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Desfile militar em comemoração ao 70.º aniversário da fundação da República Popular da China.
Desfile militar em comemoração ao 70.º aniversário da fundação da República Popular da China.| Foto: Greg Baker/AFP

Luiz Felipe Pondé escreveu uma coluna provocativa, dias atrás, e a certa altura se referiu a uma mulher com quem conversou em sua recente visita à China. Ela tem 30 anos e abriu um restaurante com o marido. Diz gostar de viver em um país seguro e estável, sem as confusões que enfrentam no dia a dia seus irmão de Hong Kong. Confusões típicas das democracias atuais.

“A ideia que trocamos facilmente liberdade por estabilidade é fato”, diz Pondé. A frase é de um intelectual sabidamente cético em relação à crença iluminista no progresso moral e na fidelidade humana aos valores universais da liberdade e da democracia.

Certo ou errado, ele tem um ponto. Se é verdade que a democracia liberal é um sistema vitorioso no mundo moderno, também é verdade que ela vive um momento de mal-estar. E que o sucesso chinês, prometendo uma sociedade aberta e de mercado, ainda que sem democracia, é de longe o maior desafio vivido em nossa época pelas democracia liberais.

Se é verdade que a democracia liberal é um sistema vitorioso no mundo moderno, também é verdade que ela vive um momento de mal-estar

O Brasil é exemplo disso. Uma pesquisa internacional coordenada pelo professor Dominique Reynié e divulgada recentemente mostrou que 73% dos brasileiros concordariam com a ideia de um pouco mais de ordem, mesmo que ao custo de menos liberdade. O segundo maior porcentual entre 42 países pesquisados.

É evidente que não se sabe bem de que liberdades estamos falando. Os dados foram colhidos no momento em que o país vinha de uma enorme crise ética, radicalismo político, desemprego nas alturas e em meio à explosão da violência urbana. Parece plausível que exista uma demanda difusa por ordem.

David Brooks se referiu a um fenômeno parecido, na democracia americana, sugerindo que as pessoas estão “exaustas” da confusão e da guerra política. Brooks vê dois campos em guerra. Simplificando, são os eleitores de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, mais jovens e presos às soluções tradicionais da esquerda, e os entusiastas de tipos como Trump, desejosos de um líder forte que restaure valores e ponha ordem na casa.

Ambos alimentam uma leitura alarmista do mundo atual, tendem a apoiar programas irrealistas e possuem um vezo autoritário. Estão muito convencidos de que são os missionários do lado certo e esquecem que a democracia é basicamente um modo frágil de “resolver diferenças com pessoas de quem discordamos”.

O pulo do gato é a ideia de que esses dois campos radicalizados formam uma minoria na grande sociedade, mas são amplamente dominantes no debate público. Haveria uma imensa maioria relativamente silenciosa e exausta do bate-boca político e da sensação de permanente instabilidade e paralisia, que surge daí.

Há muitas evidências nessa direção. Se é verdade, como mostrou o Pew Research Center, que a distância entre as posições ideológicas dos grandes partidos americanos mais que dobrou desde os anos 1990, também é verdade que se trata de um debate comandado por tribos entrincheiradas no universo das mídias sociais.

Vivemos hoje uma segunda rebelião das massas. A primeira levou, nos extremos, à barbárie. O destino da atual é incerto

Para essas pessoas, a política se tornou um tipo de entretenimento. Pensava nisso quando relia Ortega y Gasset e sua tese cruelmente atual sobre a “rebelião das massas”. A inédita erupção da multidão na cena pública. O homem-massa avesso ao comedimento, dono de uma autoconfiança vulgar, que fala sobre tudo “cego e surdo como é, impondo as suas opiniões”.

Ortega y Gasset escreveu essas coisas nos anos 1920. Diria que vivemos hoje uma segunda rebelião das massas. A primeira levou, nos extremos, à barbárie. O destino da atual é incerto. O homem comum dispõe, agora, de um poder muito maior de fazer barulho. E novamente a democracia liberal se vê desafiada.

Diferentemente de Pondé, tendo a cultivar um sereno otimismo iluminista. O tempo e o senso do ridículo irão esvaziar a fúria inútil das tribos digitais e voltaremos logo adiante a prestar atenção ao que diz a jovem empreendedora chinesa que meu amigo encontrou em Pequim. Ela ecoa, à distância, a maioria silenciosa imaginada por Brooks, que deseja apenas um pouco de ordem e previsibilidade para tocar a vida. Prestar atenção em sua exaustão é o melhor caminho para que muita gente não venha a se cansar, ali adiante, da própria democracia.

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