do navio naufragado, uma pequena amostra da civilização que havia ficado para trás.

E construir uma civilização implica conter impulsos, renunciar aos desejos irrefreados, ser racional, fincar raízes, construir um lar, conservar as pequenas coisas boas que se conseguiu conquistar. O contrário do que ele tinha feito em sua ânsia de ver mundo lá fora.

Então Crusoé ergue sua casa, cria um calendário, estabelece uma rotina, cultiva a terra, cria cabras e adota um papagaio. E – muito importante nessa história – torna-se verdadeiramente religioso. Porque a fé também é um elemento essencial para qualquer processo civilizatório. Afinal, é ela que nos dá esperança de seguir adiante em busca de dias melhores.

Dessa forma, Crusoé se adapta ao seu isolamento. Até que certo dia, 23 anos depois do naufrágio, ele encontra pegadas humanas na ilha. A trilha dos passos leva-o a um grupo de nativos canibais que aprisionaram outro indígena. Crusoé consegue libertar o cativo. E, finalmente, encontra companhia: Sexta-Feira, assim batizado porque aquele dia era uma sexta. Crusoé ensina-lhe a falar inglês e o converte ao cristianismo. E os dois vivem como amigos por mais cinco anos – quando, após algumas reviravoltas, tomam o rumo da Inglaterra num navio que aportou na ilha. Era quase Natal de 1686 – nada mais nada menos do que 28 anos após o naufrágico na Ilha do Desespero.

Robinson Crusoé finalmente retorna para York em 1687, aos 55 anos. Seus pais já haviam morrido. A imprudência da mocidade, o tédio de uma rotina nada interessante, o desejo de sair de casa para se jogar na incerteza do mundo e a ambição pelo dinheiro, enfim, haviam promovido uma separação intransponível dele com seus entes queridos.

Dado como morto, Crusoé não teve nem mesmo direito a alguma herança de seus pais. Estaria pobre, não fosse este um romance de redenção. E Daniel Defoe finaliza a história com um acontecimento pra lá de improvável: o engenho de Crusoé no Brasil havia prosperado nas mãos de seus encarregados. E nosso protagonista era um homem rico. Ok, a gente sabe que é o olho do dono que engorda a boiada; e é difícil de acreditar que ninguém iria passá-lo para trás em 30 anos de ausência. Mas, lembrem-se, essa é uma história de transformação. E, nessa jornada, o sucesso do empreendimento de Robinson Crusoé no Nordeste brasileiro pode ser visto como um símbolo: o prêmio por ter aprendido a conter seus impulsos. Dito isso, só me resta fechar esta crônica assim: fiquem na segurança de suas casas se puderem e não corram o risco que está lá fora. Asseguro-lhes: o isolamento vai passar bem mais rápido do que passou para o Robinson Crusoé.

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