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Com a frase “Vagina não transforma uma mulher em um ser humano”, o ator José de Abreu revela todo o seu macabro arcabouço conceitual.
Com a frase “Vagina não transforma uma mulher em um ser humano”, o ator José de Abreu revela todo o seu macabro arcabouço conceitual.| Foto: Reprodução/ Instagram

Zé de Abreu sairá intacto depois de dizer o que disse de Regina Duarte. Habituais feministas, como previsível, não saíram em defesa de Regina, pela exata razão posta pelo Zé: não basta ser mulher para merecer alguma coisa (respeito?). É preciso mais. Fundamentalmente, é preciso não ser uma “fascista”, sendo o fascismo, nos dias que correm, um conceito bastante flexível. Tudo, aliás, parece bastante flexível. Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena. Afinal ela é uma “fascista”, um tipo abaixo do “ser humano”, não é mesmo?

É a mesma lógica que permite dizer que não basta ser negro, é preciso pensar do jeito certo, e a partir daí achar normal chamar o vereador negro Fernando Holiday de “capitãozinho do mato”. Afinal, a cor da pele é apenas um critério muito frágil para o respeito. A questão central continua sendo a mesma: qual é mesmo o seu “lado”? No caso de Holiday, a Justiça não caiu nessa conversa. Condenou Ciro Gomes por injúria racial. Racismo é crime no Brasil, independentemente da orientação ideológica e da cor da pele de agressores e agredidos. Talvez Ciro tenha imaginado que iria escapar da Justiça por ofender alguém de “direita”. Não colou.

Desconfio que Zé de Abreu pensou o mesmo sobre Regina Duarte. Agredir uma mulher de direita não dá nada, certo? É o machismo do bem, como bem definiu o Pedro Fernando Nery. Nesse caso, parece que colou.

Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena

Há muito o que aprender com essas coisas todas. A primeira delas é que elas ocorrem em torno da internet. Sempre lembro da tese da neurocientista Susan Greenfield: a internet é um espaço de baixa empatia. “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa.” É mais fácil atacar um boneco do que um ser humano.

Outra lição é que o ódio não tem lado. Por algum tempo se cultivou a lenda de que havia uma direita intolerante e uma esquerda bacana. Na campanha eleitoral, lembro da turma que achava que as fake news vinham apenas de um lado do jogo.

Fascinante é esse fenômeno do ódio do bem. Significa o seguinte: eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que ele destrói a democracia, a civilização, que nem sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerância. E durmo tranquilo.

Tudo isso vem de muito longe, mas ganhou contornos dramáticos em nossas democracias polarizadas. Li um estudo recente mostrando como a polarização não define apenas ideias, mas também a visão “objetiva” que cada um faz da realidade. Diria que também afeta nossa sensibilidade moral.

Foi o que vimos na sessão do Estado da União, um dos mais solenes momentos da democracia americana. Quem gosta de Trump achou indigna a cena de Nancy Pelosi rasgando o discurso presidencial; quem não gosta ficou indignado com a imagem de Trump recusando a mão estendida por Pelosi.

A pergunta óbvia a fazer é a seguinte: o que ganhamos, coletivamente, quando tudo for submetido, incluindo-se aí nossos juízos morais, à lógica da polarização política? A resposta é simples: coletivamente não ganhamos nada, mas cada um supõe levar alguma vantagem. A democracia se torna um jogo não cooperativo. Em seu clássico dos anos 1950, Anthony Downs já alertava para os riscos da polarização. “Metade do eleitorado acha que a outra metade está impondo políticas repugnantes.”

Fascinante é esse fenômeno do ódio do bem. Eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que nem sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerância

Tem uma receita aí. Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro. A sugestão é meramente retórica. As pessoas não farão isto. Quem sabe a solução venha de uma nova divisão de trabalho: na epiderme do mundo político, definido basicamente pelas mídias sociais, o bate-boca diário; um degrau abaixo, no plano das instituições, consensos provisórios vão se produzindo.

Não é assim que funciona no Brasil de hoje? No primeiro plano, andamos na Alemanha dos anos 1930, à beira do abismo; no segundo, o presidente da Câmara comemora o inédito protagonismo do Congresso em nossa democracia.

É possível que este seja apenas um experimento brasileiro. É possível que a contaminação do ódio digital sobre o mundo real da decisão pública seja muito mais profunda. É tudo bastante novo, e por isso vale a pena pensar a respeito.

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